terça-feira, 16 de março de 2010

SOUFFRIR

Para Francisco Victor Macedo Pereira

      Ensinava e, por ter lido emoções e dores humanas nos muitos livros a cuja leitura se devotara, não percebera que sua vida fora toda tecida a partir de velhos clichês. A vida, com seus altos e baixos, alegrias e tristezas, tinha-lhe vindo mais como personagem desses livros, nunca como experiência, de fato, vivida. De tudo o que vivera, eram verdadeiras apenas as dores que sentira, por saber-se só e triste, e a angústia de existir sob cujo signo nascera e que, como um verme à espreita, roia-lhe não mais o corpo, mas a alma. Tudo o mais tinha sido fantasia sua.
      Inventário de ilusões era o que construíra antes de conhecê-lo. Até então, ensinara-se a viver só para si. Era a sua forma de se defender do mundo e de si mesmo. Nesse lidar com aquilo que lhe era desconhecido, tornara-se um narrador, ensimesmado, de histórias sem enredo definido, embora com vários esboços tecidos. Nunca chegara a um desfecho definitivo. Como um palimpsesto, a sua vida era, na superfície, a sobreposição de riscos, ranhuras, rasuras e tentativas de recomeço a encobrir, na parte mais profunda, medos, receios, dores, solidão.
       Seu calcanhar de Aquiles, as emoções turvavam-lhe os sentidos. Expunham-no: ele, que sempre procurou ser invisível nesse mundo de seres bastante visíveis. Diante delas, sentia-se descentrado. A sua velha máscara de seriedade, que já começava a dar sinais de flacidez, caía e punha-o diante de si mesmo. Espelho contra espelho. Ele era obrigado a ver que, do outro lado dos muitos espelhos que construíra em si, havia empurrado, para o sótão de sua alma, toda forma de afeto. Preferiu, na empresa vã de evitar sentir a dor de existir, retesar o comboio de cordas em seu coração. Até tê-lo visto, sempre à-vontade na vida, e o seu coração, à sua revelia, contrariando as normas impostas, resolver sair dos trilhos. “A paixão veio assim, afluente sem fim, rio que não deságua”. Diante disso, ele, sempre retraído, não tendo outra saída, resolveu arriscar-se. “Bobeira é não viver a realidade”. Puro de tudo, sem saber ao certo o que fazer, embevecido, ele rumou em direção a esse singelo canto de sirena que, pela primeira vez, tocara em seu peito.
        Como um caçador, o Outro andava à espreita, pondo a sua pele à prova das línguas sequiosas. Ele, que sequer sabia ser caça, sentia-se desajeitado na caça daquele que, como água, escorria-lhe entre os dedos. Inapto para a tarefa, ele não queria deixar escapar a sua presa, de quem estava se tornando prisioneiro. Por isso, ficara receoso. Viu que, inocente nesse jogo, seria levado a escolher o caminho da esquerda, embora soubesse, devido ao seu sempre alerta instinto de racionalização, que deveria ir pelo da direita. A razão dizia que era mais segura a cada travessia. As emoções o impeliam a viver em mise en abyme.
       Entre a razão e a sensibilidade, escolhera não por si, mas pelo Outro, a quem passara a devotar o seu afeto. Em seu nome, ele resolvera seguir pelo caminho dos ventos do leste. Era uma viagem necessária; o caminho, tortuoso; mas, pela primeira vez, percebia que era imperativa a necessidade da procura e, mais ainda, da entrega. E assim, pela primeira vez, pôde sentir aquela necessidade que ele, por mais que procurasse, não conseguia evitar. Sucumbia às exigências desse lado desconhecido de si. Descobrira que estava amando. Estava a sentir o que era sofrer de amar, o que era querer arrancar, do peito entorpecido, aquela dor que, prazerosamente, latejava, o que era ter dentro de si esse rio em fogo convertido.
       Ele, para quem amar sempre estivera em segundo plano, não sabia como aproximar-se. O que dizer? Como ter para si aquele por quem seu corpo clamava? Sabia apenas que o Outro o arrastava para junto de si e disso ele não podia escapar. Nem o queria, ansiava pela aproximação. Resolvera, então, jogar o siso. Trocar olhares, antes da entrega total. Os olhares se procuravam como espadas a tinirem uma contra a outra. O Outro, experiente, já havia percebido que era objeto de observação, de desejo. Não desviava os olhares, enquanto ele não conseguia fixar-lhe os seus por muito tempo, desviando-os a cada investida do olhar do Outro, que se comprazia nesse jogo em que, pouco a pouco, ia dando as cartas. Sedutor, sabia como inebriar. “No clarão do luar, espero”, sussurrou-lhe, oblíquo e dissimulado, o Outro, ao ouvido. Pronto, já tinham o encontro marcado. Embriagado, ele vivia na esperança desse só dia. Não precisava ser tão longa a vida, para tão curto, mas, naquele momento, intenso, amor. Queria, agora, apenas um momento, efêmero que fosse, que fizesse presente o que até então se lhe fizera sempre ausente.
       A esse sentimento que veio sem muita conversa, sem muito explicar, ele entregou-se perdidamente, como se um demônio tivesse lhe tirado de ordem, virando-lhe do avesso, fazendo esquecer dos ensinamentos recebidos: “com homem não deitarás, como se fosse mulher; é abominação”. Mas ele resolveu ouvir a voz que lhe dizia: “o meu amado meteu a mão por uma fresta, e o meu coração se comoveu por amor dele”. Por isso, amou daquela vez como se fosse a única. Deu-lhe seu corpo. Recebeu as carícias sempre negadas. Pela primeira vez, sentiu como era bom ter a pele fendida. A pele do Outro eriçou-se ao leve roçar de sua barba espessa. Provando essa pele branca e macia, a língua dele sentia um gosto de morango e chocolate. Pronunciou sons há muito silentes. Descobriu habilidades adormecidas em suas mãos que navegaram, naquele momento, por lugares nunca dantes navegados, apenas, antes, sonhados.
        Naquela noite, entregou-se sem nenhum pudor. Fulgurações. Naquela noite, as almas se calaram; os corpos, ternamente, se entenderam. Luminescências. Ele pôde, tal qual Adriano nas mãos de Antinoos, descobrir a delícia de ser o que é. Naquela noite, não se distinguiam caça e caçador. Eu e Outro se misturavam, entredevorando-se como uma serpente a morder a própria cauda. Bêbados de prazer, sentiam-se como adão e adão no paraíso a descobrirem cada vinco do rosto, cada detalhe e segredo do corpo. Sem culpas, buscavam-se, penetravam-se. Yin e Yang com o mesmo sexo, mas posições diferentes. Masculino e Masculino, arfantemente, se procuravam, buscando retardar o prelúdio da aurora. Eles sabiam que precisavam viver cada vão momento daquela noite. Amanhã seria um outro dia, e não tinham a certeza de se iam ou não se amar por toda a vida. Bastavam-lhes o aqui e o agora. Por isso, nada pediam em troca. “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta”. Apenas se davam, enquanto, antes do ponto final, ainda havia reticências, exclamações e poucas interrogações.
        Exangues, os corpos descasaram em meio àquele silêncio que só aos amantes é dado conhecer. Ele observava o Outro deitado na cama. Passou a mão em seus cabelos para sentir a maciez de seus fios. Alisou-lhe a barba rala, demorando-se na contemplação do rosto, alvo e comprido, do Outro, como se seu gesto pudesse reter a passagem das horas. Desceu um pouco mais a mão, demorando-se no peito com muitos pêlos lisos e escuros. Tocou-lhe os mamilos. O Outro, apenas, revirou-se. Ele foi, pouco a pouco, descendo mais a mão. Parou no sexo que, embora exausto, ainda estava em riste; mas voltou a mão para o rosto do Outro. Ficou parado, observando-lhe a boca. Depois, aproximou-se dela e, com gosto de adeus, beijou-a como se fosse a última. Levantou-se. Pegou as roupas espalhadas no quarto. Vestiu-se. Fechou a porta com cuidado para não acordá-lo. Desceu as escadas, pagou a conta e saiu.
         Olhando para trás, ele podia, embora o sol já despontasse, ver as luzes de néon a iluminar a fachada do motel, onde se lia: CLARÃO DO LUAR. Virou a cabeça e seguiu em frente. Sabia que, ao alumbramento sentido no princípio, já se iria anunciar, no fim, a dor da partida nem sempre pressentida. Sabia também que, antes mesmo de unidos, já estavam divididos. O Outro era de mil outros. “Perigoso amar; doloroso querer”. E ele, apesar dos ciúmes, ébrio de amor, pensou, ainda antes daquela noite, receando um adeus, antes mesmo do primeiro abraço, em aceitar dividi-lo com outros corpos, outros pêlos, outros beijos, no tapete, na cama, atrás da porta. Sabia que só assim, aos pedaços, ele poderia, talvez, ser seu.
       Embora o fervor continuasse, ele não se resignou, não maldisse a vida; mas não se conformou com receber as migalhas de um amor em mosaicos. Não, o seu amor não bastou. Ele descobrira que não servia para amar e que o Outro, motivo de sua paixão, só poderia servir-lhe de alimento, de peça envolvente nesse jogo em que, mais importante do que dizer que amava, foi sentir-se, pela primeira vez, apaixonado. Em não ter, mas, ainda que a vida seja curta, desejar. Essa mesma vida que, em tempo atrás lhe foi um cais de consolo e de afetos, se lhe apresentava, agora, como um porto de partidas e despedidas. E assim, levando consigo aquela sensação, ele preferiu partir, trazendo na lembrança, bem próximo ao coração, esse primeiro capítulo de sua mala educación sentimental.

Um comentário:

Cinthia disse...

Fantástico, meu caro...
Esse teu texto me deixou realmente encantada... Intenso, e belo...
Lembra aquela fera que cada um guarda dentro de si, e que um dia começa a lutar pra se libertar. Algo assim.
As tuas descrições são belíssimas - adoro essa riqueza de detalhes. E, claro, gostei muito também dos vários diálogos que você faz com vários poemas e músicas ao longo do texto.
Prendeu-me do início ao fim.

Beijos!
Cinthia