sexta-feira, 30 de maio de 2008

A bela metáfora de um país de extremos

Marisa Lajolo
(professora titular do Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp) e autora, entre outros títulos, de A Formação da Leitura no Brasil)


O Vôo da Guará Vermelha celebra a vida, sem pieguice O Vôo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, é um livro sóbrio e envolvente. Um hino à vida, à beleza e ao amor, completamente desprovido da pieguice em que geralmente se banham romances que fazem desas matérias inconsúteis (amor, beleza e vida) a carpintaria da história que contam. Um belo livro! O enredo é simples: um homem e uma mulher se encontram nos extremos da vida e se juntam. Extremos de pobreza, de solidão e de doença, fundidos, se transfiguram. Transfigurados, parecem dar sentido à vida e até à morte. Pois embora celebre a vida, o enredo é entremeado de mortes, de desencontros, de sofrimentos. Seu enredo é entremeado sobretudo de histórias, que se destacam graficamente da fala do narrador, elaborando os entremeios. Nos títulos dos capítulos, engenhosamente dispostos na frente/verso das páginas, mencionam-se cores que se acentuam com o desenrolar da trama e que com ela dialogam: Cinzento e Encarnado, Ocre e Rosa, Verde e Ouro. Pairando na história, sabores e cheiros que arrematam o forte substrato sensorial do texto, onde é recorrente a imagem de um sagüi e de uma guará, lembranças fundamentais na vida das personagens centrais. Ela é Irene, ele é Rosálio da Conceição. Ela é prostituta, ele é servente de pedreiro. As humildes profissões deles, no entanto, são quase irrelevantes. Vivem ambos uma vida cinzenta e áspera como as pedras com que Rosálio marca – no início de sua trajetória – o itinerário pela cidade inóspita, mergulhada num silêncio estéril e letal. A história se narra pela boca de um narrador sofisticado, que ora empresta a voz para suas personagens, ora fala delas em terceira pessoa. Sempre de olho no leitor, a voz que narra não poupa artimanhas para envolver esta instável figura – nós, leitores! – em sua solidariedade para com Irene e Rosálio. Filho de mãe solteira, Rosálio começa por ter de adotar um nome: era conhecido como Nem Ninguém, nome sugestivo da negatividade quase absoluta de sua existência; depois passa a ser Curumim e, finalmente, Rosálio da Conceição na documentação que lhe dá existência civil. Esta invenção de um nome para si mesmo é o primeiro gesto pelo qual Rosálio começa a construir-se como sujeito de sua própria história. Esta história cifra-se em sua incansável busca por alguém que o ensine a ler os livros que herdou do falecido Bugre, índio desgarrado que terminou de criá-lo, depois de ser por ele salvo de morrer de febre, fome e sede. Os caminhos do aprendizado são tortuosos e cheios de curvas: com o protagonista, o leitor perambula por madeireiras, garimpos, canteiros da construção civil. Finalmente Rosálio se encontra com Irene. Irene é uma prostituta barata: doente e envelhecida, mal consegue os clientes necessários para o dinheiro que precisa levar semanalmente para a velha que lhe cria o filho. Embaixo do colchão deformado, um caderno e um lápis aguardam a história que ela acredita que um dia vai escrever. No passado, Romualdo,um grande amor desaparecido. E no futuro muito próximo, a morte inevitável por doença terminal. Finalmente Irene se encontra com Rosálio. Aos poucos, linguagem, escrita, livros, papéis, lápis e histórias de boca e de leitura vão crescendo no enredo, construindo o ponto de encontro dos protagonistas. Daí para frente, multiplicam-se e ficam cada vez mais encorpadas as formas de linguagem de que se valem as personagens. Aliás, a linguagem e os diálogos que ela engendra representam, talvez, a idéia fundadora e a tese do livro, se é que se pode falar de tese a propósito de um livro sutil como O Vôo da Guará Vermelha. Rosálio aprende a ler com Irene e juntos, na cama velha e estreita, decifram as letras dos livros herdados de Bugre. No caderno de Irene, ela registra a lápis as histórias que Rosálio conta. Homem e mulher que se fazem um na linguagem e no texto. No corpo e na cama, na vida e na morte. E que por isso podem alçar vôo para o azul sem fim, bela metáfora-título do último capítulo do livro. O leitor, ao fechar o livro, talvez tenha olhos e ouvidos mais abertos para o mar de histórias que se desentranham da história. No caso deste livro, da história anônima deste País de Rosálios e de Irenes e que um Poetinha, um dia, chamou de Pátria minha, tão pobrinha...
(O Estado de S.Paulo - Caderno 2 - 08/01/06)
Assessoria de Comunicação e Imprensa - UNICAMP

Do espaço e da mulher em Chama e Cinzas de Carolina Nabuco




Marcelo Medeiros




Primeira edição de Chama e cinzas

Na discussão entre o público e o privado, parece-nos que as abordagens caminharam para uma supervalorização do primeiro em detrimento do segundo. Uma vez que, ao longo da história, a mulher havia sido encarcerada na esfera privada, urgia que ela saísse do posto de rainha do lar e alcançasse espaços onde pudesse exercer outras funções que não apenas as das prendas domésticas. Avultaram, então, estudos sobre as mulheres do espaço público, como as jornalistas, as políticas, as escritoras. Neste caso, procurando dar visibilidade às mulheres, muitos estudos deixaram de lado aquelas mulheres que, restritas à esfera doméstica, já eram invisíveis: as donas-de-casa.
Como decorrência disso, deixaram de ser produzidos estudos sobre as "donas-de-casa", ou, pelo menos, rarearam os trabalhos que se preocupassem com esse tipo de mulher. Isso, talvez, seja decorrente do fato de que, durante muito tempo, o privado ficou à margem dos trabalhos produzidos por estudiosos das mais diversas áreas. Esse quadro, entretanto, começou a alterar-se quando o privado deixou de ser "uma zona maldita, proibida e obscura: o local de nossas delícias e servidões, de nossos conflitos e sonhos; o centro, talvez provisório, de nossa vida, enfim reconhecido, visitado e legitimado" (PERROT, 2006, p. 09).
A consideração crescente pela vida privada, familiar ou pessoal contribuiu, portanto, para o surgimento de trabalhos que procurassem, a partir da esfera privada, tida como prisão para muitas mulheres, estudar como o feminino se manifestava nesse local: submetendo-se às injunções de uma sociedade de base patriarcal ou buscando formas de ir de encontro a todo um aparato ideológico fomentado por essa mesma sociedade. Tanto num quanto noutro caso, verificou-se, em muitos casos, que as mulheres viveram, durante muito tempo, numa espécie de letargia que as impedia de criar, nomear-se, nomear as coisas e ser, sobretudo, procriadoras de seus próprios discursos, textos e pensamentos. Tudo isso para que o domínio masculino sobre o feminino permanecesse como algo imutável e natural, impedindo, assim, que as mulheres construíssem novos valores sociais, nova moral e nova cultura.
Dentro dessa ideologia, que toma(va) o masculino como ponto de referência, as mulheres foram obrigadas a silenciarem-se e a assumirem como valores femininos outras marcas: a escuta, a espera, o guardar as palavras no fundo de si mesmas, aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se, calar-se (PERROT, 2005). Destinadas à obscuridade da reprodução ou postas fora do tempo ou dos acontecimentos, as mulheres foram, portanto, esquecidas, silenciadas ao longo da História. Neste sentido, o silêncio, sendo o Verbo Deus e, portanto, Homem, era o comum das mulheres: "o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento" (PERROT, 2005, p. 09).
Se o silêncio foi, então, a marca de muitas mulheres, é preciso, agora que "grande parte da revisão da produção cultural e literária das mulheres vem sendo feita a partir de perspectivas que buscam enfocar [...] diferentes construções identitárias ou que, no mínimo, não desconsideram sua importância em geral, e, especialmente, dos sujeitos femininos dentro delas" (ARAÚJO e SCHNEIDER, 2006, p. 123), que demos voz a esse silêncio e passemos a ouvir, pelo menos, os seus sussurros, o que pode, a nosso ver, ajudar na reescrita da própria história das mulheres e contribuir na escrita de uma memória feminina que foi tecida, muitas vezes, de silêncios e para o silêncio.
Sendo assim, não podemos deixar de lado a esfera privada, já que ela foi, durante séculos, um espaço ao qual estiveram ligadas muitas mulheres. É preciso, portanto, voltar-se para essa esfera, entendê-la por uma óptica que esteja despida de idéias pré-concebidas, pois, se as mulheres em geral, foram, paulatinamente, margeadas, as que ocupam o espaço privado, e muitas dizem gostar dele, cabe-nos, portanto, entender essa opção, são, duplamente, margeadas: primeiro, por serem mulheres; segundo, por exercerem as funções de dona-de-casa.
No entanto, nunca se pensou, como afirma Woolf (2004), que ser mulher dona-de-casa é exercer uma função social que não goza de prestígio elevado na sociedade. Ser dona de casa traz para as mulheres as marcas de uma angústia que é resultado do fato de saber que esta sua função é importante, mas que, por outro lado, é tida como atividade menor, menos positiva, ociosa. Apesar disso, quando muitas mulheres começaram a penetrar no terreno da escrita, foi justamente o espaço privado, onde permaneceram fechadas dentro de casas e sobrados, mocambos e senzalas, construídos por seus pais, maridos, senhores, que emergiu, em suas prosas, como cenário por onde desfilavam mulheres igualmente confinadas no mundo interior da família e mantidas sob o jugo patriarcal. Sendo assim, voltadas para o espaço doméstico, o privado, as mulheres, ao construírem o seu universo ficcional, deram prioridades aos laços familiares:
Estes laços, protetores e constritivos, são, freqüentemente, elementos estruturantes dos conflitos narrados. A família é, de fato, um tema que se impõe àqueles(as) que se interessam pela problemática feminina, seja ela abordada pelos mais diferentes campos do saber (XAVIER, 1998, p. 13).
A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem "a moral e os bons costumes", daí serem recorrentes na produção delas temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a "esfera perfumada de sentimento e singeleza", não abordassem nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública, ou seja, assuntos de homem.
Todavia, escrevendo sobre aquilo de que estavam mais próximas, as mulheres iam, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades femininas que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Para corroborar essa nossa fala, Perrot (2005, p. 13) afirma o seguinte:
O uso [da escrita], essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetização e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educação, caridade, cozinha, etiqueta...), elas se apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação – o jornalismo por exemplo – e da criação: poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais dificilmente. Debates e combates balizam estas travessias de uma fronteira que tende a se reconstituir, mudando de lugar.

Assim, não nos causa estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e planejados pela arquitetura masculina, as mulheres escolhessem justamente esses espaços para falarem, dizerem quem eram, são e foram. Como exemplo disso, podemos citar o romance Chama e Cinzas (1947) da escritora fluminense Carolina Nabuco. Escrito treze anos após a publicação de seu primeiro romance, A sucessora (1934), num estilo objetivo, com uma linguagem próxima à da crônica jornalística, Chama e Cinzas é um romance que narra o cotidiano de mulheres presas à esfera do lar e preocupadas em resolver, à sua maneira, os problemas presentes nessa esfera privada, ou seja, no espaço privilegiado para a realização de seus talentos e execução de sua carreira profissional: as lides domésticas, encarnando a esposa-dona-de-casa-mãe-de-família.
Este romance, talvez, tenha sido, para a sua autora, o mais difícil de ter sido escrito, porque lhe faltava substância: "Fui reunindo fragmentos de diálogos e títulos de capítulos, mas essas notas não passavam de lascas espalhadas. Lutava com uma grande falta de detalhes" (NABUCO, 2000, p. 142). Em Oito décadas, livro de memórias que compõe a bagagem literária de Carolina Nabuco, ela registra, da seguinte forma, a maneira como havia trabalhado na elaboração de Chama e cinzas:
Estou tecendo o enredo do meu futuro romance ainda sem título. O primeiro personagem que ideei e ao qual já estou me afeiçoando é o de um banqueiro e homem de negócios de meia-idade. Sua vida financeira e industrial está me saindo parecida com a do barão de Mauá e a de Percival Farquhar, o arrojado americano que conheci lutando em vão junto do governo Bernardes para, com os milhões americanos de que dispunha, estabelecer a indústria metalúrgica que engrandeceria o Brasil. Não deixarei meu personagem, o Rabelo, lutar em vão.
Há muito tempo que elaborei o ambiente de família que aparece na primeira parte e que tracei o arcabouço dos últimos capítulos, cujo eixo é a ida forçada de Nica ao banquete, deixando o marido moribundo.
Estes pontos não constituem ainda enredo. Quero uma rivalidade de amor entre as duas irmãs, mas os personagens masculinos ainda estão obscuros. Fiz pelo menos doze esquemas de enredo, para fixar os personagens Fernando e Evaristo. Enveredei por vários caminhos falsos, rasgando muitas páginas. Li a mamãe o rascunho. Li-o depois a João de Azevedo Macedo, operado da vista, a quem fui fazer companhia várias tardes. Recebi dele algumas sugestões, outras de Mariana, que bateu duas cópias na máquina, outras de Jim Chermont, que foi o primeiro leitor do original já mais ou menos terminado, todas as sugestões foram ótimas (NABUCO, 2000, p. 143).
Chama e Cinzas, a partir do qual, neste artigo, procuraremos pensar em como se configura a representação feminina no espaço privado representado neste romance, pode ser visto, então, como uma longa crônica familiar onde estão registrados as intrigas familiares e os dramas íntimos. Nele está registrado o cotidiano da família Galhardo. Esta é uma família dentro dos moldes patriarcais, ou melhor, dentro do que, reduzindo-se as dimensões da família patriarcal, se "convencionou chamar de família nuclear burguesa, composta apenas do casal e dos filhos" (XAVIER, 1998, p. 113). Álvaro, o pai, é viúvo e tem quatro filhas: Ana, mais conhecida como Nica, Cristina, Iolanda e, a mais nova, Geninha. Todas elas moram na casa do bairro do Flamengo e são responsáveis pela manutenção e ordem dessa casa cujas necessidades são providas por Álvaro, que, antigo diplomata, cargo de que foi destituído após contrair muitas dívidas e não ter podido pagá-las, era descendente de família ilustre do Antigo Império, mas se encontra em decadência e vive de pedir emprestado dinheiro, que, muitas vezes não paga, ou da renda haurida com o jogo que realiza em sua casa e ao qual vinham muitas pessoas: umas desconhecidas pela família; outras eram bem próximas, como Nestor Rabelo, um grande banqueiro e velho amigo dos Galhardos.
Os descalabros de Álvaro causavam vergonhas a suas filhas, e todas elas tiveram de passar por situações vergonhosas por causa do pai, que dilapidou com o jogo a sua fortuna e a deixada pela falecida esposa:
[...] Geninha devia estar sentindo agora mais ou menos o que ela sentira então. Hoje Geninha chegara a maioridade como filha de Álvaro, como ela, Nica, chegara nesse dia de meirinhos, como Iolanda chegara, um pouco menos cedo talvez, na ocasião da ameaça de um credor insolente. Para Cristina, a mais velha, talvez não houvesse havido um momento preciso que, assim, de repente lhe abrisse os olhos. Depois da morte da mãe, Cristina tomara, ainda colegial, o governo da casa, dessa casa sem orçamento. Logo principiara a descobrir, através de pequenos vexames e da necessidade de fugir das contas dos fornecedores que não podia pagar, a verdadeira situação do pai (CC, p. 15).
Álvaro, apesar de ser visto como o senhor da casa, aliás, a primeira parte do romance traz como título "a casa de Álvaro", não consegue cumprir com o papel que lhe é reservado por uma sociedade de base patriarcal, ou seja, ele não consegue cumprir, a contento, com o papel de provedor do lar. Apesar disso e dos apertos econômicos por que passava, era contrário ao fato de suas filhas trabalharem fora do lar:
Álvaro opunha-se a que as meninas trabalhassem. Dizia que lugar de mulher é em casa. Tinha nisso o apoio de tia Chiquinha, a principal representante da família materna, uma tia-avó que não evoluíra com os tempos. Tia Chiquinha dispunha no caso de um argumento melhor que palavras. Viúva rica e sem filhos, era quem dava às meninas uma mesada para vestidos e passeios (CC, p. 28).
Este fragmento corrobora o que vínhamos dizendo no começo deste texto, ou seja, dentro da ideologia do patriarcalismo, o lugar da mulher é o confinamento no mundo interior da família. Neste sentido, o romance em pauta registra uma época em que, sendo o lugar da mulher em casa, era "desnecessária" a sua entrada no mercado de trabalho, principalmente porque a presença feminina no espaço público era vista como uma possibilidade a que as mulheres queriam ter acesso para poderem conseguir dinheiro a ser gasto com futilidades, comprando vestidos e indo a passeios. O romance em pauta registra, portanto, o quanto era difícil para as mulheres, presas à esfera privada, romperem com idéias que, assim como a tia-avó das meninas Galhardo, "não evoluíram com o tempo".
Além disso, devemos registrar que essa recusa à participação feminina no espaço público atendia a "um esforço de propagação de um modelo imaginário da família, orientado para a intimidade do lar, onde devem ser cultivadas as virtudes burguesas" (RAGO, 1997, p. 75). Por isso, avultaram vários procedimentos estratégicos masculinos que tentaram impedir a livre circulação das mulheres nos espaços públicos e lançaram, em consonância com todo um discurso moralista e filantrópico, sobre os ombros femininos "o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho" (RAGO, 1997, p. 63). Noutras palavras, como a inserção da mulher na vida pública poderia corromper a sua pureza, o trabalho só lhe era permitido em situações excepcionais e de extrema necessidade como nos casos de viuvez ou de falência financeira.
Neste cenário, em que a esfera pública era apresentada como fonte de corrupção da mulher e de desvio do seu destino sagrado: o de mãe, esposa, dona de casa, restava às meninas Galhardo, impedidas de trabalhar no espaço público, assim como a muitas mulheres como elas, apenas circular pelos espaços privados do lar. Aliás, Álvaro, apesar dos descalabros econômicos causados à família, não se descuidara da educação de suas filhas e soube educá-las dentro dos princípios dessa ideologia cujo objetivo era prepará-las não para a vida, mas, sim, para exercer a sua função essencial: a carreira doméstica. Sendo assim, integrando uma família do tipo nuclear burguesa, onde as relações de gênero são bem organizadas (XAVIER, 1998), cabia às meninas Galhardo ocupar-se com as lides domésticas, como costura, bordado e a arrumação da casa, ou preocupar-se com a sua própria beleza, atividades que não gozam de prestígio dentro de nossa sociedade, já que são vistas, em sua maioria, como meras futilidades femininas:
Agora um trovão rompeu inopinadamente. O dia antes estivera bonito. Nica prestou pouca atenção à mudança do tempo, ocupada como estava com seus vestidos, com os usados que arrumava e com os futuros que planejava. Achava-se com muito pouca roupa, e queria, precisava ser mais elegante que nunca. Apesar de Fernando falar tanto contra o luxo e futilidade, ela descobrira que, na prática, ele era, pelo contrário, sensível a tudo isso na indumentária feminina (CC, 70).
Neste caso, o trabalho da mulher deve ser voltado às atividades mais caseiras e sossegadas, tipicamente associadas à mulher. Sendo assim, as filhas de Álvaro têm, então, de cumprir esse papel que uma sociedade de base patriarcal reserva-lhes. Todas são mulheres que estão presas aos laços de família e, portanto, dentro de um sistema extremamente gendrado dentro do qual elas, sendo mulheres, têm de ficar confinadas à esfera do lar e assumir o governo da casa, preocupando-se apenas com as prendas domésticas, com os mínimos detalhes da vida cotidiana de cada um dos membros da família, com todos os pequenos fatos do dia-a-dia e com a prevenção de qualquer sinal de doença.
Além disso, outra preocupação recorrente entre as irmãs Galhardo é com o casamento que era visto como a suprema aspiração das mulheres e para o qual elas se preparavam por toda a vida, sendo educadas nas lides domésticas e ensinadas, no caso das mulheres da classe dominante, a brilharem nos salões de bailes onde poderiam encontrar um pretendente que as retirassem do lar paterno e lhes concedesse o trono de rainhas do lar. Dessa forma, vivendo dentro de uma sociedade em que as mulheres eram educadas para se casarem, as filhas de Álvaro não podiam fugir ao seu "destino de fêmea": " – Se eu não estiver casada antes dos vinte e um anos, eu me emprego no escritório do Rabelo. Ele já disse que eu dou uma ótima secretária" (CC, p. 28).
Esta fala de Nica torna-se importante porque não só reitera o fato de que, dentro da ideologia patriarcal, o único destino da mulher era o casamento como também nos ajuda a pensar nos papéis que eram destinados às mulheres no espaço público, já que o campo de atuação de muitas delas fora do lar circunscreveu-se "ao de ajudante, assistente, ou seja, a uma função de subordinação a um chefe masculinos em atividades que a colocaram desde sempre à margem de qualquer processo decisório" (RAGO, 1997, p. 65). Por isso, caso não venha a se casar, restava a Nica empregar-se no escritório de Rabelo para exercer o papel de secretária. Ademais, educadas para a domesticidade, as meninas Galhardo são instruídas para serem boas donas-de-casa, ótimas esposas e graciosas mães, estereótipos femininos construídos conforme a ideologia do patriarcalismo, ou seja, elas "eram mestras na arte de fazer as honras de casa, com gentileza e simplicidade" (CC, p. 42).
Acrescentemos a isso que, dentro do casamento, cabia ao homem o papel principal enquanto à mulher era destinado o papel de coadjuvante em nome do qual ela deveria deixar de lado os seus sonhos para fazer parte, então, de um enredo que não foi construído para ela nem por ela, isto é, cabia-lhe o papel secundário de auxiliar do esposo:
[Nica] via-se, no futuro que sonhava como esposa feliz de Fernando, às vezes em lugarejos perdidos do interior, onde o mandassem servir. Via-se ao lado dele, vivendo contente num lar muito simples, dentro de um orçamento apertado pelo soldo militar, com que teriam que viver.
[...]
[...] o que Nica queria sobretudo, e quase unicamente, era compartilhar da vida de Fernando, fosse qual fosse. Quer ele vencesse, quer não, quer fosse obscuro, quer chegasse, mesmo, a fazer-se um nome brilhante como o de Rabelo, o que ela queria era estar ao seu lado, auxiliando-o (CC, p. 54-55).
Outra personagem que vislumbra o casamento como único objetivo na vida é Cristina. A mais velha das meninas Galhardo estava de noivado quase marcado quando o seu futuro esposo resolveu viajar para a Europa. A causa dessa viagem imprevista: a futura sogra, Dona Eufrásia, não queria ter uma nora cuja família, em especial o pai, Álvaro Galhardo, se revelaria um entrave para a ascensão social e econômica de seu filho, João Mário:
Dona Eufrásia, a mãe do rapaz não tinha outra objeção senão Álvaro. Alegava que o filho não teria tão cedo situação para casar, mas isso era apenas pretexto. O que a velha não fazia cerimônia em dizer por fora acabou chegando aos ouvidos da família Galhardo.
– Gosto muito de Cristina, mas não quero que meu filho seja genro de Álvaro Galhardo. No Brasil a gente casa com a família toda, e, para um rapaz no princípio da vida, amarrar-se a um sogro como Álvaro é o mesmo que atirar-se nágua com uma pedra no pescoço (CC, p.25-26).

Como a história da cultura ocidental foi consolidada a partir da tradição do saber masculino, cristalizaram-se, em função disso, imagens de mulher segundo essa tradição. Muitas delas são encontradas em algumas obras de nossa literatura e reiteram a submissão, a resignação femininas ou, então, trazem como marcas femininas o sofrimento, a saudade. Dentro dessas imagens, Cristina representa aquela mulher que, passivamente, assume o papel de noiva que sonha eternamente com o regresso do noivo que ela sabe que, possivelmente, não mais voltará para ela:
João Mário, que fora sempre dominado pela mãe, embarcara nessa época para uma viagem à Europa, sem esclarecer o caso com Cristina. Não tinha situação independente e tinha pego apego ao conforto da casa dos pais. Amava Cristina sem arroubos. Voltara de viagem mais afastado ainda da idéia do casamento. Cristina, porém, não mudara. Nunca pensara, e nunca pensaria, em outro. Guardava ainda uma esperança longínqua, uma confiança qualquer, na afeição de João Mário (CC, p. 26).
Assim como esta sua irmã, Nica também é abandonada por seu namorado e quase futuro marido. Todavia, o motivo do abandono não foi o mesmo de Cristina. Fernando Gaveiro apaixonara-se por Iolanda, a mais bonita das irmãs Galhardo, quando eles se encontraram por acaso num dos passeios à praia, os quais Nica e seu ex-namorado sempre faziam:
De repente Fernando parou, como se estivesse encontrado quem procurava. [...] Fernando confundira-as. Nica sorriu.
De um golpe certeiro, Fernando atirou a bola leve, que trazia, em cheio contra as costas de Iolanda.
[...] Iolanda voltou-se surpresa, em direção do golpe. Vendo um desconhecido, lançou-lhe um olhar fustigante, como se castigasse uma insolência.
Fernando parou, petrificado, entre confuso pelo que fizera, e deslumbrado pela vista de Iolanda. No mesmo instante, Iolanda reconheceu Amália, ao lado dele, e percebeu o engano. Adivinhou que este era o Fernando Gaveiro, que a tomara por Nica por causa do pijama. Foi ao encontro dele, de mão estendida, sorrindo, gracejando (CC, p. 58).
Após esse encontro em que um sentimento inusitado passou a existir entre Fernando e Iolanda, a relação dele com Nica tornou-se diferente, pois "se rompera algum fio na trama de seu namoro", e a conversa entre eles não os mais unia: "as frases esparsas não formavam ponte, e os silêncios, que de vez em quando caíam entre eles, também não eram de comunhão" (CC, p. 68). Depois de sofrer por ter descoberto que "esse Fernando, que Iolanda amava e por quem se afligia, não era mais dela [...]. Não era mais o Fernando das manhãs de dezembro, na praia ensolarada [...] (CC, p. 76)", Nica decide que "não seria uma tia triste para os filhos de Iolanda e Fernando" (CC, p. 99). Para tanto, ela resolve que a melhor solução seria encontrar alguém que substituísse o antigo noivo:
Fernando costumava dizer que a vida era uma só. Tinha razão. Ela não ia perder a sua em queixumes. Não era mulher de lamúrias, de ficar parada, olhando para trás. Era uma mulher prática, mulher de ação, uma dessas pessoas que não aceitam a derrota. Faria sua vida. Casaria. Casaria agora com o primeiro que se apresentasse, contanto que não lhe fosse repugnante, e que também não fosse um fraco, como Álvaro (CC, p. 99).
A rejeição de Nica faz com que esta personagem, em seu discurso, passe a ver o casamento de um outro ângulo. Destituído da áurea romântica segundo a qual casamento = amor, o casamento é visto como um jogo de interesses. Aceitando as regras desse jogo, Nica passa a escolher um pretendente que lhe traga vantagens matrimoniais:
Nica confiava que o noivado de Iolanda não seria a única novidade [...]. Quanto mais cedo toda a gente soubesse, melhor.
A surpresa seria geral. E todos pensariam o que ela queria que todos pensassem, especialmente Fernando, isto é, que o seu caso com Evaristo já viera quase resolvido de Petrópolis, portanto bem separado do romance de Iolanda, anterior até – um sem ligação nenhuma com o abandono de Fernando, um noivado que passara por fases e progressos graduais, com algumas raízes no passado, não a planta de crescimento súbito, da noite para o dia, que realmente fora para ela (CC, p. 109).
Entretanto, escolhida a vítima que era Evaristo de Pádua, ministro da indústria, com quem Nica havia flertado algumas vezes, ela se arrepende do jogo que estava fazendo com o sentimento dele, "um sentimento muito digno, e até nobre, porque só um amor desinteressado podia aproximar um homem como ele de uma menina sem fortuna e filha de um pai bastante desmoralizado" (CC, p. 111). Neste caso, não é o arrependimento de Nica que nos chama atenção, mas as palavras com que ela elabora esse seu arrependimento, já que, em seu discurso, percebemos a presença de uma ideologia segundo a qual a mulher deveria oferecer bem mais do que si própria ao casamento, ou seja, além de uma família de caráter ilibado, ela deveria ter posses para oferecer como dote, o que ela, Nica, não possuía, já que era "uma menina sem fortuna e filha de um pai bastante desmoralizado". Neste sentido, as palavras de Nica revelam que a mulher era o local por onde circulavam os bens da família e que, sendo assim, ela deveria saber cumprir o seu dever.
Reconhecendo que o casamento com Evaristo estava sendo movido mais por despeito e que, "quando se visse presa, por uma promessa irrevogável, a este homem que não significava nada para ela, sentiria um imenso vazio" (CC, p. 113), Nica desiste desse noivo e, surpreendendo a todos, resolve casar-se com Rabelo, o velho amigo da família:
Rabelo continuou, com uma mescla de emoção e humorismo:
– Se alguém disser a você [Álvaro] que Nica casa comigo por despeito ou por interesse, você pode responder que, longe de me queixar, eu sei muito bem que só mesmo por despeito ou por interesse é que uma menina como ela poderia casar comigo, e que eu considero que fiz um negócio da China
[...] eu não quero mais turismo em minha vida... sou um homem que sempre morou em hotel. Agora quero ter casa (CC, p. 123).
Os termos com que Rabelo explica a sua união com Nica demonstram bem a visão que se tinha sobre o casamento. Este era visto como algo economicamente vantajoso, ou seja, um verdadeiro negócio da China. Aliás, como afirma Xavier (1998), anterior à ascensão da burguesia, o matrimônio era visto como um contrato de natureza político-sócio-econômica feito, muitas vezes, à revelia das partes "envolvidas" e, portanto, não pressupunha afinidades afetivas tampouco sexuais. Entretanto, com o advento da burguesia, emerge, dentre outras coisas, o conceito de amor conjugal e, neste caso, casa-se não mais por interesses políticos, econômicos e sociais, mas por interesses do coração.
Parece ser essa a atitude de Nica. Embora o seu casamento possa ser visto como um grande negócio da China, ela não se une a Rabelo por conveniência, mas porque, conhecendo-o de há muito tempo, entre eles confiança gerara intimidade, tanto que Nica se sente atraída por ele: "Mas, afinal, ela sempre sentira uma atração pelo Rabelo. Não era como as outras irmãs, que não seriam, nenhuma delas – Nica tinha certeza disso – capazes de casar com ele" (CC, p. 117). Sendo assim, acreditamos que vale a pena reproduzirmos as seguintes palavras de Ieda Porchat (1992 apud XAVIER, 1998, p. 116), as quais podem ilustrar muito bem o comportamento de Nica ante o seu casamento com Rabelo:
Diferentemente do casamento na família patriarcal, sua finalidade não mais é a manutenção de propriedades, bens ou interesses políticos. Casa-se no casamento burguês para satisfazer impulsos afetivos e sexuais. Casa-se por amor e busca-se a felicidade. Casa-se porque se têm interesses e gostos iguais. É um casamento que tem como valores predominantes a escolha do parceiro por amor, a glorificação do amor materno, a visão de mulher como a ‘rainha do lar’.
Além disso, o desejo expresso por Rabelo de ter uma casa, pois "eu não quero mais turismo em minha vida... sou um homem que sempre morou em hotel. Agora quero ter casa (CC, p. 123), é bastante interessante como ponto para reflexão, já que a casa é o espaço da construção do imaginário privado. Nela, as pessoas preservam as suas histórias cotidianas e deixam impressas marcas que revelam relações de saber, poder e prazer no âmbito doméstico.
Em Chama e cinzas, a casa aparece, então, como esse espaço onde, em meio aos conflitos familiares, emergem relações de poder que demarcam espaços para o masculino e para o feminino. Como exemplo disso, podemos lembrar o fato de que o romance é dividido em duas partes que trazem em si o nominativo casa: a casa de Álvaro e a casa de Rabelo. Em ambas as partes, a casa acha-se modificada por um sintagma preposicionado em cujo núcleo há um substantivo próprio masculino. Neste caso, embora a casa seja, em nosso imaginário, um espaço eminentemente feminino, já que cabe às mulheres, dentro da ideologia do patriarcalismo, cuidar da manutenção e da ordem da casa, esta é vista, assim como as mulheres, como propriedade, posse masculina, ou seja, "a mulher ‘reina’ no lar dentro do privado da casa, delibera sobre as questões imediatas dos filhos, mas é o pai quem comanda em última instância" (ALMEIDA, 1987 apud XAVIER, 1998, p. 26).
Sendo assim, apesar de estar, estruturalmente, dividido em duas partes, essa divisão não chega a constituir uma dicotomia, pois essas duas partes não se opõem, ao contrário do título do romance que traz o par antitético chama e cinzas. As duas casas não são, ideologicamente, distintas. Pelo contrário, elas representam uma contigüidade, são unas, constituem, assim, uma única simetria: a casa do macho. E o casamento de Nica é a representação de duas dimensões intrínsecas ao patriarcalismo, ou seja, a passagem da dominação do pai para a dominação do marido. Em outras palavras, Nica está mudando de casa, deixando ser uma simples filha e se tornando esposa, mas continuará na mesma esfera de dominação que é a do macho, uma vez que "o núcleo do poder patriarcal consistiu, acima de tudo, no poder do pai sobre a filha e no do marido sobre a mulher" (THERBORN, 2006, p. 30).
Entre a passagem da vida de solteira para a de casada, decorrem oitos anos. Na segunda parte de Chama e Cinzas, vemos que tudo mudara para a família Galhardo. O velho casarão do Flamengo dera lugar a um grande edifício. Tia Chiquinha morrera e deixara uma boa herança para as sobrinhas, as quais conseguiram, todas, se casar, inclusive Cristina, que, depois da morte de D. Eufrásia, fora levada ao altar por João Mário, o antigo noivo.
Nessa nova vida, se Nica cumpria antes com os papéis de boa filha, ela agora deverá ser um exemplo de boa esposa e dona de casa, papel com o qual se identificou ao longo dos seus oito anos de casa e pelo qual sentia prazer:
O prazer, porém, que sentia ao ouvir as exclamações de surpresa e de admiração, este não variava. Vinha-lhe o mesmo calorzinho de contentamento ao recolher os comentários. Confirmava-lhe a certeza de que aquele ambiente seu, aquela quadro que a cercava, era de fato excepcional. Também não lhe era desagradável notar que, à admiração de suas visitas, se misturava, alguma vez, um laivozinho de inveja, disfarçado em sorrisos e elogios, e que cada mulher se imaginava no lugar dela, dona de uma casa assim (CC, p. 127-128).
Nica aceita para si, sem se questionar, o papel de esposa e de dona de casa e se sente feliz, pois esse seu papel era invejado pelas suas amigas que não tinham uma casa como a dela tampouco um marido que lhe pudesse propiciar certas compensações na vida, principalmente se fosse bem mais velho do que a esposa, como era o caso de Rabelo. Assim, parece que, para compensar a diferença de idade, o homem deveria ter dinheiro suficiente que pudesse custear os caprichos da esposa jovem:
Mas as visitas, voltando para a sala onde conversavam os homens, não deixavam de sentir, sobretudo as moças de sua idade, que havia compensações na vida, e que elas não eram, como Nica, casadas com homens mais idosos (CC, p. 128).
Nica continua, assim como na casa de Álvaro, exercendo um papel em conformidade com o que delega às mulheres a ideologia patriarcal, ou seja, encontra-se exercendo atividades femininas como preocupar-se com as costureiras ou com os convites enviados às figuras mais importantes da sociedade. Nessas ocasiões ou mesmo em pequenas reuniões feitas na casa de Rabelo, havia demarcados os espaços e os assuntos sobre os quais homens e mulheres poderiam falar:
Quando Nica e suas amigas voltaram para a sala, formaram em vez de se reunirem ao grupo que fumava, outro grupo, em separado, e começaram a discutir assuntos femininos. Nica teria preferido ouvir falar sobre a companhia. Procurava, embora estivesse de costas, e não muito próxima do outro grupo, ouvir o que podia da conversa dos homens. Respondia aqui, escutava lá (CC, p. 129; itálicos meus).
No trecho acima, sintagmas como assuntos femininos e conversa dos homens apontam para a separação entre as esferas de atuação do masculino e do feminino em meio à sociedade. Ou seja, há assuntos de que as mulheres não podem participar, pois são de homens e, por isso, elas têm de se contentar em formar um subgrupo e ficar ouvindo os assuntos discutidos pelos homens sem poder participar deles. Sobre este aspecto, Woolf (2004), no início do século passado, escreveu as seguintes palavras:
Mas, nesse ponto, eu já estava exatamente na porta de entrada da própria biblioteca. Devo tê-la aberto, pois instantaneamente emergiu, como um anjo da guarda a barrar o caminho com um agitar de túnica negra, e não de asas brancas, um cavalheiro reprovador, grisalho e gentil, que deplorou em voz baixa, e a fazer-me sinais para que saísse, que as damas só são admitidas na biblioteca acompanhadas por um fellow da faculdade ou providas de uma carta de apresentação (WOLF, 2004, p. 12).
Embora haja um intervalo temporal um pouco largo entre essas palavras da escritora de Orlando e a publicação do romance Chama e Cinzas, a situação descrita acima é semelhante à por que passa a personagem Nica, que é obrigada, assim como as demais mulheres do seu grupo, a ficar de fora da conversa dos homens porque é mulher e, sem uma carta de aceite, não poderia fazer parte da discussão sobre a implantação da companhia de mineração e transporte, a M e T, empresa que seu esposo Rabelo queria implantar no Brasil. Dessa forma, ao logo de toda a trama desta segunda parte do romance, Nica se colocará sempre à margem das discussões da esfera pública, discutindo apenas aquilo que já vem traçado pela sua natureza: desenhar, bordar, cozinhar, arrumar; mas não se metendo nos negócios públicos. Ainda que se preocupe com o rumo dessas discussões que dizem respeito ao desenvolvimento econômico do Brasil, ela estará sempre ocupada com "assuntos femininos", ou seja, problemas relacionados à esfera privada, ao lar, os quais vão da execução das lides domésticas até a resolução de problemas familiares alguns dos quais causados por seu próprio pai.
Álvaro, o patriarca da família Galhardo, continua dando dores de cabeça à família, mais precisamente a Nica, já que é a ela que ele sempre recorre quando está em situação bastante difícil de ser resolvida. E Nica, conhecendo a desonestidade de Álvaro, mas temendo "o risco de uma desmoralização pública ou de uma vingança direta" (CC, p. 149), procurava concertar os descalabros do pai:
No fundo, fizesse o pai o que fizesse, ela não podia sentir por ele senão a afeição que lhe tivera desde pequenina, que ele bem merecera a ela e às irmãs, servindo-lhes de pai e mãe, com uma solicitude constante. E, como tantas vezes acontecera, veio a Nica uma conformidade com o que Álvaro era, e que seria sempre, que não podia deixar de ser, até o fim da vida. Perdoou-lhe mais uma vez, como lhe perdoara em tantas outras ocasiões, como sempre também lhe perdoaram as irmãs, e como ele antes disso se fizera perdoar por todos os que lhe queriam bem (CC, p. 149).

Dentre os problemas familiares para os quais Nica busca solução, o mais difícil seja, talvez, acabar com a animosidade de seu cunhado para com ela e Rabelo. Fernando, preso às suas idéias esquerdistas, reprovava "os gastos suntuários e a vida ostentosa dos Rabelo". Para Nica, essa atitude dele não passava de resquícios do amor que nutrira por ela ou inveja da vida de luxo que Rabelo pôde lhe propiciar, ao contrário de Fernando cujo ordenado apertado não podia oferecer o mesmo a Iolanda:
Nunca Iolanda comparava seu padrão de vida com o de Nica. No entanto a diferença de condições havia aparecido, grande, desde o duplo noivado. Faltou então a Nica a auréola da visível felicidade que embelezava ainda mais Iolanda, mas Iolanda, por outro lado, não tivera presentes como os seus. Admirou, sem sombra de inveja, a barata de esporte que Nica, nos primeiros dias de noivado, ganhou e que aprendeu a guiar em poucas lições, as jóias que recebeu, além dos mil desejos realizados pelo Rabelo com[o] a magia dos contos de fada (CC, p. 139).
Além disso, as diferenças entre as irmãs irão se acentuar não só pelo aspecto econômico, mas também pelo aspecto físico e comportamental. Na primeira parte do romance, quando ambas ainda eram as filhas de Álvaro Galhardo, Nica se apresentava como a irmã menos bonita e Iolanda como a mais bonita, de uma beleza que chegava a encantar todos que se aproximavam dela. Agora casada, Iolanda, ainda que conserve um pouco da beleza de solteira, pois "estava uma linda e tranqüila matrona", já sente as transformações em seu corpo, mas isso não a incomodava, já que "meus dois filhos valem bem os quilos que ganhei" (CC, p. 138).
Nica, por sua vez, continua sendo nem feia nem bonita. Além disso, enquanto ela goza de uma liberalidade que lhe permite dirigir seu próprio carro ou ir sozinha a eventos sociais, sem a companhia de Rabelo, Iolanda se submete aos caprichos de Fernando e segue o seu papel de esposa submissa, devotada ao lar e aos filhos e incapaz de formular pensamentos próprios:
Iolanda era incapaz de falar três minutos sem introduzir o nome de Fernando. Repetia, com convicção, frases que ele dissera, opiniões que ele externara. Não lhe encontrava defeitos. Não desejava nada na vida além da continuação da felicidade que lhe coubera. Para ela, o universo inteiro limitava-se ao marido e aos filhos. Tudo girava em torno dos seus três entes queridos e da relação que as pessoas ou acontecimentos pudessem ter com eles. Nem lhe ocorreria sentir descontentamento pela modéstia de seu lar, porque Fernando era, por teoria, contra a riqueza e o luxo (CC, p. 139).
Noutras palavras, Iolanda, por causa do marido, é obrigada a viver uma vida marcada por privações materiais e afetivas e, assim, é impedida de desfrutar de alguns privilégios que Nica, sua irmã abastada e mulher "moderna" e "festiva", poderia lhe propiciar:
– Desculpe-me se a aborreci demais, Nica. É preciso tomar-me como sou – um homem rude que diz o que pensa. E perdoe-me dizer-lhe ainda outra coisa de que você não vai gostar. Essa jóia que você trouxe para Iolanda é bonita demais. Aborrece-me que ela receba presentes como eu não lhe posso dar. Espero que você compreenda meu ponto de vista e não tome essa recusa como sendo falta de apreço pelo presente, ou de amizade por você.
[...]
– Iolanda é submissa demais, disse nica.
– Demais, não. Iolanda é como dever ser. Só uma esposa submissa e sem modernismo, como ela, poderia ter-me feito feliz.
[...]
– Qual submissa! É porque combinamos bem.
Não. É porque você gosta de mim (CC, p. 163-164).
O discurso de Fernando está impregnado de idéias que reiteram a ideologia do patriarcalismo. A esposa deve ser fiel a seu marido, não contrariá-lo e seguir as suas ordens e desejos para que ele seja feliz, não importando se a vida que ela leva a torna feliz ou infeliz, já que o importante é fazer o marido feliz, independentemente do preço que a mulher é obrigada a pagar. Por isso, ao ser indagada pelo filho sobre por que, mesmo gostando do presente que recebera de Nica, não o aceitou, a resposta de Iolanda foi: "– Gostei muito, filhinho. São lindos. Mas gostei mais de fazer a vontade de papai" (CC, p. 165). A fala de Iolanda deixa entrever o pressuposto "de que a mulher em si não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente de si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido" (RAGO, 1997, p. 65).
Talvez a maior diferença entre Iolanda e Nica esteja no fato de uma ser mãe e a outra ter tido esse "direito" negado. A primeira tivera dois filhos, Fernandinho e Maria Iolanda, enquanto a segunda perdera o seu primogênito assim que ele nasceu e não pudera ter mais nenhum outro filho, pois ficara impossibilitada de engravidar novamente:
Nica não tinha filhos. O menino que ela perdera teria agora seis anos, a idade de Fernandinho. Ela e Iolanda, que casara uns seis meses depois, haviam esperado, juntas, a primeira maternidade. Haviam-se ocupado juntas dos dois enxovaizinhos, e recebido, como presente de Tia Chiquinha, dois berços iguais. Nos planos de Nica, seu primogênito era homem e tinha o talento e o dinamismo de Rabelo. Queria que se chamasse Nestor, como o pai. Apesar de achar muito feio o nome, Nica dizia que ninguém tiraria ao pequeno a glória de ser Nestor Rabelo Filho.
Veio a criança, homem, como esperava, grande e bem constituído, mas morreu ao nascer e, por pouco, a mãe não morreu também. Nica soube depois que nunca teria outro filho (CC, p. 131).
O desejo de ser mãe e de cumprir com o seu "dever de fêmea", apesar das impossibilidades biológicas, é concretizado no acompanhamento do crescimento do sobrinho. Fernandinho será para Nica o filho que ela perdeu:
Nica acreditava querê-lo como se fosse o Nestorzinho, com um afeto inteiramente diferente do que sentia pela sua irmãzinha, Maria Iolanda, dois anos mais moça ou pelo gordo bebê de Geninha. Com o passar do tempo chegou a confundi-lo perfeitamente com o filho que não vivera. Não imaginava o Nestorzinho senão igual em tudo ao Fernandinho, desempenado e garboso como ele, e com toda essa vivacidade que fazia o menino de Iolanda antes parecer filho que sobrinho (CC, p. 132).
Nica devota-se tanto a esse sobrinho que é a ela que Iolanda, a mãe, sempre recorre quando ele adoece, pois "Nica tornou-se entendida em puericultura só de acompanhar os progressos e os sintomas [de Fernandinho] e de lhes procurar as explicações, em vários livros médicos para jovens mães" (CC, p. 131). Além disso, o nascimento de Fernandinho fez com que Nica estabelecesse uma intimidade no lar de Iolanda e Fernando. Apesar disso, continuava a existir animosidade do pai do menino pelos seus parentes capitalistas, a qual se torna mais intensa quando Fernando passa a liderar um movimento, dentro das forças armadas, de oposição às concessões feitas pelo governo brasileiro para a implantação da Companhia de Mineração e Transporte de Rabelo:

– Não há duvida, respondeu Fernando, em tom de quem não se retratava, nem cedia. Seu marido prestou grandes serviços, mas também não se empobreceu prestando-os. E neste negócio de agora, você sabe quanto ele deve ganhar? Você calcula sequer?
[...]
– Há muita gente boa, [...], gente de boa fé que pensa que a enorme extensão de terras que foi concedida a M. e T. para a abertura da estrada, poderia ser aproveitada pelo próprio governo. É um lucro seguro de o governo abre mão em favor de particulares, uma verdadeira capitania que é dada à M. e T., de mão beijada, como os Reis de Portugal davam aqui a seus amigos. Desculpe eu falar com essa franqueza, mas eu julgo que esconder a verdade aos amigos seja o pior modo de servi-los (CC, p. 160).


Acreditando que a empresa de mineração pode prestar um desserviço à segurança nacional, Fernando se articula com uns amigos para pedirem ao Ministro da Guerra a anulação da concorrência. Inconformado com o fracasso dessa reunião, Fernando se oferece para proferir uma conferência na Sociedade Brasileira de Debates sobre a organização da empresa metalúrgica em solo brasileiro. Se antes as oposições de Fernando não poderiam surtir efeito contra a M. e T., agora, falando em um espaço público como o da Sociedade Brasileira de Debates, uma de cujas grandes vitórias foi obrigar uma companhia de seguros a "rever seus estatutos e a reduzir seus lucros em favor dos segurados" (CC, p. 180), elas iriam criar "um escândalo, um escândalo que seria ao mesmo tempo de família e financeiro" (CC, p. 181).
Inamovível em sua posição, Fernando, para quem "crenças e opiniões não se governam por parentesco" (CC, p. 184), poderia trazer "grandes aborrecimentos e muita luta pela frente" adiando e, talvez, chegando a conseguir anular o contrato de concessão. Isso fez acentuar ainda mais as rusgas familiares entre Fernando/ Iolanda e Rabelo/Nica, principalmente porque Rabelo sabe que não tem mais tempo para esperar que negócios daquela magnitude demorassem a acontecer, pois ele não tem mais idade para isso, está velho e cansado, e o futuro tornou-se-lhe mais imprevisível:
– Quando eu era mais moço, continuou Rabelo, eu não me incomodava com atrasos, porque podia esperar. Eles vinham sempre – atrasos, dificuldades, empecilhos. Eu dizia: "Se eu não fizer agora, faço mais tarde. Não desisto." Sempre tive muita paciência. Mas agora, na idade a que cheguei, não posso mais contar com o tempo. É um fator de menos que eu tenho do meu lado. Se isso não se fizer agora, não poderei mais fazer, e eu sempre disse que a instalação da metalúrgica no Brasil seria o último esforço de minha carreira (CC, p. 191).

No entanto, a maior preocupação de Rabelo é que, não sendo implantada a companhia, ele perderia toda a sua fortuna e, assim, deixaria Nica na miséria. Ao saber dessa preocupação, Nica "vexou-se de reconhecer, no fundo de si mesma, uma grande apego a esta vida de conforto e ostentação que levara desde seu casamento" (CC, p. 193) e passou a sentir repugnância por aquela vida, como se sua casa "que, nos menores detalhes, desde a escolha da decoração e dos arranjos, lhe deram tanto prazer, montar, governar, conservar, enfeitar, se tornasse subitamente velha [...]" (CC, p. 194).
Diante da falência iminente, Nica, todavia, viu que "não lhe custaria deixar soçobrar esta riqueza supérflua e trocar seu papel de mulher parasita, ociosa, por outro, em que seria uma mulher de trabalho" (CC, p. 196). A atitude dessa personagem apresentada pelo narrador é importante porque nos apresenta uma dicotomia interessante: mulher de casa X mulher de trabalho. Segundo o que nos apresenta o narrador, a primeira é vista como ociosa enquanto a outra é valorizada uma vez que faz parte do mercado de trabalho.
Dessa forma, no discurso do narrador, ser dona-de-casa é visto como um predicado menor para as mulheres. A abnegação que muitas delas "devotam" ao lar, ao marido e aos filhos, ou seja, às pequenas "bagatelas" domésticas, é considerado algo muito desvalorizada. Dedicar-se ao lar, assumir o posto de rainha e anjo do lar sempre foi visto como algo negativo não só porque é uma espécie de tortura, uma rotina interminável que, a cada dia, é recomeçada, mas também porque não propicia às mulheres status social. Essa é, então, uma instância de poder marcadamente insatisfatória para as mulheres. Essa insatisfação advém, talvez, do fato de que, apesar da complexidade que envolve o processo de cuidar da casa, dos filhos e do marido, essa atividade não só, conforme dissemos, não propicia às mulheres nem riqueza nem prestígio social, como também o controle que elas exercem dentro da esfera familiar é mediado pelo controle que o marido ou o pai, chefe do grupo familiar, exerce sobre elas. Por isso, Woolf (2004, p. 26) indagava: "O que estavam fazendo nossas mães que não tiveram nenhuma riqueza para nos legar? Empoando o nariz? Olhando as vitrinas das lojas?".
Voltando à atitude de Fernando, que desencadeara toda a tensão por que Nica e Rabelo estavam passando, ela era vista por ela e por Álvaro como um dos piores defeitos: a deslealdade. Entretanto, os laços de família, aos quais Fernando se dizia indiferente, fizeram com que o seu posicionamento fosse revogado, o que aconteceu quando, adoecendo Fernandinho, que fora acometido por uma infecção laríngea aguda, ele fora salvo pelos cuidados de Nica: ela não só lhe adivinhou, devido ao hábito de ler, depois do nascimento do sobrinho, livros de medicina infantil, a causa da doença, chamada de crupe; como também trouxe um médico para administrar o tratamento.
Dessa forma, destruindo o texto de sua conferência, isto é, dando fim ele mesmo ao projeto a que tanto se apegara, Fernando não só se sente quites com a cunhada como também se torna aos olhos dela um homem decente que deixou os laços familiares falarem mais alto: "Fora ele mesmo quem se deixara vencer, cedendo aos laços de família. Nica estendeu-lhe a mão em agradecimento. Nunca imaginara este final. Fernando, então, no fundo, era um homem decente" (CC, p. 211).
Para Manoel Carlos, novelista brasileiro, o capítulo que retrata a doença de Fernandinho é um dos mais magistrais:
[...] a doença de Fernandinho, filho de Fernando e Iolanda, nos aflige de tal maneira, com tanta força nos atinge e nos enternece, que chegamos a suspender a leitura por um instante, a recobrar o ar, tão angustiados ficamos. Trata-se de uma das madrugadas mais pungentes que um romance conseguiu retratar: o desespero mudo da mãe, a solidão do pai, a vigília da tia, a humanidade do médico, o olhar real do menino doente. Simplesmente magistral.
Esse evento se revela também um elemento importante não só porque nos põe, como leitor, irmanados com o desespero dos pais e da tia diante do possível risco de morte do filho/sobrinho; mas também porque, do ponto de vista estrutural, ele desencadeará novos rumos para o enredo do romance, uma vez que, conforme já dito anteriormente, Fernando, antes indiferente aos laços de família, deixa-se ceder por eles: "[...] Fernandinho está vivo e eu me julgo obrigado a fazer isso, eu devo isso a você por tudo que passamos nesta noite horrível" (CC, p. 211), e rasgas as folhas da conferência que proferida contra a concessão feita a Rabelo para a implantação da empresa metalúrgica M. e T.
Mais uma vez, os problemas ou incidentes que poderiam causar a vergonha ou a dissolução dos laços familiares são resolvidos por Nica. Entretanto, mal findado um desses problemas, outro logo se avizinha. "A vitória de Rabelo já era questão de dias, a concessão um caso resolvido. [...]. Parecia que não restava ninguém no Brasil que deixasse de compreender as vantagens que a Companhia de Transporte e Mineração ia trazer para o país" (CC, p. 227). Só que Rabelo, que apresentava uma fisionomia que "acusava o esforço desses lances finais da grande luta" e que já pressentira que estava chegando a sua hora, sofre um enfarte antes do jantar que seria oferecido na embaixada americana em homenagem a um banqueiro americano e ao qual ele não poderia faltar, já que a sua ausência poderia comprometer o decreto de concessão para a implantação da Companhia de Transportes e Mineração. Para impedir isso, Rabelo faz um último pedido a Nica: ir ao jantar sem a presença dele.
Diante desse pedido inusitado, Nica, que queria estar acompanhando o marido moribundo, reluta em obedecer, mas ela "sofria dobradamente dessa hesitação por ser uma mulher que sabia sempre o que devia fazer em todas as circunstâncias, e não costumava conhecer hesitação" (CC, p. 249). Por isso, essa situação para Nica se torna mais dramática, pois ela está dividida entre prestar assistência ao marido ou ir ao jantar para evitar que desconfiem do estado grave de Rabelo. Mas a situação se torna ainda mais dramática, pois, diante da morte iminente do marido, Nica vê a sua vida passada a limpo e se arrepende do "tempo perdido em coisas inúteis, e que a privavam da companhia de Rabelo – em costureiras, em cabeleireiras, em relações sem interesse" (CC, p. 253).
A percepção dessa sua condição feminina lhe traz "um gosto que lhe parecia de cinzas" (CC, p. 258). Nica vê, agora, que as chama que marcaram a sua juventude, que mantiveram em pé aquele mundo representado por sonhos e construído por futilidades, cessaram, reduziram-se a cinzas. Tudo, agora, passava a pertencer "a outra vida, a uma vida que passara". Noutras palavras, é possível afirmar que, diante dessa situação, a esfera (da vida) privada não só se revela como um espaço de poder (ou seria apenas da presença?) feminino, mas também como locus de alienação das mulheres.
Devotadas à execução de atividades pré-determinadas, bordar, cozinhar, desenhar; as mulheres eram impedidas de refletirem sobre seu papel de coadjuvante, eram incapazes de assumirem a direção de suas vidas e de se perceberem como um grupo social oprimido. A falta dessa tomada de consciência contribuiu para o encarceramento da mulher da intimidade do lar. Com a morte de Rabelo, a vida de Nica, que vinha seguindo a ordem natural das coisas, isto é, cumprindo o papel sagrado de filha, esposa e dona-de-casa, sofre, portanto, uma grande transformação, e ela se vê obrigada a se queimar em sua própria chama, já que, como afirma Nietzsche, não podemos nos renovar sem primeiro nos tornarmos cinzas:
Sentia-se realmente desligada do mundo, e de tudo a que [...] ela já dera muita [importância]. Repudiava agora aquilo a que antes dava valor. Dessa vida que ardera e já passara, não via mais senão as cinzas, que restavam do fulgor, e que se estendiam diante dela, sem nenhum traçado, submergindo o que fora seu universo (CC, p. 264).
Mesmo assim, em meio às cinzas desse mundo que um dia fora chama, que tivera fulgor, Nica alimenta a esperança de um novo começo, já que ela "via, pela janela, que o dia estava claro e bonito" (CC, p. 264).

VOZES DA ALIMENTAÇÃO

Marcelo Medeiros da Silva

I. INTRODUÇÃO


Durante muito tempo, escrita e saber estiveram – e ainda, talvez, continuem – relacionados ao poder e foram usados como formas de dominação e de exclusão de determinadas vozes que tentassem ecoar algum som em meio ao silêncio que era imposto para que se mantivesse a ordem social em uma sociedade de base falocêntrica, patriarcal, machista e sexista. Mesmo assim, o discurso hegemônico do patriarcalismo não conseguiu abafar determinadas vozes, principalmente de algumas mulheres que não estavam contentes em serem rotuladas de o segundo sexo e que, por isso, se negaram à subordinação.
Por causa, dentre outros fatores, das tentativas de subversão à ordem do pai, a integração de mulheres/escritoras ao universo da escrita foi marcada por uma trajetória bastante dolorosa, principalmente porque escrita e saber, além de serem usados como forma de dominação, "ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até mesmo sentimentos esperados em determinadas situações" (TELLES, 2002, p.402), eram tidas como ferramentas exclusivas do espaço masculino. Por isso, durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação.
Dentro do cenário literário, a escrita produzida por mulheres teve – e continua tendo – de conviver com uma política de ocultamento que trouxe conseqüências quase que irreparáveis. Muitas foram as mulheres que, embora com a pena em riste, não puderam se expressar e tiveram sua obra, sua intelectualidade assujeitadas ao Outro, o sujeito masculino. Por isso, persiste a necessidade de estudos que possam, segundo Schneider (2000), reconstruir a história literária produzida por mulheres, pondo em evidência o percurso, as dificuldades, os temores, as estratégias para romper o confinamento em que viviam e, ao mesmo tempo, promover a revalorização dessa literatura que no passado não recebeu devida atenção.
Nesse sentido, é preciso estudar os textos não-canônicos para que a história das mulheres e a de sua produção literária possam ser reconstruídas, o que pode transformar a visão tradicional da própria história literária a fim de que esta passe a levar em conta a produção literária de mulheres que, em meio às pressões de uma sociedade patriarcal, ousaram fazer da pena bandeira de luta, ainda que tenham, em seus escritos, registrado ou até mesmo sucumbido aos preconceitos dessa sociedade.
Nessa empresa, ao nos debruçarmos sobre a produção literária de Carolina Nabuco (cf. SILVA, 2007a; SILVA, 2007b), esperamos estar contribuindo com os estudos que objetivam dar visibilidade às numerosas autoras que não figuraram nas histórias literárias brasileiras da época nem nas posteriores e, assim, trazer à tona uma memória literária feminina na literatura brasileira que vem sendo negligenciada ao longo dos séculos. O regaste de produções femininas é importante porque, por um lado, permite-nos a recuperação de uma identidade feminina há muito silenciada e, por outro lado, permite:
o desenvolvimento de uma arqueologia literária que resgatasse os trabalhos das mulheres, que de diversas formas foram silenciados ou excluídos da história da literatura. Neste sentido, engaja-se no trabalho de recuperação de uma ‘identidade feminina’ que aponte para as diversas formas de sua experiência, rejeitando, enfaticamente, a repetição e reprodução dos pressupostos mitológicos da crítica literária tradicional, que, via de regra, identifica a escrita feminina com a "sensibilidade contemplativa", a "linguagem imaginativa" etc., bem como as diversas formas como a biologia, a lingüística e a psicanálise vêm definindo a especificidade da linguagem feminina (HOLLANDA, 1994, p.03).
De acordo com Carvalho (2001), resgatar textos de escritoras, produzidos em períodos anteriores aos movimentos sociais da década de 60 do século passado, é, dentre outros aspectos, uma rara oportunidade de trazer a lume a produção intelectual de todo um grupo social marginalizado pela cultura patriarcal hegemônica para a qual as mulheres, não sendo capazes de construir e elaborar aspectos de nosso imaginário social, já que estas eram uma tarefa masculina, deveriam preocupar-se apenas com as prendas domésticas, visto que o lar era sobretudo o espaço de confinamento para muitas mulheres que eram incorporadas e consolidadas ao marido ou ao pai. Na empresa de resgate de textos de autoria feminina e de construção de uma memória literária feminina brasileira, este artigo procura estudar, a partir do Meu Livro de Cozinha (1977), da escritora fluminense Carolina Nabuco, como é possível perceber traços do feminino mediante a leitura de "simples" receitas culinárias.
Aqui, cumpre esclareceremos em que sentido estamos usando o termo "feminino". Comprometido com uma carga semântica mistificadora, este vocábulo é visto, tradicionalmente, como equivalente a delicado, superficial, sentimentalóide. Entretanto, neste trabalho, deixando de lado essa carga pejorativa, usamos este termo para designar, por ora, tudo aquilo que diz respeito à mulher, ou seja, "‘feminino’ despojadamente se refere ao sexo feminino, e, quando um livro é de autoria feminina, significa, apenas, que foi escrito por uma mulher" (XAVIER, 1991, p.11), já que, como reitera essa autora, considerando-se a tênue relação ente sujeito e linguagem, "quando uma mulher articula um discurso, este traz a marca de suas experiências, de sua condição" (XAVIER, 1991, p.13). Experiências e condição femininas estão plasmadas no léxico que compõe uma receita, visto que esta resiste, na maioria das vezes incólume, ao tempo e, por isso, traz em si registros de uma época, de hábitos a que não é possível ter acesso exceto pelo que está registrado nas receitas:
Em compensação, através das receitas – algumas delas segredos de família –, é uma arte que resiste ao tempo, repetindo-se ou recriando-se, com a constância das suas excelências e até das suas sutilezas de sabor; afirmando-se, por essa repetição ou por essa recriação. Numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas nem capitulando, senão em pormenores, antes as inovações, que faltam às receitas de outros gêneros (FREIRE, 2007, p.32; grifos meus).
Esclarecido isso, o presente texto está dividido em três secções. Na primeira, construímos a biografia da escritora Carolina Nabuco ao mesmo tempo em que tecemos algumas considerações gerais sobre a sua obra que compreende romances, biografias, contos e ensaio. Na segunda, argumentamos sobre a relevância de, na empresa de construção de uma memória literária feminina, estudarmos outras fontes que, durante muito tempo, foram vistas como não-científicas. Por fim, analisamos, na última secção, o livro em pauta, evidenciando traços do feminino.
II. Carolina Nabuco: esboços de uma fortuna crítica


Romancista, memorialista, biógrafa e mulher de grande cultura, Maria Carolina Nabuco de Araújo nasceu em 1890 e faleceu em 1981 (COELHO, 2002). Filha de D. Evelina Torres Ribeiro Nabuco e de Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, escritor e senador do Império, a cujo nome sempre esteve atrelada como se fosse uma sombra do próprio pai, Carolina Nabuco, segundo Schumaher e Brazil (2000), consagrou-se por possuir um estilo simples e erudito, rico e profundo em conteúdo.
Ao falar da história de seus livros, Carolina Nabuco afirmou que sua vocação pelas letras despontou assim que aprendeu a ler e a escrever. Ela atribui isso à influência do pai, "que sempre via com a pena à mão". Além disso, confessa em Oito décadas, livro de memórias que integra o seu acervo literário, que "entre os vários gêneros literários que tentei nenhum me atraía como o da ficção. Nos meus anos de adolescência, na primeira década do século, quando não existiam ainda nem cinema nem televisão, a juventude tinha de se satisfazer com a leitura de obras de ficção" (NABUCO, 2000, p.264).
Esse seu desejo pela leitura de obras de ficção fomentou um outro: o de escrever ficção. Nessa empresa, ela empreendeu algumas tentativas vãs. Apesar dos insucessos de início, alimentava o desejo de se tornar escritora. Este era, conforme afirma em Oito décadas, a sua mais cara ambição de menina, embora reconhecesse que ainda lhe faltavam "experiência e técnica para fazer coisa prestável". Por isso, continuava, na busca pela experiência e técnica, escrevendo, primeiro em inglês e francês, línguas em que fizera seus estudos, e, depois da morte do pai, em português. Essas suas primeiras investidas literárias eram todas narrativas curtas com as quais não pensava em ganhar destaque.
Para Carolina Nabuco, só pertenciam à classe de obras de arte, ou seja, ao que ela chamava de verdadeira literatura, a poesia e a ficção. Por isso, "quando eu contemplava a possibilidade de me tornar escritora [...], desejava infinitamente mais aparecer como romancista do que como historiadora ou ensaísta" (NABUCO, 2000, p.266). Entretanto, a sua estréia no campo das letras deu-se com o lançamento de uma biografia: A vida de Joaquim Nabuco (1929). Esta que é considerada por sua própria autora o seu livro e que lhe consumiu oito longos anos de intenso labor. A vida de Joaquim Nabuco, conforme afirmam Schumaher e Brazil (2000), fez com que o poeta Alberto de Oliveira liderasse um movimento para que Carolina Nabuco fosse eleita para a Academia Brasileira de Letras. No entanto, a escritora, "considerando que a academia, nos termos do estatuto, era reservada apenas a escritores, não aceitou o convite formalizado pelo poeta" (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p.141).
Após o lançamento de A vida de Joaquim Nabuco, que foi, à época, um êxito de livraria, pois foram vendidos, em duas edições, mais de quatro mil exemplares, vieram somar a essa pobre "bagagem literária", palavras de Carolina Nabuco, outros livros que não biografias: A sucessora (1934) e Chama e cinzas (1947). Sobre a gênese do primeiro, a sua autora afirmou que ele, inicialmente, foi planejado como um conto que se chamaria "O retrato da primeira esposa", mas que, aos poucos, foi crescendo até se tornar o romance.
Apesar da boa recepção da crítica que lhe tecera alguns artigos elogiosos, A sucessora só alcançou "boa venda alguns anos mais tarde e por um motivo incidental": sua semelhança com o romance mais falado na época – Rebecca, da escritora inglesa Daphne du Maurier. Este livro alcançou um sucesso mundial quase sem precedentes e serviu como inspiração para um filme magistral: Rebecca, de Alfred Hitchcock. Para muitos, Carolina Nabuco havia sido plagiada pela escritora inglesa.
Simultaneamente à composição de seu segundo romance, Carolina Nabuco desviou-se um pouco e escreveu um livro de instrução religiosa, Catecismo historiado – doutrina cristã para primeira comunhão (1940), e mais duas biografias: A vida de Virgílio de Melo Franco (1962) e Santa Catarina de Sena (1957). Estes dois últimos livros "nasceram de uma resolução súbita de minha parte, resultante, em ambos os casos, de uma emoção que me pôs logo a pena à mão, deixando por algum tempo o romance em que eu trabalhava" (NABUCO, 2000, p.270).
Enquanto escrevia essas biografias, Carolina Nabuco, não abandonando inteiramente a ficção, escreveu uma história e outra que foram reunidas no livro O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969). Um outro livro escrito por ela foi Retrato dos Estados Unidos à luz de sua Literatura (1967). Este livro, pertencente ao gênero crítica literária, reúne, segundo a sua autora, textos sobre autores americanos, apontando o que existe de mais típico ou mais altamente americano nesses autores.
Além de ficção, biografia e crítica literária, integram o acervo de Carolina Nabuco mais dois outros livros: Oito décadas (1973) e Meu livro de cozinha (1977). O primeiro, livro de memórias, espécie de testamento literário, reúne as reminiscências de Carolina Nabuco ao longo de oito décadas, uma a menos do que ela própria viveu. O segundo apresenta algumas imagens dos hábitos alimentares brasileiros no início do século vinte e, por isso, pode ser visto como uma obra sociológica e memorialística em que vêm à tona imagens de jantares, almoços e banquetes de que participaram a autora, seus familiares e amigos.

III Das receitas culinárias: fontes alternativas na construção de uma memória feminina


Há certo tempo, inúmeros estudiosos e estudiosas vêm mostrando que, ao longo da história, as mulheres foram silenciadas e as suas produções postas à margem. No campo da literatura, por exemplo, muitos são os estudos sobre obras de autoras esquecidas que, graças ao empenho desses estudiosos e estudiosas, verdadeiros arqueólogos perdidos entre "poeiras de arquivos", estão sendo recuperadas e podem, assim, contribuir para uma revisão de nossa história (oficial) da literatura e uma possível escritura de novos capítulos. Além disso, acreditamos que a revisão de nossa literatura e o seu desdobramento em novos capítulos podem ter uma função muito maior: ajudar na reescrita da própria história das mulheres e contribuir na escrita de uma memória feminina tecida, muitas vezes, de silêncios e para o silêncio. Destinadas à obscuridade da reprodução ou postas fora do tempo ou dos acontecimentos, as mulheres foram esquecidas, silenciadas ao longo da História.
Neste sentido, o silêncio, sendo o Verbo Deus e, portanto, Homem, era, segundo Perrot (2005, p.09), o comum das mulheres: "o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento". Entretanto, mesmo emparedadas por essa política de silenciamento, as mulheres procuraram formas de subvertê-la ou de resistir a ela, fazendo do silêncio uma arma a favor de si próprias. Sobre isso, afirma Perrot (2005, p.10):
Evidentemente, as mulheres não respeitaram essas injunções. Seus sussurros e seus murmúrios correm na casa, insinuam-se nos vilarejos, fazedores de boas ou más reputações, circulam na cidade, misturados aos barulhos do mercado ou das lojas, inflado às vezes por suspeitos e insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinião. Teme-se a sua conversa fiada e sua tagaralice, formas, no entanto, desvalorizadas da fala. Os dominados podem sempre esquivar-se, desviar as proibições, preencher os vazios do poder, as lacunas da História.
No caso da literatura, vivendo numa espécie de letargia que as impedia de criar, nomear-se, nomear as coisas e ser, sobretudo, procriadoras de seus próprios discursos, textos e pensamentos, as mulheres/escritoras, ao adentrarem na cena literária, procuraram se insurgir contra uma sociedade falocêntrica responsável pela criação e perpetuação de formas discursivas por meio das quais os homens procuraram impedir a emancipação das mulheres. Estas, diante de uma sociedade que toma(va) o masculino como ponto de referência, foram, a princípio, obrigadas a silenciarem-se e a assumirem como valores femininos outras marcas: a escuta, a espera, o guardar as palavras no fundo de si mesmas, aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se, calar-se. Tudo isso para que o domínio masculino sobre o feminino permanecesse como algo imutável e natural, impedindo, assim, que as mulheres construíssem novos valores sociais, nova moral e nova cultura.
Dessa forma, assim como não era em todo espaço social que as mulheres circulavam, a cena literária também não era espaço para muitas delas que, a partir do século XIX, quando muitas passaram a escrever e publicar tanto na Europa quanto na América, tiveram de ascender à palavra escrita numa época em que, apesar da valorização da erudição, lhes era negada educação superior, ou mesmo qualquer educação, a não ser a das prendas domésticas.
Excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam, portanto, enredadas e constritas pelos enredos da arte e ficção masculinas, já que estavam sujeitas à autoridade/autoria masculina. Isso fez com que, como afirma Telles (2002), a conquista do território da escrita fosse – e continue sendo – longa para as mulheres do Brasil cuja luta para fazer parte de um espaço, considerado essencialmente masculino, já dura mais de século.
Se o acesso ao livro ou à escrita (literária, sobretudo), "modo de comunicação distanciada e serpentina, capaz de enganar as clausuras [e de] penetrar na intimidade mais bem guardada" (PERROT, 2005, p.10), foi-lhes negado, era preciso procurar outras formas para falarem de si mesmas e para deixarem, ao menos, indícios, vestígios de uma presença e memórias femininas que, apesar de esgarçadas, foram resistindo não só ao tempo mas sobretudo às políticas de silenciamento e ocultamento.
Nesse sentido, a consideração crescente pela vida privada, familiar ou pessoal, fez com que, segundo Perrot (2005), os estudiosos e estudiosas lançassem olhares sobre fontes vistas, negligentemente, como não-oficiais: cadernos de receitas, álbuns de fotografias, diários íntimos, cadernos de anotações, cartas. Esses são alguns exemplos de fontes de que as mulheres se valeram para resistirem "à impossibilidade de falar[em] de si mesma[s] e do seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele" (PERROT, 2005, p.10). Nessa perspectiva, essas fontes tidas como não-oficiais são uma via alternativa para o resgate do que Perrot (2005) denomina de práticas da memória feminina, as quais, por sua vez, acreditamos, podem revelar traços do feminino, sobretudo em esferas privadas.
Dessa forma, como fomos forjados dentro de uma tradição que cristalizou certas formas de ser e existir e canonizou, por sua vez, determinadas fontes para estudos científicos, é preciso, pois, fazer ouvir os murmúrios de outras fontes, dar voz ao silêncio que, durante muito tempo, foi a marca que as singularizava. Sendo assim, se certas fontes foram credenciadas, outras, tidas como ordinárias, no sentido emprestado a este termo por Certeau (2005), não receberam as credenciais para serem reconhecidas como objeto de registro histórico e, portanto, tomadas como elementos de análises científicas, visto que foram, de chofre, denominadas como insignificantes. No entanto, como afirma Giard (2005, p.217), é preciso:
aprender a olhar esses modos de fazer, fugidios e modestos, que muitas vezes são o único lugar da inventividade possível do sujeito: invenções precárias sem nada capaz de consolidá-las, sem língua que possa articulá-las, sem reconhecimento para enaltecê-las; biscates sujeitos ao peso dos constrangimentos econômicos, inscritos na rede das determinações concretas.
Noutros termos, como as fontes "oficiais" não falam das mulheres, cujos traços foram, amiúde, apagados, tanto na esfera privada, quanto na pública, é preciso buscar fontes alternativas a partir das quais traços do feminino se fazem notar e mostram a resistência das mulheres às investidas da opressão masculina. Os livros de receitas, por exemplo, já que os tomamos como corpus deste trabalho, são fontes interessantes que nos proporcionam um raro momento para compreendermos, através de "simples" receitas ou dicas culinárias, "o que as mulheres chamadas de donas-de-casa faziam em seu cotidiano; e as vozes de seus desejos que, por sua vez, vão muito além de alimentar e alimentar-se, nos levam a muitas reflexões" (FERREIRA e MELLO, 2007).
Vistos, erroneamente, como uma fonte de informações "simples", "rápidas", "baratas" e, muitas vezes, cheias de floreios femininos, os livros e os cadernos de receitas, se tomados como corpus de estudos sérios, revelam-se como uma fonte por meio da qual é possível dar atenção às ocupações cotidianas das mulheres, ou seja, dar visibilidade a um conjunto de "trabalhos que visivelmente nunca acabam, jamais suscetíveis de receber um arremate final: a manutenção dos bens do lar e a conservação da vida dos membros da família parecem extrapolar o campo de uma produtividade digna de ser levada em conta" (GIARD, 2005, p.217). Noutras palavras, pelas receitas é possível reconstruir uma memória feminina que traga as marcas de mulheres que, através de gestos, de sabores e de composições, nos legaram saberes, principalmente nutricionais, que não podem cair no esquecimento:
Enquanto uma de nós conservar os saberes nutricionais de vocês, enquanto de mão em mão e de geração em geração se transmitirem as receitas da terna paciência de vocês, subsistirá uma memória fragmentária e obstinada da própria vida de vocês. A ritualização requintada dos gestos elementares tornou-se-me assim mais preciosa que a persistência das palavras e dos textos, porque as técnicas do corpo são mais bem protegidas da superficialidade da moda e porque aí entra em jogo uma fidelidade material mais profunda e mais densa, uma maneira de ser-no-mundo e de fazer aqui a própria morada (GIARD, 2005, p.216).
Embora as práticas culinárias insiram-se no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e, paradoxalmente, mais desprestigiado, elas são vistas como um trabalho monótono e repetitivo, desprovido de inteligência e de imaginação. São mantidas, portanto, fora do campo do saber e negligenciadas nos programas de educação dietética. Mesmo assim, "com exceção dos pensionários de coletividades (conventos, hospitais, presídios), quase todas as mulheres têm de cozinhar, quer só para suas necessidades, quer para alimentar os membros da família e seus convidados ocasionais" (GIARD, 2005, p.218). Por isso, os textos culinários produzidos por mulheres não só contribuem na busca ou reconstituição de uma memória feminina que traga à tona a importância das mulheres na formação de nossa cultura como também podem revelar muito sobre o processo mediante o qual se deu a inserção das mulheres no universo da escrita.
Como a escrita era, conforme já dito, um fruto proibido para as mulheres, era-lhes permitido, nas raras exceções, aproximar-se desse fruto desde que ele não as fizesse cair em tentação (PERROT, 2005). As mulheres podiam escrever, então, desde que os seus escritos não ferissem a moral e os bons costumes. Dessa forma, escrever, por exemplo, receitas ou registrar como manter a casa em ordem era, dentro da óptica masculina, produzir "bagatelas", ou seja, não era uma atividade perigosa. Todavia, escrevendo sobre aquilo de que estavam mais próximas, as mulheres iam, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades femininas que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Para corroborar essa nossa fala, Perrot (2005, p.13) afirma o seguinte:
O uso [da escrita], essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetização e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educação, caridade, cozinha, etiqueta...), elas se apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação – o jornalismo por exemplo – e da criação: poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais dificilmente. Debates e combates balizam estas travessias de uma fronteira que tende a se reconstituir, mudando de lugar.
Estudar textos culinários produzidos por mulheres é um bom exercício para entender as práticas da memória feminina, já que, como argutamente afirma Perrot (2005, p.33), "no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra", uma vez que não lhes foi dado poder gozar de espaço na narrativa histórica tradicional: "esta privilegia a cena pública – a política, a guerra – onde elas (as mulheres) aparecem pouco" (PERROT, 2005, p.33). Por isso, é preciso tomar como fonte textos em que a história oficial não foi escrita/inscrita e nos quais a presença feminina se faça notar, já que ela foi alijada da narrativa histórica tradicional.

IV Entre sabores e cheiros: o feminino em Meu Livro de Cozinha, de Carolina Nabuco

Estudando as intersecções entre a alimentação e as mulheres na Idade Média, Garretas (1995) chega a afirmar que, nesta época, assim como em muitas outras, as mulheres sempre controlaram os processos de produção e distribuição dos alimentos. Alimentar os filhos e os homens dos grupos familiares era, possivelmente, uma das poucas instâncias de poder econômico e social de que as mulheres dispunham com certa autonomia. Apesar disso, elas são mais associadas à preparação e armazenamento dos alimentos do que com ao próprio consumo deles: exercem um trabalho que é desfrutado por outros. Em decorrência disso, essa lhes é, então, uma instância de poder marcadamente insatisfatória.
Essa insatisfação advém, talvez, do fato de que a preparação dos alimentos não propicia às mulheres, apesar da complexidade que envolve o processo de alimentar os outros, nem riqueza nem prestígio social. O produto de seu trabalho escapa cotidianamente de suas mãos, já que é integrado ao metabolismo dos membros de sua família. Além disso, o controle que elas exercem sobre os alimentos é mediado pelo controle que o marido ou o pai, chefe do grupo familiar, exerce sobre elas. Por isso, a atividade de nutrir, dentro do plano das representações, é associada à natureza, vista como algo inerente às mulheres e, portanto, dissociada da história. Isso faz com que a habilidade feminina de fazer a compra de mantimentos, de preparar e servir a comida seja vista como uma tarefa muito elementar, convencional e prosaica demais.
Por isso, nutrir os outros, sendo visto como uma das experiências de comportamento do gênero feminino que a cultura patriarcal lhe reserva sem exceção e que cruza barreiras de classe, é recusado por muitas mulheres, uma vez que é visto como algo desgastante, menor e interminável. Todavia, se analisada por outro ângulo, a habilidade feminina de fazer a compra dos mantimentos, de preparar e servir a comida pode deixar de ser vista como uma tarefa muito elementar, convencional e prosaica demais. A cozinha, se vista como uma laboratório onde se combinam substâncias, massas, temperos e donde emanam sabores e cheiros, passa a ser um espaço onde, como revelam as receitas culinárias, o feminino se impõe e nega a passividade que lhe foi, historicamente, imposta como sua marca mais singular.
Neste caso, as receitas são provas textuais que, por meio de seus modos de fazer contendo verbos no imperativo, revelam a presença de um feminino que, conforme já dissemos, se impõe, manda e marca presença. Isso faz com que deixemos de ver a cozinha como espaço de aprisionamento da mulher, mas como um espaço onde, por meio de cheiro e temperos, nos prendem, a homens e mulheres. Como decorrência disso, as atividades culinárias são para algumas mulheres um lugar de felicidade, prazer e invenção. O ato de cozinhar, portanto, constitui um dos pontos fortes da cultura comum porque, assim como as atividades tradicionalmente consideradas elevadas, por exemplo, a música ou a arte de tecer, exige inteligência, imaginação, memória e revela trajetos do feminino em meio a atividades cotidianas:
[...] entrar na cozinha, manejar coisas comuns é pôr a inteligência sutil, cheia de nuanças, de descobertas iminentes, uma inteligência leve e viva que se revela sem dar a ver, em suma, uma inteligência bem comum (GIARD, 2005, p.220)
Neste sentido, Meu Livro de Cozinha (1977), de Carolina Nabuco, pode ser visto como um registro desta prática elementar, humilde, obstinada, repetida no tempo e no espaço, que é a arte de cozinhar. Este livro, como está escrito em sua orelha, é mais do que a reunião de receitas de pratos raros, quitutes e petiscos. Ele é "um verdadeiro ensaio sob a forma ligeira de conselhos e opiniões de uma longa experiência sobre o que se poderia chamar ‘a arte de bem receber em sua casa’". Reunindo velhas receitas esquecidas, este livro não só "ensina a preparar os mais sofisticados e internacionais menus", sem que eles percam, no entanto, pelos condimentos, temperos e outros segredos, a marca brasileira; mas também ensina como preparar o arranjo da mesa e seus ornamentos, "tudo fazendo parte afinal das misteriosas e sutis combinações da arte de viver – o que é muito mais questão de qualidade do que de quantidade".
O primeiro aspecto que chama a atenção, numa leitura mais detida, em Meu Livro de Cozinha, é a imagem presente em sua capa, reproduzida logo a seguir:


Como se pode ver, embora escrito por uma mulher, o livro traz estampado em sua capa a figura de um chef de cousine de aparência imponente lendo um suposto livro de cozinha. Devemos atentar para esta imagem por dois motivos: o primeiro diz respeito à questão da própria autoria. Expliquemo-nos: como já dissemos, quem escreve o livro é uma mulher: Carolina Nabuco, cujo nome aparece quase que invisível na parte inferior da capa e logo abaixo da figura do chef de cousine. O segundo, ainda relacionado à questão da autoria, diz respeito à presença do pronome meu no título do livro que é: Meu Livro de cozinha. Diante disso, cumpre-nos perguntar: a quem se refere este possessivo? Ao chef de cousine cuja imagem aparece estampada na capa do livro ou à mulher que assina o livro como sendo de sua autoria? Neste caso, se a resposta for a segunda, esperava-se, como somos, por ora, levados a crer, que, sendo escrito por uma mulher, o livro trouxesse como ilustração de capa a figura de uma mulher, talvez até da própria autora, cuja foto aparece na contracapa.
Outro aspecto interessante, ainda sobre a presença, ou melhor, a distribuição dos espaços das ilustrações, está ligado ao fato de que na página da introdução aparece a seguinte ilustração:


Como se pode ver, desta vez, não estamos mais diante de uma outra figura de um chef de cousine; mas, sim, a de uma mulher que, despojada da imponência que marcara a outra imagem, está com uma faca na mão cortando cebolas, ou seja, ao contrário do chef de cousine que está com um livro na mão, demonstrando ocupar uma posição mais elevada ou prestigiada do que a mulher que aparece nesta ilustração, ela está, como sugere a imagem, pondo as mãos na massa. Além desta imagem, aparece uma outra na seção intitulada de receitas. Trata-se de mais uma imagem de mulher, como podemos ver abaixo:


A mulher presente na imagem acima, embora vestida com trajes típicos ao ambiente da cozinha, traz na mão esquerda um menu enquanto, na direita, eleva um lápis à boca numa posição que transparece que esta mulher está indecisa, possivelmente sobre que receitas deverão constar no menu que ela, certamente, deverá organizar. Se lembrarmos que, como afirma Guilherme de Figueiredo, em prelibação ao livro A comida e a cozinha, que a literatura gastronômica esteve muito mais próxima dos homens, muito mais ligada ao macho, as observações feitas anteriormente não poderão sofrer objeções, sendo vistas, neste caso, como superinterpretações.
Ao estampar na capa a figura de um chef, Carolina Nabuco, talvez, estivesse, ainda que inconscientemente, reproduzindo um fato que é cultural, ou, como argumenta com perspicácia Guilherme de Figueiredo, uma ancestral divisão do trabalho – não custa lembrarmos que das três figuras que aparecem apenas em duas há a presença de uma mulher e é esta que transparece estar pondo a mão na massa.
Sob este aspecto, parece ser plausível afirmar que a cozinha também é um espaço marcado pelas relações de poder que trazem em si as marcas (das desigualdades das relações) de gênero. Para corroborar esta assertiva, cremos ser pertinente a seguinte afirmação de Guilherme de Figueiredo: "os livros de receitas contam quase sempre com a vasta contribuição feminina; os de cozinha profissional têm redação masculina, porque os machos aprenderam a escrever antes das fêmeas" (FIGUEIREDO, 1988, p.XIII).
Por outro lado, esta afirmação nos leva, diante das imagens analisadas, a uma possível contradição: o livro em análise é intitulado de livro de cozinha, mas sua redação é feita por uma mulher que, aliás, tinha muita instrução nas artes de comer e servir. Então, por que trazer em sua capa uma imagem masculina e no seu interior imagens femininas? Estaria, aqui, posta a velha dicotomia entre o público (esfera masculina = capa do livro) e o privado (esfera feminina = interior do livro)? A resposta a mais essa pergunta, talvez, seja afirmativa, se levarmos em consideração que a cozinha revela o modo como uma sociedade se estrutura:
[...] a cozinha constitui "uma linguagem na qual cada sociedade codifica mensagens que lhe permitem significar pelo menos uma parte do que ela é", isto é, "uma linguagem na qual ela traduz inconscientemente sua estrutura" (GIARD, 2005, p.246).

Neste caso, a linguagem, aqui compreendida de forma mais ampla possível, extrapolando, inclusive a esfera dos signos meramente verbais, o que nos permite incluir as imagens em pauta, "sendo parte da vida política e social, não só molda nossas percepções como é moldurada pelo social. Sendo capital na percepção da realidade, a linguagem tem sido canalizada para atender aos interesses dos grupos dominantes. Seria razoável escrever que as formações discursivas são uma réplica das estruturas da sociedade" (MOREIRA, 2002, p.121).
Saindo da esfera das ilustrações e entrando na parte textual do livro, Meu livro de cozinha apresenta, além de uma nota da editora, duas partes: a da introdução e a das receitas. Na primeira, a autora, inicialmente, apresenta um conjunto de termos franceses e os seus respectivos significados, como por exemplo: blanchir que é "ferver os alimentos em água, salgada ou não, para endurecê-los, livra-los de impurezas, ou simplesmente cozinhá-los (legumes)"; bouillon que é "caldo de carne; consommé"; braiser, isto é, "corar um alimento em panela descoberta e com gordura. Cozinhar em seguida em panela coberta e acrescentando ligeira quantidade de líquido. É o processo que conhecemos como assado de panela" (NABUCO, 1977, p.15). Ao todo, nesta seção, são apresentados 35 termos que, recorrentes na maioria das receitas presentes no livro, demarcam o espírito francês presentes nelas e em que a sua autora teve sua formação forjada.
Logo após essas dicas, segue-se uma outra seção cujo título é alguns princípios de cozinha. Aqui, está presente um conjunto de dicas que são formuladas a partir da experiência na cozinha, ou seja, a partir do pôr a mão na massa:
Só a experiência permite saber, por exemplo, que a carne de carneiro requer forno mais brando do que a carne de vaca ou de aves; que empanada de frutas requerem mais calor do que bolos grandes...
Conheço uma cozinheira que põe a mão dentro do forno e começa a contar. Se só consegue contar até 3, o forno está quentíssimo. Se vai até 20, o calor está bom para suspiros, isto é, quase frio (NABUCO, 1977, p.19).
A partir do fragmento acima, podemos dizer que as receitas ou as dicas existentes nos livros de receitas não são frutos de um único indivíduo. Elas são resultantes de experiências passadas de um para outro. Isso fica evidente em mais este trecho do livro em pauta: "cozinhar duas horas em fogo brando. A cozinheira que preparou esta sopa [de cebolas] avisa que, cozinhando demais, a carne pode tomar mau gosto" (NABUCO, 1977, p.44). Este exemplo, assim como o da citação anterior, corrobora, portanto, a afirmação de que as receitas, embora possam ser coletadas por um único indivíduo, são fontes que trazem em si mesma um conjunto de experiências que, permeadas de cheiros e sabores, são passadas, ao longo dos tempos, de um indivíduo para outro numa eterna troca de experiências a partir das quais, dependendo muitas vezes do sucesso alcançado com determinado prato, as próprias receitas são reformuladas, refeitas.
Isso decorre do fato de que o ato de cozinhar é "o suporte de uma prática elementar, humilde, obstinada, repetida no tempo e no espaço, com raízes na urdidura das relações com os outros e consigo mesmo, marcada pelo ‘romance familiar’ e pela história de cada uma, solidária das lembranças de infância como ritmos e estações" (GIARD, 2005, p.218). Nesse universo onde a experiência, na maioria das vezes, dita as normas e dela depende o sucesso final de cada receita, o contato entre a cozinheira e os ingredientes deve ser marcado por uma fina sintonia. Nesse processo, o tato, ao lado do olfato, parece, mais do que os demais sentidos, ser imprescindível: é pelo toque que verificamos se os alimentos estão prontos ou quanto tempo falta ainda para eles chegarem ao ponto.
Além dessa base eminentemente empírica, as receitas culinárias, no dizer de Giard (2005), são textos que, entre o aparentemente trivial, trazem um conjunto de saberes que exigem algumas competências: saber fazer, aprender a fazer, dizer como fazer. Ou seja, as receitas culinárias, com uma língua e um corpo próprios, trazendo segredos e convivências, são a materialização textual de uma "sucessão [de] gestos que se encadeiam, [do] hábil movimento das mãos [que] necessitam por sua vez das palavras e do texto para circular entre os que lidam na cozinha" (GIARD, 2005, p.287).
Ainda na introdução de seu livro, Carolina Nabuco apresenta uma lista com o nome de alguns temperos escrita em três línguas: português, francês e inglês, o que, conforme esclarece uma nota de rodapé, é para auxiliar aquelas "donas-de-casa que costumam procurar receitas em livros estrangeiros" (NABUCO, 1977, p.20). Seguem-se a essa lista umas notas sobre esses temperos, as quais procuram esclarecer com quais pratos eles combinam mais para que se possa realçar o gosto dos alimentos sem que as suas características sejam alteradas. Assim, é dito, por exemplo, que "coentro (parecido com a salsa) é o melhor tempero para peixe e camarão" ou que "a salsa é talvez o tempero de uso mais generalizado, deixando de contribuir ao gosto de qualquer prato e dando, com seu vivo verde, efeito mais cuidado aos pratos em que aparece picadinha" (NABUCO, 1977, p.20).
Além disso, a autora procura mostrar que alguns desses temperos são preferidos por determinados por povos na composição de certos pratos, como é o caso dos "franceses [que] nunca omitem cenoura entre os temperos, nos refogados e na cozinha" e que "para os pratos doces preferem o açúcar guardado num vidro com favas de baunilha, às essências comerciais"; ou dos holandeses que "usam cominho no pão e no queijo. Vão bem com massas, sobretudo acompanhada goulash húngaro" (NABUCO, 1977, p.21).
Após as notas sobre os temperos, segue-se uma secção denominada de menus e serviços. Nela, Carolina Nabuco, recorrendo a exemplos de uma época em que a sua casa recebiam grandes visitas ou em que ela era convidada para grandes jantares, registra mudanças nas regras de serviço de mesa e na variedade dos menus. Diante dessas alterações, ela procurou sorver "o movimento e o colorido culinário, próprios de cada época, levantando assim, para cada uma, um retrato característico" (NABUCO, 1977, p.22). A posição da autora, ao construir um retrato próprio para cada uma dessas épocas, é importante porque "os hábitos alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância, em que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias" (GIARD, 2005, p.212).
Carolina Nabuco parece ser coerente com isso ao registras as mudanças ocorridas na arte de comer e servir à mesa, as quais determinaram a passagem do hábito de servirem-se os pratos ao pares ao hábito de pratos circulantes em redor da mesa. Além disso, os menus deixaram de ser uma lista de várias páginas e emergiu uma nova figura: a dos "maîtres-d’hôtel, com seus agregados especializados". Entretanto, as mudanças apontadas por Carolina Nabuco não só demarca diferenças entre cozinhas, a da França e a da Inglaterra, por exemplo, cada uma com seus serviços singulares; mas também hábitos culturais entre determinados países. Neste último caso, tomando a Inglaterra como modelo de luxo na arte de comer e servir à mesa, Carolina Nabuco chega a fazer a seguinte afirmação:
Uma das principais diferenças, em relação aos usos do resto da Europa, era o da criadagem não usar luvas. Não faltavam ingleses maliciosos para suspeitar que, nos países latinos, as luvas serviam para esconder sujeira. A seu ver, bastava lavar as mãos e unhas com sabão... (NABUCO, 1977, p.25).
Como se pode perceber, o retrato apresentado por ela não só traz as marcas dos gostos e dos temperos de cada época, como também apresenta traços culturais diferentes de cada país, demarcando as relações de poder entre um país e outro. Veja-se que no exemplo citado anteriormente o fato de usar luvas nos países latinos era, aos olhos ingleses, uma forma que podia indicar estar escondendo sujeira entre as mãos. Além disso, ainda que, conscientemente, não seja o seu objetivo, é possível, aqui e acolá, encontrar passagens neste seu livro de cozinha que revelam os comportamentos das mulheres dentro da esfera privada da cozinha.
Muitas delas, como afirma a própria Carolina Nabuco, preocupadas em, entre listas de várias páginas, saber quais receitas comporiam o menu do almoço ou o do jantar. Ou seja, os cadernos de receitas ou os livros de cozinha revelam, na opinião de Ferreira e Mello (2007), "fragmentos de uma escrita feminina e sua relação com o mundo". Como exemplo disso, podemos citar o seguinte trecho:
Vejo agora muitas diferenças desde o meu tempo de jovem. Vejo, por exemplo, todas as mulheres, minhas contemporâneas, com a mesma silhueta delgada. Vejo em todas uma cintura finíssima, a realçar a redondeza dos quadris que traiam, alguns deles, bons apetites. A evolução que vi nascer na adolescência, e que minha admiração acompanhava, foi sempre no sentido da diminuição do peso e de centímetros, nunca no de aumento. Cabia-me apenas estranhar os cortes nas medidas que se tornavam necessários (NABUCO, 1977, p.22).
Como se pode ver, o fragmento anterior mostra como é possível, a partir de registros presentes em um "simples" livro de cozinha, encontrar marcas de como uma sociedade modela costumes para o ser feminino. Percebemos, neste excerto, como foram ocorrendo mudanças nos modos de vestir, as quais, amiúde, fizeram com que as mulheres de quadris delgados passassem a ter formas menos salientes e mais esguias, pois, como argutamente percebe Carolina Nabuco, as mudanças nos hábitos de comer e de vestir ocorreram sempre no sentido de diminuir peso e centímetros, nunca no de aumentá-los.
Neste caso, devemos reiterar que, vista como uma questão cultural, a comida, se estudada por esse viés, permite que cheguemos à memória de um grupo, de uma sociedade ao mesmo tempo em que revela o quanto ela mesma, a comida, é modelada pela cultura que revela:
Como todo agir humano, essas tarefas femininas [as da cozinha] dependem da ordem cultural: diferem de uma sociedade a outra, sua hierarquia interna e seus modos de proceder; de uma geração a outra, transformam-se as técnicas que presidem essas tarefas como as regras de ação e os modelos de comportamento que dizem respeito a elas (GIARD, 2005, p.218).

Esta parte do livro em pauta, intitulada de menus e serviços, é importante também porque mostra como comida e memória estão entrelaçadas, ou seja, os territórios da memória não são feitos apenas de lembranças, mas também de gostos, cheiros, cores, sabores, pois "o prazer de um sabor centra-se na língua e no céu da boca, embora com freqüência não comece ali, mas na lembrança" (ZINN, 2002, p.16).
Para corroborar isso, podemos trazer à tona mais um exemplo do livro em pauta no qual a sua autora diz que, quando jovem, havia sido convidada para um jantar de cujo menu ela apenas se lembrava de um épinards aux croûtons: "o preparo desta verdura deve ter sido magistral para explicar suas sobrevivências em minha memória, tantos anos depois" (NABUCO, 1977, p.27). Além desse, eis outro exemplo que demonstra como são contíguas as relações entre comida e memória:
Mas talvez a mais bonita apresentação de frutas de que guardo lembrança é a de um verdadeiro monumento de frutas descascadas. Isto foi no Chile – onde as frutas são lindas – na Embaixada do Brasil. No centro um abacaxi também descascado formava um pedestal natural para as suas folhas. Repousava provavelmente sobre uma base invisível dando altura ao monumento. As frutas (só as uvas tinham casca) eram belas e variadas – laranjas, ameixas, grandes peras, lindos pêssegos e outras daquela terra privilegiada. Gelo picado e açúcar cristal davam uma notinha de prata (NABUCO, 1977, p.212).
Nota-se, ainda na parte dos serviços e menus, uma grande recorrência de termos franceses seja para a denominação dos pratos, seja para as partes de que se compunha um menu àquela época, ou seja, um menu era, estruturalmente, composto pelos seguintes elementos: hors d’euvre d’office, premier service, coup du milieu, deuxième service, desserts assortis e , por último, vins. Entre os menus apresentados neste livro, podemos citar este que foi o do casamento de núpcias dos pais de Carolina Nabuco:
MENU

HORS D’OEUVRE D’OFFICE – Beurre frais; radis; olives; sardines; anchois et saucissons


PREMIER SERVICE – Crême de volaille à la Reine Margot; consommé de gibier à la rintanière; petites croustades à la Capucine; huîtres à la florentine; badejo à la Regence; bijupirá sauce ravigotte; longe de veau à la flamande; selle d’agneau à la purée de marrons; timballes de lapereau à la Toulouse; galantine de macuco à la Périgord; mayonnaise de poulard et salade russe.
COUP DU MILLIEU – Punch au champagne.

DEUXIÈME SERVICE – Dindes à la brèsilienne et truffées, jambon d’York à la gelée, asperges sauce Mousseline, croutes à la Richelieu, galée au Dantzig e bombe à la Siciliènne.
DESSERTS ASSORTIS –
VINS – Madère, Xerez, Bordeaux, Chateau d’Yquem, Bourgogne, Rhin, Rhum, Champagne frapp

A presença desses termos em francês é um dado importante não só porque Carolina Nabuco teve sua formação feita, em grande parte, na França; mas também porque traz em si registros de uma época, a belle époque, em que a França ditava os padrões de ser, comer e se vestir. Aliás, no campo da culinária, a supremacia francesa começou já no início do século XIX, exercendo, "graças à superioridade inconteste dos seus molhos sobre os molhos italianos" (QUEIROZ, 1988, p.55), sobre as demais cozinhas o seu domínio e influência.
Ainda nesta secção, Carolina Nabuco traz, entre dicas e recordações de antigos jantares e almoços, registros de "um mundo perdido". Ou seja, pela comida, pelos hábitos culinários, vê-se desfilar as mudanças entre gerações:
Eu sou da geração em que nenhum jantar, mesmo os de família, tinha menos de dois pratos, além da sopa. Vivi num mundo em que não faltavam bons domésticos, mesmo nas casas mais modestas. Os horários eram rigorosos e os programas de passeios não dispensavam os mais moços da pontualidade à mesa. O respeito aos pais assim o exigia e não existiam geladeiras para recurso de refeições fora de hora.
Em todas as casas, as mesas eram postas com a indefectível toalha branca adamascada. No quadro familiar de minha infância nunca faltava também a sopeira fumegante colocada em frente à dona da casa. Hoje a sopa, quando aparece (coisa que está se tornando um tanto rara), é em geral trazida já nos pratos.
A roupa de mesa que se usa hoje, sempre alegre e variada, não é tão sujeita ao trabalho especial das lavadeiras. Os tecidos brancos adamascados que ainda aparecem são apenas para servir o esnobismo (ou saudosismo) de alguns requintados... (NABUCO, 1977, p.27-28).
Pelo excerto acima, podemos dizer que os cadernos de receitas ou os livros de cozinha são também territórios de confissão. Neste caso, o ato de comer pode ver visto como "um verdadeiro discurso do passado e o relato nostálgico do país, da região, da cidade ou do lugar em que se nasceu" (GIARD, 2005, p.250).
A maior parte textual de Meu Livro de Cozinha, como já era de se esperar, é dedicada às receitas. Em cada uma das secções dessa parte, são apresentadas, de forma bastante concisa, informações, sejam culinárias, sejam "históricas", sobre os pratos que integram as receitas a serem apresentadas. Ao todo, o livro apresenta 246 receitas distribuídas, respectivamente, da seguinte forma: sopas (30); molhos (26); peixes e crustáceos (38); aves, terrines e galantines (19); vitela e carne de vaca (17); carneiro (07); porco e leitão (04); coelho e pequenos animais (06); miúdos em geral (12); ovos (05); legumes e verduras (18); soufflés (06); massas (22); aspics e chauds-froids (08); e sobremesas (28). Estas últimas estão divididas em duas secções. A primeira apresenta vinte e uma receitas de sobremesas e a segunda contém sete receitas de frutas naturais que podem ser servidas como sobremesas.
Como todo texto, as receitas culinárias têm uma estrutura própria que, segundo Giard (2005), diz respeito a quatro domínios distintos de objetos e ações: os ingredientes; os utensílios e recipientes; as operações, "verbos de ação e descrições do hábil movimento das mãos"; "os produtos finais e a nomeação dos pratos obtidos". Esses quatro elementos, encontrados em uma mínima receita, são imprescindíveis para fazer "uma descrição do modo injuntivo que suscita e acompanha a passagem ao ato, gerando, depois, no tempo exigido pelos meios indicados, o resultado prometido" (GIARD, p.288).
Sob este aspecto, podemos afirmar que as receitas presentes em Meu Livro de Cozinha (1977) não apresentam, grande parte delas, esses quatro elementos visíveis numa receita mínima. A autora, talvez isso seja uma marca de seu estilo, opta por romper com essa "estrutura padrão" para escrever receitas em que, às vezes, ficam bem nítidos os quatros domínios, como neste caso:
Pâté Adélia
(Para 10 pessoas)
700 gramas de fígado de ave.
400 gramas de carne de porco.
200 gramas de carne de vaca.
2 pães de 50 gramas (de molho
em ½ xícara de leite).
125 gramas de manteiga sem sal.
400 gramas de toucinho.
3 ovos cozidos passados na peneira ou, de preferência, no liquidificador.
Temperos para o final
3 cebolas, pimenta-do-reino, sal, noz-moscada, trufas, ½ copo de vinho Madeira.
O fígado deve ficar no leite durante uma noite. Depois passar na peneira, deixando escorrer o leite (que não se guarda).
Fritar as cebolas na manteiga até dourar. Retirar a cebola da manteiga e churrascar o fígado na mesma manteiga. Passar pela máquina ou pelo liquidificador. Uma vez se for no liquidificador, três vezes se for na máquina.
Passar (juntas) as carnes de porco e vaca. Passar o toucinho separado, misturar e guardar um pouco para forrar a fôrma.
Misturar todo o resto, menos os temperos, e passar na peneira de seda. Acrescentar os temperos; se for preciso, mais 10 gramas de manteiga derretida. Encher a fôrma (untada com toucinho). Cozinhar em banho-maria 1 hora e 15 minutos. Espetar um palito para verificar se está cozido. Não deixar escurecer demais.
Cercar o patê com losangos de gelatina, feitos com um litro de caldo de galinha, 7 folhas de gelatina, ½ copo de vinho Madeira (NABUCO, 1977, p.149-150).
Outras vezes, torna-se difícil perceber esses quatro domínios, principalmente o domínio dos utensílios e recipientes, aos quais quase não são feitas referências, mas que podem ser depreendidos a partir do que é dito, ordenado, aconselhado, relembrado nessas recitas. Como exemplo desse último caso, podemos citar a receita a seguir cuja estrutura é semelhante à da maioria das receitas existentes no livro em pauta:
Outra sopa de alhos (de Júlia)
Pôr em água fervendo os ossos e a carne de uso diário e acrescentar muito alho (uns doze dentes). Depois de ferver bem, acrescentar uma cebola, uma cenoura, um nabo, três tomates, alho-poro e aipo, se houver. Ferver bastante. Mais tarde, acrescentar um pedaço de abóbora e batata. Coar e servir (NABUCO, 1977, p.43).
Essa receita, como se pode ver, não possui, em separado, os domínios dos ingredientes, dos utensílios, do fazer e do servir. Pelo contrário, ela possui uma estrutura muito concisa que, a nosso ver, valoriza mais o domínio do fazer, ou seja, dos "verbos de ação e descrições do hábil movimento das mãos" e é essa estrutura que apresentam a maioria das receitas de Meu livro de cozinha (1977), já que elas foram escritas, aventamos, como se o seu leitor estivesse cozinhando, isto é, em ação, pondo as mãos na massa.
Apesar da concisão das receitas, o que exige um conhecimento prévio sobre a arte de cozinhar, Carolina Nabuco, colocando à parte termos técnicos como "escaldar", "refogar", "untar", consegue dizer estritamente o necessário, ou seja, exprimir-se sem dar margem a equívocos. Aliás, como afirma Queiroz (1988, p.47), além da arte da culinária, o que chama atenção em um escritor é o seu estilo, isto é, o saber "transmitir ao leitor, com clareza e segurança, as receitas a realizar: pesos, medidas, porções, proporções, tudo é assinalado com minúcia".
Sendo a comida um produto tributário da cultura, as receitas culinárias trazem em si traços que revelam não só significados culturais como também interesses econômicos, poderes políticos, necessidades nutricionais, desenhando, assim, uma verdadeira geografia da sociedade ao registrarem os grupos e classes de pertencimento, marcados por diferenças, hierarquias, estilos e modos de comer. Esse amálgama cultural está presente não só na variedade de ingredientes, mas, sobretudo, nos nomes das próprias receitas, as quais "guardam histórias, tradições, tecnologias, procedimentos e ingredientes submersos em sistemas socioeconômicos, ecológicos e culturais complexos, cujas marcas territoriais, regionais ou de classe lhes conferem especificidade, além de alimentarem identidades sociais ou nacionais" (CANESQUI e GARCIA, 2005, p.12).
Nesse sentido, embora nosso objetivo não seja fazer um estudo filológico, inventariando o léxico dos títulos das receitas de Meu livro de cozinha, vamos encontrar vocábulos que pertencem, em sua maioria, ao campo semântico da culinária, ou seja, nos títulos dessas receitas é recorrente a presença de termos que designam vegetais, legumes (creme de aspargos, sopa de tomates, velouté de alcachofras) ou remetem a hiperônimos como carne (sopa de carnes) ou peixe (velouté de peixes). Além disso, a referência a esses ingredientes é feita, em alguns casos, por vocábulos oriundos de outras línguas, geralmente o francês. Por isso, esclarece a autora, em uma das receitas, que "o nome Crécy é reservado aos pratos à base de cenoura, como o nome Mornay é reservado ao de queijo, Dubarry aos de couve-flor, Argenteuil aos de aspargos, etc." ou que "o nome parmentier é sinal de que se trata de um parto à base de batatas. Do mesmo modo, à la Conde indica que é à base de favas, à la Freneuse de nabos, Florentine de espinafre, etc." (NABUCO, 1997, p.42).
Ao lado disso, os vocábulos dos títulos das receitas remetem a costumes alimentares regionais (peixe à baiana, galinha da roça, rebuchada pernambucana, panelada pernambucana) ou de outros países (sopa de feijão branco à portuguesa, bortsch – sopa russa –, sauce espagnole, sauce allemande – chamado hoje de sauce parisienne –, molho holandês, molho tártaro, filets de pescadinha à inglesa, miolo de vitela à romana). Ademais, o inventário desse léxico revela também não só a presença de relações de raça (torta preta e branca), de classes (consommé à la reine, consommé à la royale, consommé à la reine Jeanne, charlotte burguesa de maçãs) como também aspectos políticos (torta às direitas), nomes de logradouros (sopa real grandeza), desejos (massa para sonhos) ou nomes dos utensílios (bife de panela, assado de panela, perdiz de caçarola).
Sendo a cozinha espaço habitualmente reservado às mulheres, mais do que aos homens, ainda que sejam registrados, ao longo da História, chefs e famosos cozinheiros, os títulos das receitas culinárias não podiam deixar de lado a presença feminina. Daí por que pululam nomes de mulheres em várias receitas: conssommé Joana, consommé à la reine Jeanne, outra sopa de alhos de Júlia, patê Adélia, charlotte Noêmia, charlotte Carmen, gnòcchi vienenses Maria José.
CONSIDERAÇÕES FINAIS


As receitas culinárias não só nos legam um saber fazer, um aprender a fazer e um dizer como fazer, mas também, em meio à sucessão de gestos que se encadeiam e compõem uma sinfonia de cheiro, som e sabor, revelam o hábil movimento de mãos que são capazes de unir matéria e memória, presente e passado, tradição e inovação, sonhos e desejos, amor e morte. Isso, dada a sua relevância, aponta para a necessidade da criação de uma memória culinária. Sobre essa necessidade, é muito pertinente a seguinte indagação de Eça de Queiroz (apud QUEIROZ, 1988, p.14): "De Sófocles, temos as tragédias, de Teócrito, as éclogas... Onde estão os molhos de Aftonetes?" Por isso, o grande romancista português conclamava: "já vastamente exploramos a Antiguidade nas suas letras: é tempo de a esquadrinharmos nos seus petiscos". Para tanto, urge que "os estudiosos fechem os livros e preparem as caçarolas".
Por outro lado, além da importância de registrar gostos, cheiros, cores, sabores, especiarias e condimentos, elementos importantes na construção de uma memória culinária, como bem queria Eça de Queiroz, as receitas culinárias trazem em si as marcas de "gestos de mulheres, vozes de mulheres que tornam a Terra mais habitável" (GIARD, 2005, p.297). Por isso, elas são fontes imprescindíveis na busca de traços do feminino e na construção de uma outra memória: uma memória feminina que ainda está imersa em muitas zonas mudas ou até mesmo num verdadeiro oceano de silêncio (PERROT, 2005). Por fim, num trabalho cujo corpus seja composto por manuscritos culinários, saber (do latim sapore) e sabor (do latim sapere "ter gosto"), palavras ligadas pelo mesmo étimo, passam a constituir, a um só tempo, entrada e prato principal.







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