sábado, 2 de abril de 2011

TEXTO DE DEFESA DA TESE

Título da Tese : Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco: uma escrita bem-comportada?

 
Marcelo Medeiros da Silva
Orientadora: Profa. Dra. Nadilza Martins de Barros Moreira


 
1. Da pesquisa e dos seus caminhos: reflexões

Bom dia a todos e a todas que se encontram aqui neste momento. Gostaria de iniciar a minha fala reiterando os agradecimentos a cada um dos professores que compõem esta banca examinadora. À professora Dra. Nadilza Martins de Barros Moreira, agradeço a paciência e a disposição com quem me orientou ao longo dos quatro anos de doutoramento de maneira que fomos, paulatinamente, dando forma àquilo que era apenas uma ideia em forma de projeto. Ao professor Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva, os agradecimentos não só por ter aceitado o convite para compor esta banca, mas principalmente pela amizade firmada e reiterada desde os anos da graduação, período em que ele foi meu orientador, passando pela especialização e pelo mestrado, momentos em que pude contar com a presença dele como arguidor.

À professora Dra. Wiebke Roden de Alencar Xavier, por ter aceitado participar do exame de qualificação e, agora, da defesa. Ainda à professora Wiebke, gostaria de agradecer as arguições bastante pertinentes durante a qualificação, às quais procurei atender e, de certa forma, determinaram a feitura final de minha tese. À professora Dra. Ana Cláudia Félix Gualberto, gostaria de agradecer o aceite para participar desta defesa assim como gostaria de agradecer à professora Dra. Conceição Flores não só pelo aceite, mas pela atenção com que respondeu aos e-mails enviados. Por fim, gostaria de agradecer aos amigos e amigas que se fazem presentes.

Mais do que a apresentação de resultados, palavra tão cara nos estudos sobre literatura, o presente momento é, para mim, a oportunidade de expor algumas reflexões/observações a respeito de um trabalho que se espera concluído em parte. Digo em parte porque esta pesquisa se desdobrará em outras que procurarão responder a indagações ou buscar novos dados e informações outras que o presente trabalho, por ora, não pôde responder ou apresentar.

Sendo assim, a pesquisa cujo texto final foi submetido à apreciação de todos vocês que compõem esta banca examinadora, ao mesmo tempo em que fala de mulheres, sejam elas escritoras, sejam elas personagens, fala de escrita. Só agora, no momento em que me encontrava preparando o texto desta apresentação, é que me dei conta, conscientemente, de que a escrita é um signo que perpassa todo o meu trabalho, de que, inconscientemente, tal qual o fio de Ariadne, o signo escrita foi urdindo o texto em sua versão final ante o labirinto de dúvidas, angústias, incertezas, avanços e recuos que permearam o pesquisador desde o momento inicial, quando o de que ele dispunha era apenas uma ideia a tomar forma de projeto, até este momento.

Das epígrafes, em sua maioria, ao próprio conteúdo da tese, foi perseguindo a escrita de duas autoras, Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco, que eu pude desvelar aspectos da vida delas, tecer considerações sobre a obra de ambas e, por fim, no enfretamento do corpus escolhido, entender como a produção dessas mulheres-escritoras poderia ajudar na compreensão da condição feminina no Brasil oitocentista. Foi um percurso marcado por descobertas, mas, sobretudo, por redescobertas acadêmicas e pessoais, todas elas como o sabor de epifania.

A presente pesquisa não nasceu do vazio. O terreno em que ela se assenta já foi bastante adubado por uma sucessão de trabalhos que, eclodidos, sobretudo a partir da década de 70 do século passado, têm se voltado para a releitura de nossa história literária a partir da contribuição de mulheres. Se nos anos 70, os pesquisadores e as pesquisadoras se voltavam para a busca incessante de nomes e de obras de mulheres-escritoras, se o grande anseio era saber, no cenário literário brasileiro, quais tinham sido as nossas predecessoras; hodiernamente, se ainda a busca por nomes e por obras de nossas ilustres desconhecidas permanece uma empresa que não arrefeceu, que tem alimentado outros trabalhos – artigos, dissertações e teses – e que, contrariando a opinião de alguns, não se configura como algo ultrapassado, anacrônico, fora de moda, aliás, o estudo de um corpus deslegitimado de obras do século XIX e primeiras décadas do século XX constitui uma das fortes linhas de pesquisa do GT Mulher e Literatura; o estado atual dos estudos de resgate de textos de autoria feminina é marcado por um outro anseio: fazer tais textos e tais nomes circularem novamente ou pela primeira vez a fim de fazê-las “emergir do limbo em que se encontram, inserindo-se, portanto, no palco do debate vivo das ideias, ao mesmo tempo em que devemos ajustá-las, em sua significação, aos limites do processo histórico” (Barbosa Filho, p. 15).

Nota-se, portanto, que o esforço que marca o processo de compreensão da cultura brasileira não pode deixar de lado a reflexão sobre o papel das mulheres e as reais contribuições delas à cultura de nosso país. Esse esforço em compreender a contribuição artística e intelectual de sujeitos que não fazem parte das estruturas hegemônicas de poder, antes de tudo, é um dever da universidade brasileira, como bem apontou Gilberto Mendonça Telles, há bastante tempo, com as seguintes palavras que, enunciadas em outro tempo, em outra situação discursiva, continuam atuais:



“(...) Ora, no momento em que a Universidade brasileira se encontra inteiramente dedicada à verticalização do seu ensino, promovendo a expansão dos seus cursos de Aperfeiçoamento, de Especialização, de Metrado e de Doutorado, não resta dúvida de que o lugar de produção de uma História Literária que responda às exigências cinetíficas da atualidade está forçosamente ocupado pelo saber universitário. Compete ãs universidades brasileiras o levantamento do material regional, a sua interpretação e o seu relacionamento com o corpus já consagrado do que se denomina Literatura Brasileira. Mas esse estudo deve ser feito à luz das teorias mais recentes, se não, o lugar da história acaba se transformando na estória do lugar, regionalizando-se e perdendo o seu lugar de ligação com a universalidade dos fenômenos da cultura nacional”.





Fazendo os devidos ajustes, a fala acima pode muito bem justificar a razão de ser dos estudos voltados ao resgate de textos de autoria feminina, empreendimento esse que visa trazer do limbo não só as obras e as autoras, mas também propiciar a reescritura de novos capítulos de nossa história literária até então escrita com as tintas e os dizeres dos donos do poder – homens, brancos, representantes de uma sociedade androcêntrica. Na consecução do objetivo de reescrever a nossa história literária, a critica literária de cunho feminista trouxe contribuições imprescindíveis ao fazer do resgate e da revisão os dois eixos em que se assentavam as suas reflexões sobre a produção literária feminina.

Feito esses esclarecimentos, a presente pesquisa procurou estudar a produção literária de Júlia Lopes de Almeida e de Carolina Nabuco, a partir dos respectivos romances A intrusa e A sucessora, a fim de compreender até que ponto a escrita de ambas as escritoras poderia ser entendida como bem-comportada. A nossa inquietação adveio da formulação de algumas afirmações de cunho axiomático que rotulavam a produção literária das referidas escritoras como modelo de uma produção que comungava com as ideias patriarcais, referendando-as, sobre o lugar da mulher na sociedade brasileira. Sendo assim, desconfiando de tais afirmações, era preciso investigar, dai por que o título da presente tese, mais do que o conforto de uma afirmação, ainda que peremptória, é marcado pela incessante dúvida instaurada pela interrogação.

Para chegar a uma resposta plausível, ainda que ela viesse a corroborar as afirmações axiomáticas de que inicialmente desconfiávamos, o nosso percurso precisou levar em consideração dados de ordem biográfica a fim de que determinados aspectos e/ou informação da vida das autoras pudessem iluminar a interpretação da obra delas e auxiliar na compreensão de terem produzido uma obra bem-comportada ou não. Todavia, não ensejávamos, como dizemos na introdução de nossa tese, procurar comprovar na obra dados da vida das autoras ou desenvolver um estudo que ficasse circunscrito à relação estéril entre vida e obra.

Aqui, devemos frisar que, posto que não sejam incipientes, as informações apresentadas sobre Júlia Lopes de Almeida e sobre Carolina Nabuco poderiam ter sido mais bem consistentes se tivesse sido destinado um pouco mais de tempo à cata de fontes primárias, como jornais, revistas, periódicos nos quais as autoras em estudo trabalharam e deixaram contribuições. Assumo a mea maxima culpa, mas gostaria de esclarecer que, reconhecendo a importância de tais fontes para trabalhos de natureza semelhante ao nosso, o intuito foi centrar a atenção nos textos literários escolhidos como corpus, já que assumimos o papel de crítico e crítico de literatura. Ou seja, de certa forma, agimos, assim, porque comungamos do princípio de que não se pode prescindir do texto literário nos estudos sobre literatura, daí por que o nosso trabalho procurou apoiar-se no enfrentamento dos textos, antes de mais nada, de forma que, guardadas a devidas proporções, pode-se aplicar ao nosso trabalho as seguintes palavras de Antonio Candido: “o intuito não foi a erudição, mas a interpretação (...). Sempre que me achei habilitado a isso, desinteressei-me de qualquer leitura ou pesquisa ulterior”. A opção que orientou este trabalho foi, portanto, a de nunca partir de generalizações diante das quais o texto literário viesse aparecer como simples exemplo. Essa escolha, todavia, devemos frisar, não nos impede de reconhecer que o acesso a fontes primárias, se não foi possível durante a presente pesquisa, instiga-nos a continuá-la dando-lhe novos contornos e revestindo-a de novos objetivos. Reconhecemos, portanto, alguns dos senões de nossa pesquisa, mas, reiteremos, acreditamos que eles não a invalidam.

Se pecamos no cotejo mais amplo com dados quem poderiam ter sido hauridos de certas fontes primárias, acreditamos que fomos bem sucedidos no enfretamento do corpus, uma vez que, como já dito, um de nossos objetivos era, mediante a interpretação dos romances A Intrusa e A sucessora, verificar a representação da condição feminina na passagem dos oitocentos para os novecentos a fim de apontar quais seriam as possíveis convergências e divergências entre elas. Partindo, portanto, da análise de elementos estruturais bem pontuais (espaço, personagem, narrador) conjugados à análise de determinadas temáticas (educação, trabalho, família), recorrentes em ambos os romances, chegamos a um denominador comum: a reflexão sobre o lugar do feminino nas obras escolhidas como corpus a partir de uma escrita que só aparentemente pode ser vista como bem-comportada e reduplicadora da ideologia patriarcal.

Nesse ponto, Carolina Nabuco e Júlia Lopes de Almeida assemelham-se pela posição ambígua com que se portaram frente aos valores patriarcais e o lugar social da mulher na sociedade brasileira. Instruídas na mais fina educação de recato e obediência aos princípios morais e filhas da elite branca, aristocrática, elas parecem inserir-se no rol de escritoras bem-comportadas, ou seja, mulheres que, sem alterar a posição privilegiada dos homens, desejavam ser incluídas em novos espaços sociais sem que isso alterasse as relações no sistema de sexo/gênero. Entretanto, se elas foram mulheres bem-comportadas, a produção delas só pode receber essa insígnia no que tange à estrutura que segue um modelo bem-comportado de escritura (situação inicial, desenvolvimento, clímax e desfecho), porque na confecção dos temas elas não foram tão bem-comportadas.

Se a estrutura é bem-comportada, o tratamento dado aos temas não o é. Ainda que inconscientemente, as autoras, ao representarem, em suas obras, as desigualdades entre os sexos, a subordinação do feminino ao masculino, estavam criticando valores e construções sociais contra os quais o feminismo, por exemplo, levantou suas bandeiras de luta. A postura política empreendida tanto por Júlia Lopes de Almeida quanto por Carolina Nabuco não foi alicerçada no embate direto contra os valores e as imposições da sociedade patriarcal em que elas viveram.

Podemos dizer que, se o discurso político subjacente à produção literária dessas duas escritoras não visava à alteração nas relações de gênero, ele almejava que a mulher pudesse circular nas esferas sociais sem que fosse preciso fazer-lhes concessões. Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco fizeram do exercício literário uma bandeira de luta pela igualdade entre os sexos, de forma que as diferenças entre masculino e feminino fossem marcadas não pela segregação, mas pela valoração positiva, isto é, ansiavam pelo reconhecimento da diferença em meio à igualdade de direitos e de deveres.

Entre o aparentemente ameno, elas espalharam a acidez de um olhar que, inteligentemente, conseguiu se fazer ver como ingênuo e em consonância com valores socialmente referendados. Sem negar a importância do masculino, mas, também, atentas às suas perniciosas ações, Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco erigiram uma obra que acentua a relevância social do feminino e que, mais do que um libelo à causa feminista, serviu como notável instrumento para despertar a consciência de mulheres para a opressão e para a submissão de que, durante séculos, foram acometidas e que as impediam de ter acesso a condições sociais mais justas e igualitárias.

Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco exerceram uma escrita literária marcada pela mescla entre a comunhão com os valores patriarcais e a crítica a tais valores. Uma escrita que podemos chamar de feminina/feminista. Uma escrita que somente em sua superfície pode ser vista como bem-comportada, mas que, em profundidade, denunciava a ausência das mulheres nas tomadas de decisão tanto no âmbito da esfera privada quanto no do espaço público, e apontava a impossibilidade feminina de decidir sobre o seu próprio destino ou de expressar seus desejos mais recônditos. Enfim, uma escrita em que, mais do que se digladiarem, valores conservadores e inovadores encontram-se amalgamados, como se estivessem a sinalizar a possibilidade de convivência, na esfera social, de polaridades aparentemente antípodas: masculino e feminino.

Por isso, o olhar voltado à obra dessas autoras não deve procurar cobrar delas aquilo que, sociocultural e historicamente, não lhes podia ser ofertado. Exigir-lhes uma ruptura com uma ordem dentro da qual e para a qual elas haviam sido educadas é um tanto quanto descabido. Nossa postura não está, todavia, eivada de condescendência para com as autoras; mas procura fazer (re)lembrar que a avaliação das obras das escritoras em estudo não pode deixar de lado as condições e as injunções sob as quais elas foram produzidas. Assumimos, portanto, uma perspectiva que reconhece a importância dessas escritoras na constituição de uma tradição literária feminina em nossa história, principalmente por desbravarem caminhos para outras mulheres-escritoras que lhes vieram na esteira e, uma vez sedimentadas determinadas condições, puderam romper com a ordem estabelecida e, na busca por inclusão em novos espaços sociais, intentaram alterar as relações de gênero.

Ao estudarmos as obras de Júlia Lopes de Almeida e de Carolina Nabuco, assim como a imensa produção literária oitocentista escrita por mulheres, é preciso, antes, aprendermos a ler essas obras a partir de critérios e pressupostos que não sejam os mesmos de que nos valemos para lermos e avaliarmos obras que já se encontram no cânone. Esse cuidado nem sempre é levado em conta, mas tem sido bastante evidenciado nos trabalhos de releituras empreendidos pela crítica literária feminista que tem evitado cobrar das autoras e das obras resgatadas um engajamento político-ideológico.

Por terem escrito conforme permitido pelo quadro ideológico da época, Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco não podem ter o seu valor diminuído. A obra delas reflete um rico período de transição finissecular da nossa sociedade, principalmente no que tange à condição feminina e às transformações na esfera política, social e econômica do país. É uma obra que é produto direto dessa sociedade, a qual não ofereceu às escritoras as condições para outro tipo de escrita tampouco para outros temas. Elas, portanto, sofreram, em seu trabalho nas Letras, do mal da época que incluía a falta de instrução, de direitos legais, o não reconhecimento das mulheres como cidadãs.

Entretanto, devemos reconhecer, dentro da moldura do tempo, o esforço de ambas as escritoras, Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco, que procuraram fazer da escrita um meio de obter vista e voz quando a palavra de ordem era calar-se, já que nasceram e viveram em meio a todo um ambiente que clamava pelo silenciamento da voz feminina, embargando, sem obter muito sucesso, as tentativas empreendidas pelas mulheres em prol do direito de se fazerem partícipes em nossa República das Letras.

Ao final de minha fala, gostaria de reiterar apenas mais uma única coisa: dizer que o texto apresentado como tese a esta universidade, mais do que o cumprimento de uma formalidade, revela mais uma etapa de minha formação profissional e intelectual. Como tal, ele traz consigo as marcas de minha imaturidade, mas também revela alguns pontos em que eu pude amadurecer não só como pesquisador, mas como ser humano. Enfim, o resultado final é de minha inteira (ir)responsabilidade.