sexta-feira, 30 de maio de 2008

VOZES DA ALIMENTAÇÃO

Marcelo Medeiros da Silva

I. INTRODUÇÃO


Durante muito tempo, escrita e saber estiveram – e ainda, talvez, continuem – relacionados ao poder e foram usados como formas de dominação e de exclusão de determinadas vozes que tentassem ecoar algum som em meio ao silêncio que era imposto para que se mantivesse a ordem social em uma sociedade de base falocêntrica, patriarcal, machista e sexista. Mesmo assim, o discurso hegemônico do patriarcalismo não conseguiu abafar determinadas vozes, principalmente de algumas mulheres que não estavam contentes em serem rotuladas de o segundo sexo e que, por isso, se negaram à subordinação.
Por causa, dentre outros fatores, das tentativas de subversão à ordem do pai, a integração de mulheres/escritoras ao universo da escrita foi marcada por uma trajetória bastante dolorosa, principalmente porque escrita e saber, além de serem usados como forma de dominação, "ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até mesmo sentimentos esperados em determinadas situações" (TELLES, 2002, p.402), eram tidas como ferramentas exclusivas do espaço masculino. Por isso, durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação.
Dentro do cenário literário, a escrita produzida por mulheres teve – e continua tendo – de conviver com uma política de ocultamento que trouxe conseqüências quase que irreparáveis. Muitas foram as mulheres que, embora com a pena em riste, não puderam se expressar e tiveram sua obra, sua intelectualidade assujeitadas ao Outro, o sujeito masculino. Por isso, persiste a necessidade de estudos que possam, segundo Schneider (2000), reconstruir a história literária produzida por mulheres, pondo em evidência o percurso, as dificuldades, os temores, as estratégias para romper o confinamento em que viviam e, ao mesmo tempo, promover a revalorização dessa literatura que no passado não recebeu devida atenção.
Nesse sentido, é preciso estudar os textos não-canônicos para que a história das mulheres e a de sua produção literária possam ser reconstruídas, o que pode transformar a visão tradicional da própria história literária a fim de que esta passe a levar em conta a produção literária de mulheres que, em meio às pressões de uma sociedade patriarcal, ousaram fazer da pena bandeira de luta, ainda que tenham, em seus escritos, registrado ou até mesmo sucumbido aos preconceitos dessa sociedade.
Nessa empresa, ao nos debruçarmos sobre a produção literária de Carolina Nabuco (cf. SILVA, 2007a; SILVA, 2007b), esperamos estar contribuindo com os estudos que objetivam dar visibilidade às numerosas autoras que não figuraram nas histórias literárias brasileiras da época nem nas posteriores e, assim, trazer à tona uma memória literária feminina na literatura brasileira que vem sendo negligenciada ao longo dos séculos. O regaste de produções femininas é importante porque, por um lado, permite-nos a recuperação de uma identidade feminina há muito silenciada e, por outro lado, permite:
o desenvolvimento de uma arqueologia literária que resgatasse os trabalhos das mulheres, que de diversas formas foram silenciados ou excluídos da história da literatura. Neste sentido, engaja-se no trabalho de recuperação de uma ‘identidade feminina’ que aponte para as diversas formas de sua experiência, rejeitando, enfaticamente, a repetição e reprodução dos pressupostos mitológicos da crítica literária tradicional, que, via de regra, identifica a escrita feminina com a "sensibilidade contemplativa", a "linguagem imaginativa" etc., bem como as diversas formas como a biologia, a lingüística e a psicanálise vêm definindo a especificidade da linguagem feminina (HOLLANDA, 1994, p.03).
De acordo com Carvalho (2001), resgatar textos de escritoras, produzidos em períodos anteriores aos movimentos sociais da década de 60 do século passado, é, dentre outros aspectos, uma rara oportunidade de trazer a lume a produção intelectual de todo um grupo social marginalizado pela cultura patriarcal hegemônica para a qual as mulheres, não sendo capazes de construir e elaborar aspectos de nosso imaginário social, já que estas eram uma tarefa masculina, deveriam preocupar-se apenas com as prendas domésticas, visto que o lar era sobretudo o espaço de confinamento para muitas mulheres que eram incorporadas e consolidadas ao marido ou ao pai. Na empresa de resgate de textos de autoria feminina e de construção de uma memória literária feminina brasileira, este artigo procura estudar, a partir do Meu Livro de Cozinha (1977), da escritora fluminense Carolina Nabuco, como é possível perceber traços do feminino mediante a leitura de "simples" receitas culinárias.
Aqui, cumpre esclareceremos em que sentido estamos usando o termo "feminino". Comprometido com uma carga semântica mistificadora, este vocábulo é visto, tradicionalmente, como equivalente a delicado, superficial, sentimentalóide. Entretanto, neste trabalho, deixando de lado essa carga pejorativa, usamos este termo para designar, por ora, tudo aquilo que diz respeito à mulher, ou seja, "‘feminino’ despojadamente se refere ao sexo feminino, e, quando um livro é de autoria feminina, significa, apenas, que foi escrito por uma mulher" (XAVIER, 1991, p.11), já que, como reitera essa autora, considerando-se a tênue relação ente sujeito e linguagem, "quando uma mulher articula um discurso, este traz a marca de suas experiências, de sua condição" (XAVIER, 1991, p.13). Experiências e condição femininas estão plasmadas no léxico que compõe uma receita, visto que esta resiste, na maioria das vezes incólume, ao tempo e, por isso, traz em si registros de uma época, de hábitos a que não é possível ter acesso exceto pelo que está registrado nas receitas:
Em compensação, através das receitas – algumas delas segredos de família –, é uma arte que resiste ao tempo, repetindo-se ou recriando-se, com a constância das suas excelências e até das suas sutilezas de sabor; afirmando-se, por essa repetição ou por essa recriação. Numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas nem capitulando, senão em pormenores, antes as inovações, que faltam às receitas de outros gêneros (FREIRE, 2007, p.32; grifos meus).
Esclarecido isso, o presente texto está dividido em três secções. Na primeira, construímos a biografia da escritora Carolina Nabuco ao mesmo tempo em que tecemos algumas considerações gerais sobre a sua obra que compreende romances, biografias, contos e ensaio. Na segunda, argumentamos sobre a relevância de, na empresa de construção de uma memória literária feminina, estudarmos outras fontes que, durante muito tempo, foram vistas como não-científicas. Por fim, analisamos, na última secção, o livro em pauta, evidenciando traços do feminino.
II. Carolina Nabuco: esboços de uma fortuna crítica


Romancista, memorialista, biógrafa e mulher de grande cultura, Maria Carolina Nabuco de Araújo nasceu em 1890 e faleceu em 1981 (COELHO, 2002). Filha de D. Evelina Torres Ribeiro Nabuco e de Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, escritor e senador do Império, a cujo nome sempre esteve atrelada como se fosse uma sombra do próprio pai, Carolina Nabuco, segundo Schumaher e Brazil (2000), consagrou-se por possuir um estilo simples e erudito, rico e profundo em conteúdo.
Ao falar da história de seus livros, Carolina Nabuco afirmou que sua vocação pelas letras despontou assim que aprendeu a ler e a escrever. Ela atribui isso à influência do pai, "que sempre via com a pena à mão". Além disso, confessa em Oito décadas, livro de memórias que integra o seu acervo literário, que "entre os vários gêneros literários que tentei nenhum me atraía como o da ficção. Nos meus anos de adolescência, na primeira década do século, quando não existiam ainda nem cinema nem televisão, a juventude tinha de se satisfazer com a leitura de obras de ficção" (NABUCO, 2000, p.264).
Esse seu desejo pela leitura de obras de ficção fomentou um outro: o de escrever ficção. Nessa empresa, ela empreendeu algumas tentativas vãs. Apesar dos insucessos de início, alimentava o desejo de se tornar escritora. Este era, conforme afirma em Oito décadas, a sua mais cara ambição de menina, embora reconhecesse que ainda lhe faltavam "experiência e técnica para fazer coisa prestável". Por isso, continuava, na busca pela experiência e técnica, escrevendo, primeiro em inglês e francês, línguas em que fizera seus estudos, e, depois da morte do pai, em português. Essas suas primeiras investidas literárias eram todas narrativas curtas com as quais não pensava em ganhar destaque.
Para Carolina Nabuco, só pertenciam à classe de obras de arte, ou seja, ao que ela chamava de verdadeira literatura, a poesia e a ficção. Por isso, "quando eu contemplava a possibilidade de me tornar escritora [...], desejava infinitamente mais aparecer como romancista do que como historiadora ou ensaísta" (NABUCO, 2000, p.266). Entretanto, a sua estréia no campo das letras deu-se com o lançamento de uma biografia: A vida de Joaquim Nabuco (1929). Esta que é considerada por sua própria autora o seu livro e que lhe consumiu oito longos anos de intenso labor. A vida de Joaquim Nabuco, conforme afirmam Schumaher e Brazil (2000), fez com que o poeta Alberto de Oliveira liderasse um movimento para que Carolina Nabuco fosse eleita para a Academia Brasileira de Letras. No entanto, a escritora, "considerando que a academia, nos termos do estatuto, era reservada apenas a escritores, não aceitou o convite formalizado pelo poeta" (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p.141).
Após o lançamento de A vida de Joaquim Nabuco, que foi, à época, um êxito de livraria, pois foram vendidos, em duas edições, mais de quatro mil exemplares, vieram somar a essa pobre "bagagem literária", palavras de Carolina Nabuco, outros livros que não biografias: A sucessora (1934) e Chama e cinzas (1947). Sobre a gênese do primeiro, a sua autora afirmou que ele, inicialmente, foi planejado como um conto que se chamaria "O retrato da primeira esposa", mas que, aos poucos, foi crescendo até se tornar o romance.
Apesar da boa recepção da crítica que lhe tecera alguns artigos elogiosos, A sucessora só alcançou "boa venda alguns anos mais tarde e por um motivo incidental": sua semelhança com o romance mais falado na época – Rebecca, da escritora inglesa Daphne du Maurier. Este livro alcançou um sucesso mundial quase sem precedentes e serviu como inspiração para um filme magistral: Rebecca, de Alfred Hitchcock. Para muitos, Carolina Nabuco havia sido plagiada pela escritora inglesa.
Simultaneamente à composição de seu segundo romance, Carolina Nabuco desviou-se um pouco e escreveu um livro de instrução religiosa, Catecismo historiado – doutrina cristã para primeira comunhão (1940), e mais duas biografias: A vida de Virgílio de Melo Franco (1962) e Santa Catarina de Sena (1957). Estes dois últimos livros "nasceram de uma resolução súbita de minha parte, resultante, em ambos os casos, de uma emoção que me pôs logo a pena à mão, deixando por algum tempo o romance em que eu trabalhava" (NABUCO, 2000, p.270).
Enquanto escrevia essas biografias, Carolina Nabuco, não abandonando inteiramente a ficção, escreveu uma história e outra que foram reunidas no livro O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969). Um outro livro escrito por ela foi Retrato dos Estados Unidos à luz de sua Literatura (1967). Este livro, pertencente ao gênero crítica literária, reúne, segundo a sua autora, textos sobre autores americanos, apontando o que existe de mais típico ou mais altamente americano nesses autores.
Além de ficção, biografia e crítica literária, integram o acervo de Carolina Nabuco mais dois outros livros: Oito décadas (1973) e Meu livro de cozinha (1977). O primeiro, livro de memórias, espécie de testamento literário, reúne as reminiscências de Carolina Nabuco ao longo de oito décadas, uma a menos do que ela própria viveu. O segundo apresenta algumas imagens dos hábitos alimentares brasileiros no início do século vinte e, por isso, pode ser visto como uma obra sociológica e memorialística em que vêm à tona imagens de jantares, almoços e banquetes de que participaram a autora, seus familiares e amigos.

III Das receitas culinárias: fontes alternativas na construção de uma memória feminina


Há certo tempo, inúmeros estudiosos e estudiosas vêm mostrando que, ao longo da história, as mulheres foram silenciadas e as suas produções postas à margem. No campo da literatura, por exemplo, muitos são os estudos sobre obras de autoras esquecidas que, graças ao empenho desses estudiosos e estudiosas, verdadeiros arqueólogos perdidos entre "poeiras de arquivos", estão sendo recuperadas e podem, assim, contribuir para uma revisão de nossa história (oficial) da literatura e uma possível escritura de novos capítulos. Além disso, acreditamos que a revisão de nossa literatura e o seu desdobramento em novos capítulos podem ter uma função muito maior: ajudar na reescrita da própria história das mulheres e contribuir na escrita de uma memória feminina tecida, muitas vezes, de silêncios e para o silêncio. Destinadas à obscuridade da reprodução ou postas fora do tempo ou dos acontecimentos, as mulheres foram esquecidas, silenciadas ao longo da História.
Neste sentido, o silêncio, sendo o Verbo Deus e, portanto, Homem, era, segundo Perrot (2005, p.09), o comum das mulheres: "o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento". Entretanto, mesmo emparedadas por essa política de silenciamento, as mulheres procuraram formas de subvertê-la ou de resistir a ela, fazendo do silêncio uma arma a favor de si próprias. Sobre isso, afirma Perrot (2005, p.10):
Evidentemente, as mulheres não respeitaram essas injunções. Seus sussurros e seus murmúrios correm na casa, insinuam-se nos vilarejos, fazedores de boas ou más reputações, circulam na cidade, misturados aos barulhos do mercado ou das lojas, inflado às vezes por suspeitos e insidiosos rumores que flutuam nas margens da opinião. Teme-se a sua conversa fiada e sua tagaralice, formas, no entanto, desvalorizadas da fala. Os dominados podem sempre esquivar-se, desviar as proibições, preencher os vazios do poder, as lacunas da História.
No caso da literatura, vivendo numa espécie de letargia que as impedia de criar, nomear-se, nomear as coisas e ser, sobretudo, procriadoras de seus próprios discursos, textos e pensamentos, as mulheres/escritoras, ao adentrarem na cena literária, procuraram se insurgir contra uma sociedade falocêntrica responsável pela criação e perpetuação de formas discursivas por meio das quais os homens procuraram impedir a emancipação das mulheres. Estas, diante de uma sociedade que toma(va) o masculino como ponto de referência, foram, a princípio, obrigadas a silenciarem-se e a assumirem como valores femininos outras marcas: a escuta, a espera, o guardar as palavras no fundo de si mesmas, aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se, calar-se. Tudo isso para que o domínio masculino sobre o feminino permanecesse como algo imutável e natural, impedindo, assim, que as mulheres construíssem novos valores sociais, nova moral e nova cultura.
Dessa forma, assim como não era em todo espaço social que as mulheres circulavam, a cena literária também não era espaço para muitas delas que, a partir do século XIX, quando muitas passaram a escrever e publicar tanto na Europa quanto na América, tiveram de ascender à palavra escrita numa época em que, apesar da valorização da erudição, lhes era negada educação superior, ou mesmo qualquer educação, a não ser a das prendas domésticas.
Excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam, portanto, enredadas e constritas pelos enredos da arte e ficção masculinas, já que estavam sujeitas à autoridade/autoria masculina. Isso fez com que, como afirma Telles (2002), a conquista do território da escrita fosse – e continue sendo – longa para as mulheres do Brasil cuja luta para fazer parte de um espaço, considerado essencialmente masculino, já dura mais de século.
Se o acesso ao livro ou à escrita (literária, sobretudo), "modo de comunicação distanciada e serpentina, capaz de enganar as clausuras [e de] penetrar na intimidade mais bem guardada" (PERROT, 2005, p.10), foi-lhes negado, era preciso procurar outras formas para falarem de si mesmas e para deixarem, ao menos, indícios, vestígios de uma presença e memórias femininas que, apesar de esgarçadas, foram resistindo não só ao tempo mas sobretudo às políticas de silenciamento e ocultamento.
Nesse sentido, a consideração crescente pela vida privada, familiar ou pessoal, fez com que, segundo Perrot (2005), os estudiosos e estudiosas lançassem olhares sobre fontes vistas, negligentemente, como não-oficiais: cadernos de receitas, álbuns de fotografias, diários íntimos, cadernos de anotações, cartas. Esses são alguns exemplos de fontes de que as mulheres se valeram para resistirem "à impossibilidade de falar[em] de si mesma[s] e do seu próprio ser, ou ao menos, o que se pode saber dele" (PERROT, 2005, p.10). Nessa perspectiva, essas fontes tidas como não-oficiais são uma via alternativa para o resgate do que Perrot (2005) denomina de práticas da memória feminina, as quais, por sua vez, acreditamos, podem revelar traços do feminino, sobretudo em esferas privadas.
Dessa forma, como fomos forjados dentro de uma tradição que cristalizou certas formas de ser e existir e canonizou, por sua vez, determinadas fontes para estudos científicos, é preciso, pois, fazer ouvir os murmúrios de outras fontes, dar voz ao silêncio que, durante muito tempo, foi a marca que as singularizava. Sendo assim, se certas fontes foram credenciadas, outras, tidas como ordinárias, no sentido emprestado a este termo por Certeau (2005), não receberam as credenciais para serem reconhecidas como objeto de registro histórico e, portanto, tomadas como elementos de análises científicas, visto que foram, de chofre, denominadas como insignificantes. No entanto, como afirma Giard (2005, p.217), é preciso:
aprender a olhar esses modos de fazer, fugidios e modestos, que muitas vezes são o único lugar da inventividade possível do sujeito: invenções precárias sem nada capaz de consolidá-las, sem língua que possa articulá-las, sem reconhecimento para enaltecê-las; biscates sujeitos ao peso dos constrangimentos econômicos, inscritos na rede das determinações concretas.
Noutros termos, como as fontes "oficiais" não falam das mulheres, cujos traços foram, amiúde, apagados, tanto na esfera privada, quanto na pública, é preciso buscar fontes alternativas a partir das quais traços do feminino se fazem notar e mostram a resistência das mulheres às investidas da opressão masculina. Os livros de receitas, por exemplo, já que os tomamos como corpus deste trabalho, são fontes interessantes que nos proporcionam um raro momento para compreendermos, através de "simples" receitas ou dicas culinárias, "o que as mulheres chamadas de donas-de-casa faziam em seu cotidiano; e as vozes de seus desejos que, por sua vez, vão muito além de alimentar e alimentar-se, nos levam a muitas reflexões" (FERREIRA e MELLO, 2007).
Vistos, erroneamente, como uma fonte de informações "simples", "rápidas", "baratas" e, muitas vezes, cheias de floreios femininos, os livros e os cadernos de receitas, se tomados como corpus de estudos sérios, revelam-se como uma fonte por meio da qual é possível dar atenção às ocupações cotidianas das mulheres, ou seja, dar visibilidade a um conjunto de "trabalhos que visivelmente nunca acabam, jamais suscetíveis de receber um arremate final: a manutenção dos bens do lar e a conservação da vida dos membros da família parecem extrapolar o campo de uma produtividade digna de ser levada em conta" (GIARD, 2005, p.217). Noutras palavras, pelas receitas é possível reconstruir uma memória feminina que traga as marcas de mulheres que, através de gestos, de sabores e de composições, nos legaram saberes, principalmente nutricionais, que não podem cair no esquecimento:
Enquanto uma de nós conservar os saberes nutricionais de vocês, enquanto de mão em mão e de geração em geração se transmitirem as receitas da terna paciência de vocês, subsistirá uma memória fragmentária e obstinada da própria vida de vocês. A ritualização requintada dos gestos elementares tornou-se-me assim mais preciosa que a persistência das palavras e dos textos, porque as técnicas do corpo são mais bem protegidas da superficialidade da moda e porque aí entra em jogo uma fidelidade material mais profunda e mais densa, uma maneira de ser-no-mundo e de fazer aqui a própria morada (GIARD, 2005, p.216).
Embora as práticas culinárias insiram-se no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e, paradoxalmente, mais desprestigiado, elas são vistas como um trabalho monótono e repetitivo, desprovido de inteligência e de imaginação. São mantidas, portanto, fora do campo do saber e negligenciadas nos programas de educação dietética. Mesmo assim, "com exceção dos pensionários de coletividades (conventos, hospitais, presídios), quase todas as mulheres têm de cozinhar, quer só para suas necessidades, quer para alimentar os membros da família e seus convidados ocasionais" (GIARD, 2005, p.218). Por isso, os textos culinários produzidos por mulheres não só contribuem na busca ou reconstituição de uma memória feminina que traga à tona a importância das mulheres na formação de nossa cultura como também podem revelar muito sobre o processo mediante o qual se deu a inserção das mulheres no universo da escrita.
Como a escrita era, conforme já dito, um fruto proibido para as mulheres, era-lhes permitido, nas raras exceções, aproximar-se desse fruto desde que ele não as fizesse cair em tentação (PERROT, 2005). As mulheres podiam escrever, então, desde que os seus escritos não ferissem a moral e os bons costumes. Dessa forma, escrever, por exemplo, receitas ou registrar como manter a casa em ordem era, dentro da óptica masculina, produzir "bagatelas", ou seja, não era uma atividade perigosa. Todavia, escrevendo sobre aquilo de que estavam mais próximas, as mulheres iam, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades femininas que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Para corroborar essa nossa fala, Perrot (2005, p.13) afirma o seguinte:
O uso [da escrita], essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetização e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educação, caridade, cozinha, etiqueta...), elas se apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação – o jornalismo por exemplo – e da criação: poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais dificilmente. Debates e combates balizam estas travessias de uma fronteira que tende a se reconstituir, mudando de lugar.
Estudar textos culinários produzidos por mulheres é um bom exercício para entender as práticas da memória feminina, já que, como argutamente afirma Perrot (2005, p.33), "no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra", uma vez que não lhes foi dado poder gozar de espaço na narrativa histórica tradicional: "esta privilegia a cena pública – a política, a guerra – onde elas (as mulheres) aparecem pouco" (PERROT, 2005, p.33). Por isso, é preciso tomar como fonte textos em que a história oficial não foi escrita/inscrita e nos quais a presença feminina se faça notar, já que ela foi alijada da narrativa histórica tradicional.

IV Entre sabores e cheiros: o feminino em Meu Livro de Cozinha, de Carolina Nabuco

Estudando as intersecções entre a alimentação e as mulheres na Idade Média, Garretas (1995) chega a afirmar que, nesta época, assim como em muitas outras, as mulheres sempre controlaram os processos de produção e distribuição dos alimentos. Alimentar os filhos e os homens dos grupos familiares era, possivelmente, uma das poucas instâncias de poder econômico e social de que as mulheres dispunham com certa autonomia. Apesar disso, elas são mais associadas à preparação e armazenamento dos alimentos do que com ao próprio consumo deles: exercem um trabalho que é desfrutado por outros. Em decorrência disso, essa lhes é, então, uma instância de poder marcadamente insatisfatória.
Essa insatisfação advém, talvez, do fato de que a preparação dos alimentos não propicia às mulheres, apesar da complexidade que envolve o processo de alimentar os outros, nem riqueza nem prestígio social. O produto de seu trabalho escapa cotidianamente de suas mãos, já que é integrado ao metabolismo dos membros de sua família. Além disso, o controle que elas exercem sobre os alimentos é mediado pelo controle que o marido ou o pai, chefe do grupo familiar, exerce sobre elas. Por isso, a atividade de nutrir, dentro do plano das representações, é associada à natureza, vista como algo inerente às mulheres e, portanto, dissociada da história. Isso faz com que a habilidade feminina de fazer a compra de mantimentos, de preparar e servir a comida seja vista como uma tarefa muito elementar, convencional e prosaica demais.
Por isso, nutrir os outros, sendo visto como uma das experiências de comportamento do gênero feminino que a cultura patriarcal lhe reserva sem exceção e que cruza barreiras de classe, é recusado por muitas mulheres, uma vez que é visto como algo desgastante, menor e interminável. Todavia, se analisada por outro ângulo, a habilidade feminina de fazer a compra dos mantimentos, de preparar e servir a comida pode deixar de ser vista como uma tarefa muito elementar, convencional e prosaica demais. A cozinha, se vista como uma laboratório onde se combinam substâncias, massas, temperos e donde emanam sabores e cheiros, passa a ser um espaço onde, como revelam as receitas culinárias, o feminino se impõe e nega a passividade que lhe foi, historicamente, imposta como sua marca mais singular.
Neste caso, as receitas são provas textuais que, por meio de seus modos de fazer contendo verbos no imperativo, revelam a presença de um feminino que, conforme já dissemos, se impõe, manda e marca presença. Isso faz com que deixemos de ver a cozinha como espaço de aprisionamento da mulher, mas como um espaço onde, por meio de cheiro e temperos, nos prendem, a homens e mulheres. Como decorrência disso, as atividades culinárias são para algumas mulheres um lugar de felicidade, prazer e invenção. O ato de cozinhar, portanto, constitui um dos pontos fortes da cultura comum porque, assim como as atividades tradicionalmente consideradas elevadas, por exemplo, a música ou a arte de tecer, exige inteligência, imaginação, memória e revela trajetos do feminino em meio a atividades cotidianas:
[...] entrar na cozinha, manejar coisas comuns é pôr a inteligência sutil, cheia de nuanças, de descobertas iminentes, uma inteligência leve e viva que se revela sem dar a ver, em suma, uma inteligência bem comum (GIARD, 2005, p.220)
Neste sentido, Meu Livro de Cozinha (1977), de Carolina Nabuco, pode ser visto como um registro desta prática elementar, humilde, obstinada, repetida no tempo e no espaço, que é a arte de cozinhar. Este livro, como está escrito em sua orelha, é mais do que a reunião de receitas de pratos raros, quitutes e petiscos. Ele é "um verdadeiro ensaio sob a forma ligeira de conselhos e opiniões de uma longa experiência sobre o que se poderia chamar ‘a arte de bem receber em sua casa’". Reunindo velhas receitas esquecidas, este livro não só "ensina a preparar os mais sofisticados e internacionais menus", sem que eles percam, no entanto, pelos condimentos, temperos e outros segredos, a marca brasileira; mas também ensina como preparar o arranjo da mesa e seus ornamentos, "tudo fazendo parte afinal das misteriosas e sutis combinações da arte de viver – o que é muito mais questão de qualidade do que de quantidade".
O primeiro aspecto que chama a atenção, numa leitura mais detida, em Meu Livro de Cozinha, é a imagem presente em sua capa, reproduzida logo a seguir:


Como se pode ver, embora escrito por uma mulher, o livro traz estampado em sua capa a figura de um chef de cousine de aparência imponente lendo um suposto livro de cozinha. Devemos atentar para esta imagem por dois motivos: o primeiro diz respeito à questão da própria autoria. Expliquemo-nos: como já dissemos, quem escreve o livro é uma mulher: Carolina Nabuco, cujo nome aparece quase que invisível na parte inferior da capa e logo abaixo da figura do chef de cousine. O segundo, ainda relacionado à questão da autoria, diz respeito à presença do pronome meu no título do livro que é: Meu Livro de cozinha. Diante disso, cumpre-nos perguntar: a quem se refere este possessivo? Ao chef de cousine cuja imagem aparece estampada na capa do livro ou à mulher que assina o livro como sendo de sua autoria? Neste caso, se a resposta for a segunda, esperava-se, como somos, por ora, levados a crer, que, sendo escrito por uma mulher, o livro trouxesse como ilustração de capa a figura de uma mulher, talvez até da própria autora, cuja foto aparece na contracapa.
Outro aspecto interessante, ainda sobre a presença, ou melhor, a distribuição dos espaços das ilustrações, está ligado ao fato de que na página da introdução aparece a seguinte ilustração:


Como se pode ver, desta vez, não estamos mais diante de uma outra figura de um chef de cousine; mas, sim, a de uma mulher que, despojada da imponência que marcara a outra imagem, está com uma faca na mão cortando cebolas, ou seja, ao contrário do chef de cousine que está com um livro na mão, demonstrando ocupar uma posição mais elevada ou prestigiada do que a mulher que aparece nesta ilustração, ela está, como sugere a imagem, pondo as mãos na massa. Além desta imagem, aparece uma outra na seção intitulada de receitas. Trata-se de mais uma imagem de mulher, como podemos ver abaixo:


A mulher presente na imagem acima, embora vestida com trajes típicos ao ambiente da cozinha, traz na mão esquerda um menu enquanto, na direita, eleva um lápis à boca numa posição que transparece que esta mulher está indecisa, possivelmente sobre que receitas deverão constar no menu que ela, certamente, deverá organizar. Se lembrarmos que, como afirma Guilherme de Figueiredo, em prelibação ao livro A comida e a cozinha, que a literatura gastronômica esteve muito mais próxima dos homens, muito mais ligada ao macho, as observações feitas anteriormente não poderão sofrer objeções, sendo vistas, neste caso, como superinterpretações.
Ao estampar na capa a figura de um chef, Carolina Nabuco, talvez, estivesse, ainda que inconscientemente, reproduzindo um fato que é cultural, ou, como argumenta com perspicácia Guilherme de Figueiredo, uma ancestral divisão do trabalho – não custa lembrarmos que das três figuras que aparecem apenas em duas há a presença de uma mulher e é esta que transparece estar pondo a mão na massa.
Sob este aspecto, parece ser plausível afirmar que a cozinha também é um espaço marcado pelas relações de poder que trazem em si as marcas (das desigualdades das relações) de gênero. Para corroborar esta assertiva, cremos ser pertinente a seguinte afirmação de Guilherme de Figueiredo: "os livros de receitas contam quase sempre com a vasta contribuição feminina; os de cozinha profissional têm redação masculina, porque os machos aprenderam a escrever antes das fêmeas" (FIGUEIREDO, 1988, p.XIII).
Por outro lado, esta afirmação nos leva, diante das imagens analisadas, a uma possível contradição: o livro em análise é intitulado de livro de cozinha, mas sua redação é feita por uma mulher que, aliás, tinha muita instrução nas artes de comer e servir. Então, por que trazer em sua capa uma imagem masculina e no seu interior imagens femininas? Estaria, aqui, posta a velha dicotomia entre o público (esfera masculina = capa do livro) e o privado (esfera feminina = interior do livro)? A resposta a mais essa pergunta, talvez, seja afirmativa, se levarmos em consideração que a cozinha revela o modo como uma sociedade se estrutura:
[...] a cozinha constitui "uma linguagem na qual cada sociedade codifica mensagens que lhe permitem significar pelo menos uma parte do que ela é", isto é, "uma linguagem na qual ela traduz inconscientemente sua estrutura" (GIARD, 2005, p.246).

Neste caso, a linguagem, aqui compreendida de forma mais ampla possível, extrapolando, inclusive a esfera dos signos meramente verbais, o que nos permite incluir as imagens em pauta, "sendo parte da vida política e social, não só molda nossas percepções como é moldurada pelo social. Sendo capital na percepção da realidade, a linguagem tem sido canalizada para atender aos interesses dos grupos dominantes. Seria razoável escrever que as formações discursivas são uma réplica das estruturas da sociedade" (MOREIRA, 2002, p.121).
Saindo da esfera das ilustrações e entrando na parte textual do livro, Meu livro de cozinha apresenta, além de uma nota da editora, duas partes: a da introdução e a das receitas. Na primeira, a autora, inicialmente, apresenta um conjunto de termos franceses e os seus respectivos significados, como por exemplo: blanchir que é "ferver os alimentos em água, salgada ou não, para endurecê-los, livra-los de impurezas, ou simplesmente cozinhá-los (legumes)"; bouillon que é "caldo de carne; consommé"; braiser, isto é, "corar um alimento em panela descoberta e com gordura. Cozinhar em seguida em panela coberta e acrescentando ligeira quantidade de líquido. É o processo que conhecemos como assado de panela" (NABUCO, 1977, p.15). Ao todo, nesta seção, são apresentados 35 termos que, recorrentes na maioria das receitas presentes no livro, demarcam o espírito francês presentes nelas e em que a sua autora teve sua formação forjada.
Logo após essas dicas, segue-se uma outra seção cujo título é alguns princípios de cozinha. Aqui, está presente um conjunto de dicas que são formuladas a partir da experiência na cozinha, ou seja, a partir do pôr a mão na massa:
Só a experiência permite saber, por exemplo, que a carne de carneiro requer forno mais brando do que a carne de vaca ou de aves; que empanada de frutas requerem mais calor do que bolos grandes...
Conheço uma cozinheira que põe a mão dentro do forno e começa a contar. Se só consegue contar até 3, o forno está quentíssimo. Se vai até 20, o calor está bom para suspiros, isto é, quase frio (NABUCO, 1977, p.19).
A partir do fragmento acima, podemos dizer que as receitas ou as dicas existentes nos livros de receitas não são frutos de um único indivíduo. Elas são resultantes de experiências passadas de um para outro. Isso fica evidente em mais este trecho do livro em pauta: "cozinhar duas horas em fogo brando. A cozinheira que preparou esta sopa [de cebolas] avisa que, cozinhando demais, a carne pode tomar mau gosto" (NABUCO, 1977, p.44). Este exemplo, assim como o da citação anterior, corrobora, portanto, a afirmação de que as receitas, embora possam ser coletadas por um único indivíduo, são fontes que trazem em si mesma um conjunto de experiências que, permeadas de cheiros e sabores, são passadas, ao longo dos tempos, de um indivíduo para outro numa eterna troca de experiências a partir das quais, dependendo muitas vezes do sucesso alcançado com determinado prato, as próprias receitas são reformuladas, refeitas.
Isso decorre do fato de que o ato de cozinhar é "o suporte de uma prática elementar, humilde, obstinada, repetida no tempo e no espaço, com raízes na urdidura das relações com os outros e consigo mesmo, marcada pelo ‘romance familiar’ e pela história de cada uma, solidária das lembranças de infância como ritmos e estações" (GIARD, 2005, p.218). Nesse universo onde a experiência, na maioria das vezes, dita as normas e dela depende o sucesso final de cada receita, o contato entre a cozinheira e os ingredientes deve ser marcado por uma fina sintonia. Nesse processo, o tato, ao lado do olfato, parece, mais do que os demais sentidos, ser imprescindível: é pelo toque que verificamos se os alimentos estão prontos ou quanto tempo falta ainda para eles chegarem ao ponto.
Além dessa base eminentemente empírica, as receitas culinárias, no dizer de Giard (2005), são textos que, entre o aparentemente trivial, trazem um conjunto de saberes que exigem algumas competências: saber fazer, aprender a fazer, dizer como fazer. Ou seja, as receitas culinárias, com uma língua e um corpo próprios, trazendo segredos e convivências, são a materialização textual de uma "sucessão [de] gestos que se encadeiam, [do] hábil movimento das mãos [que] necessitam por sua vez das palavras e do texto para circular entre os que lidam na cozinha" (GIARD, 2005, p.287).
Ainda na introdução de seu livro, Carolina Nabuco apresenta uma lista com o nome de alguns temperos escrita em três línguas: português, francês e inglês, o que, conforme esclarece uma nota de rodapé, é para auxiliar aquelas "donas-de-casa que costumam procurar receitas em livros estrangeiros" (NABUCO, 1977, p.20). Seguem-se a essa lista umas notas sobre esses temperos, as quais procuram esclarecer com quais pratos eles combinam mais para que se possa realçar o gosto dos alimentos sem que as suas características sejam alteradas. Assim, é dito, por exemplo, que "coentro (parecido com a salsa) é o melhor tempero para peixe e camarão" ou que "a salsa é talvez o tempero de uso mais generalizado, deixando de contribuir ao gosto de qualquer prato e dando, com seu vivo verde, efeito mais cuidado aos pratos em que aparece picadinha" (NABUCO, 1977, p.20).
Além disso, a autora procura mostrar que alguns desses temperos são preferidos por determinados por povos na composição de certos pratos, como é o caso dos "franceses [que] nunca omitem cenoura entre os temperos, nos refogados e na cozinha" e que "para os pratos doces preferem o açúcar guardado num vidro com favas de baunilha, às essências comerciais"; ou dos holandeses que "usam cominho no pão e no queijo. Vão bem com massas, sobretudo acompanhada goulash húngaro" (NABUCO, 1977, p.21).
Após as notas sobre os temperos, segue-se uma secção denominada de menus e serviços. Nela, Carolina Nabuco, recorrendo a exemplos de uma época em que a sua casa recebiam grandes visitas ou em que ela era convidada para grandes jantares, registra mudanças nas regras de serviço de mesa e na variedade dos menus. Diante dessas alterações, ela procurou sorver "o movimento e o colorido culinário, próprios de cada época, levantando assim, para cada uma, um retrato característico" (NABUCO, 1977, p.22). A posição da autora, ao construir um retrato próprio para cada uma dessas épocas, é importante porque "os hábitos alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância, em que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias" (GIARD, 2005, p.212).
Carolina Nabuco parece ser coerente com isso ao registras as mudanças ocorridas na arte de comer e servir à mesa, as quais determinaram a passagem do hábito de servirem-se os pratos ao pares ao hábito de pratos circulantes em redor da mesa. Além disso, os menus deixaram de ser uma lista de várias páginas e emergiu uma nova figura: a dos "maîtres-d’hôtel, com seus agregados especializados". Entretanto, as mudanças apontadas por Carolina Nabuco não só demarca diferenças entre cozinhas, a da França e a da Inglaterra, por exemplo, cada uma com seus serviços singulares; mas também hábitos culturais entre determinados países. Neste último caso, tomando a Inglaterra como modelo de luxo na arte de comer e servir à mesa, Carolina Nabuco chega a fazer a seguinte afirmação:
Uma das principais diferenças, em relação aos usos do resto da Europa, era o da criadagem não usar luvas. Não faltavam ingleses maliciosos para suspeitar que, nos países latinos, as luvas serviam para esconder sujeira. A seu ver, bastava lavar as mãos e unhas com sabão... (NABUCO, 1977, p.25).
Como se pode perceber, o retrato apresentado por ela não só traz as marcas dos gostos e dos temperos de cada época, como também apresenta traços culturais diferentes de cada país, demarcando as relações de poder entre um país e outro. Veja-se que no exemplo citado anteriormente o fato de usar luvas nos países latinos era, aos olhos ingleses, uma forma que podia indicar estar escondendo sujeira entre as mãos. Além disso, ainda que, conscientemente, não seja o seu objetivo, é possível, aqui e acolá, encontrar passagens neste seu livro de cozinha que revelam os comportamentos das mulheres dentro da esfera privada da cozinha.
Muitas delas, como afirma a própria Carolina Nabuco, preocupadas em, entre listas de várias páginas, saber quais receitas comporiam o menu do almoço ou o do jantar. Ou seja, os cadernos de receitas ou os livros de cozinha revelam, na opinião de Ferreira e Mello (2007), "fragmentos de uma escrita feminina e sua relação com o mundo". Como exemplo disso, podemos citar o seguinte trecho:
Vejo agora muitas diferenças desde o meu tempo de jovem. Vejo, por exemplo, todas as mulheres, minhas contemporâneas, com a mesma silhueta delgada. Vejo em todas uma cintura finíssima, a realçar a redondeza dos quadris que traiam, alguns deles, bons apetites. A evolução que vi nascer na adolescência, e que minha admiração acompanhava, foi sempre no sentido da diminuição do peso e de centímetros, nunca no de aumento. Cabia-me apenas estranhar os cortes nas medidas que se tornavam necessários (NABUCO, 1977, p.22).
Como se pode ver, o fragmento anterior mostra como é possível, a partir de registros presentes em um "simples" livro de cozinha, encontrar marcas de como uma sociedade modela costumes para o ser feminino. Percebemos, neste excerto, como foram ocorrendo mudanças nos modos de vestir, as quais, amiúde, fizeram com que as mulheres de quadris delgados passassem a ter formas menos salientes e mais esguias, pois, como argutamente percebe Carolina Nabuco, as mudanças nos hábitos de comer e de vestir ocorreram sempre no sentido de diminuir peso e centímetros, nunca no de aumentá-los.
Neste caso, devemos reiterar que, vista como uma questão cultural, a comida, se estudada por esse viés, permite que cheguemos à memória de um grupo, de uma sociedade ao mesmo tempo em que revela o quanto ela mesma, a comida, é modelada pela cultura que revela:
Como todo agir humano, essas tarefas femininas [as da cozinha] dependem da ordem cultural: diferem de uma sociedade a outra, sua hierarquia interna e seus modos de proceder; de uma geração a outra, transformam-se as técnicas que presidem essas tarefas como as regras de ação e os modelos de comportamento que dizem respeito a elas (GIARD, 2005, p.218).

Esta parte do livro em pauta, intitulada de menus e serviços, é importante também porque mostra como comida e memória estão entrelaçadas, ou seja, os territórios da memória não são feitos apenas de lembranças, mas também de gostos, cheiros, cores, sabores, pois "o prazer de um sabor centra-se na língua e no céu da boca, embora com freqüência não comece ali, mas na lembrança" (ZINN, 2002, p.16).
Para corroborar isso, podemos trazer à tona mais um exemplo do livro em pauta no qual a sua autora diz que, quando jovem, havia sido convidada para um jantar de cujo menu ela apenas se lembrava de um épinards aux croûtons: "o preparo desta verdura deve ter sido magistral para explicar suas sobrevivências em minha memória, tantos anos depois" (NABUCO, 1977, p.27). Além desse, eis outro exemplo que demonstra como são contíguas as relações entre comida e memória:
Mas talvez a mais bonita apresentação de frutas de que guardo lembrança é a de um verdadeiro monumento de frutas descascadas. Isto foi no Chile – onde as frutas são lindas – na Embaixada do Brasil. No centro um abacaxi também descascado formava um pedestal natural para as suas folhas. Repousava provavelmente sobre uma base invisível dando altura ao monumento. As frutas (só as uvas tinham casca) eram belas e variadas – laranjas, ameixas, grandes peras, lindos pêssegos e outras daquela terra privilegiada. Gelo picado e açúcar cristal davam uma notinha de prata (NABUCO, 1977, p.212).
Nota-se, ainda na parte dos serviços e menus, uma grande recorrência de termos franceses seja para a denominação dos pratos, seja para as partes de que se compunha um menu àquela época, ou seja, um menu era, estruturalmente, composto pelos seguintes elementos: hors d’euvre d’office, premier service, coup du milieu, deuxième service, desserts assortis e , por último, vins. Entre os menus apresentados neste livro, podemos citar este que foi o do casamento de núpcias dos pais de Carolina Nabuco:
MENU

HORS D’OEUVRE D’OFFICE – Beurre frais; radis; olives; sardines; anchois et saucissons


PREMIER SERVICE – Crême de volaille à la Reine Margot; consommé de gibier à la rintanière; petites croustades à la Capucine; huîtres à la florentine; badejo à la Regence; bijupirá sauce ravigotte; longe de veau à la flamande; selle d’agneau à la purée de marrons; timballes de lapereau à la Toulouse; galantine de macuco à la Périgord; mayonnaise de poulard et salade russe.
COUP DU MILLIEU – Punch au champagne.

DEUXIÈME SERVICE – Dindes à la brèsilienne et truffées, jambon d’York à la gelée, asperges sauce Mousseline, croutes à la Richelieu, galée au Dantzig e bombe à la Siciliènne.
DESSERTS ASSORTIS –
VINS – Madère, Xerez, Bordeaux, Chateau d’Yquem, Bourgogne, Rhin, Rhum, Champagne frapp

A presença desses termos em francês é um dado importante não só porque Carolina Nabuco teve sua formação feita, em grande parte, na França; mas também porque traz em si registros de uma época, a belle époque, em que a França ditava os padrões de ser, comer e se vestir. Aliás, no campo da culinária, a supremacia francesa começou já no início do século XIX, exercendo, "graças à superioridade inconteste dos seus molhos sobre os molhos italianos" (QUEIROZ, 1988, p.55), sobre as demais cozinhas o seu domínio e influência.
Ainda nesta secção, Carolina Nabuco traz, entre dicas e recordações de antigos jantares e almoços, registros de "um mundo perdido". Ou seja, pela comida, pelos hábitos culinários, vê-se desfilar as mudanças entre gerações:
Eu sou da geração em que nenhum jantar, mesmo os de família, tinha menos de dois pratos, além da sopa. Vivi num mundo em que não faltavam bons domésticos, mesmo nas casas mais modestas. Os horários eram rigorosos e os programas de passeios não dispensavam os mais moços da pontualidade à mesa. O respeito aos pais assim o exigia e não existiam geladeiras para recurso de refeições fora de hora.
Em todas as casas, as mesas eram postas com a indefectível toalha branca adamascada. No quadro familiar de minha infância nunca faltava também a sopeira fumegante colocada em frente à dona da casa. Hoje a sopa, quando aparece (coisa que está se tornando um tanto rara), é em geral trazida já nos pratos.
A roupa de mesa que se usa hoje, sempre alegre e variada, não é tão sujeita ao trabalho especial das lavadeiras. Os tecidos brancos adamascados que ainda aparecem são apenas para servir o esnobismo (ou saudosismo) de alguns requintados... (NABUCO, 1977, p.27-28).
Pelo excerto acima, podemos dizer que os cadernos de receitas ou os livros de cozinha são também territórios de confissão. Neste caso, o ato de comer pode ver visto como "um verdadeiro discurso do passado e o relato nostálgico do país, da região, da cidade ou do lugar em que se nasceu" (GIARD, 2005, p.250).
A maior parte textual de Meu Livro de Cozinha, como já era de se esperar, é dedicada às receitas. Em cada uma das secções dessa parte, são apresentadas, de forma bastante concisa, informações, sejam culinárias, sejam "históricas", sobre os pratos que integram as receitas a serem apresentadas. Ao todo, o livro apresenta 246 receitas distribuídas, respectivamente, da seguinte forma: sopas (30); molhos (26); peixes e crustáceos (38); aves, terrines e galantines (19); vitela e carne de vaca (17); carneiro (07); porco e leitão (04); coelho e pequenos animais (06); miúdos em geral (12); ovos (05); legumes e verduras (18); soufflés (06); massas (22); aspics e chauds-froids (08); e sobremesas (28). Estas últimas estão divididas em duas secções. A primeira apresenta vinte e uma receitas de sobremesas e a segunda contém sete receitas de frutas naturais que podem ser servidas como sobremesas.
Como todo texto, as receitas culinárias têm uma estrutura própria que, segundo Giard (2005), diz respeito a quatro domínios distintos de objetos e ações: os ingredientes; os utensílios e recipientes; as operações, "verbos de ação e descrições do hábil movimento das mãos"; "os produtos finais e a nomeação dos pratos obtidos". Esses quatro elementos, encontrados em uma mínima receita, são imprescindíveis para fazer "uma descrição do modo injuntivo que suscita e acompanha a passagem ao ato, gerando, depois, no tempo exigido pelos meios indicados, o resultado prometido" (GIARD, p.288).
Sob este aspecto, podemos afirmar que as receitas presentes em Meu Livro de Cozinha (1977) não apresentam, grande parte delas, esses quatro elementos visíveis numa receita mínima. A autora, talvez isso seja uma marca de seu estilo, opta por romper com essa "estrutura padrão" para escrever receitas em que, às vezes, ficam bem nítidos os quatros domínios, como neste caso:
Pâté Adélia
(Para 10 pessoas)
700 gramas de fígado de ave.
400 gramas de carne de porco.
200 gramas de carne de vaca.
2 pães de 50 gramas (de molho
em ½ xícara de leite).
125 gramas de manteiga sem sal.
400 gramas de toucinho.
3 ovos cozidos passados na peneira ou, de preferência, no liquidificador.
Temperos para o final
3 cebolas, pimenta-do-reino, sal, noz-moscada, trufas, ½ copo de vinho Madeira.
O fígado deve ficar no leite durante uma noite. Depois passar na peneira, deixando escorrer o leite (que não se guarda).
Fritar as cebolas na manteiga até dourar. Retirar a cebola da manteiga e churrascar o fígado na mesma manteiga. Passar pela máquina ou pelo liquidificador. Uma vez se for no liquidificador, três vezes se for na máquina.
Passar (juntas) as carnes de porco e vaca. Passar o toucinho separado, misturar e guardar um pouco para forrar a fôrma.
Misturar todo o resto, menos os temperos, e passar na peneira de seda. Acrescentar os temperos; se for preciso, mais 10 gramas de manteiga derretida. Encher a fôrma (untada com toucinho). Cozinhar em banho-maria 1 hora e 15 minutos. Espetar um palito para verificar se está cozido. Não deixar escurecer demais.
Cercar o patê com losangos de gelatina, feitos com um litro de caldo de galinha, 7 folhas de gelatina, ½ copo de vinho Madeira (NABUCO, 1977, p.149-150).
Outras vezes, torna-se difícil perceber esses quatro domínios, principalmente o domínio dos utensílios e recipientes, aos quais quase não são feitas referências, mas que podem ser depreendidos a partir do que é dito, ordenado, aconselhado, relembrado nessas recitas. Como exemplo desse último caso, podemos citar a receita a seguir cuja estrutura é semelhante à da maioria das receitas existentes no livro em pauta:
Outra sopa de alhos (de Júlia)
Pôr em água fervendo os ossos e a carne de uso diário e acrescentar muito alho (uns doze dentes). Depois de ferver bem, acrescentar uma cebola, uma cenoura, um nabo, três tomates, alho-poro e aipo, se houver. Ferver bastante. Mais tarde, acrescentar um pedaço de abóbora e batata. Coar e servir (NABUCO, 1977, p.43).
Essa receita, como se pode ver, não possui, em separado, os domínios dos ingredientes, dos utensílios, do fazer e do servir. Pelo contrário, ela possui uma estrutura muito concisa que, a nosso ver, valoriza mais o domínio do fazer, ou seja, dos "verbos de ação e descrições do hábil movimento das mãos" e é essa estrutura que apresentam a maioria das receitas de Meu livro de cozinha (1977), já que elas foram escritas, aventamos, como se o seu leitor estivesse cozinhando, isto é, em ação, pondo as mãos na massa.
Apesar da concisão das receitas, o que exige um conhecimento prévio sobre a arte de cozinhar, Carolina Nabuco, colocando à parte termos técnicos como "escaldar", "refogar", "untar", consegue dizer estritamente o necessário, ou seja, exprimir-se sem dar margem a equívocos. Aliás, como afirma Queiroz (1988, p.47), além da arte da culinária, o que chama atenção em um escritor é o seu estilo, isto é, o saber "transmitir ao leitor, com clareza e segurança, as receitas a realizar: pesos, medidas, porções, proporções, tudo é assinalado com minúcia".
Sendo a comida um produto tributário da cultura, as receitas culinárias trazem em si traços que revelam não só significados culturais como também interesses econômicos, poderes políticos, necessidades nutricionais, desenhando, assim, uma verdadeira geografia da sociedade ao registrarem os grupos e classes de pertencimento, marcados por diferenças, hierarquias, estilos e modos de comer. Esse amálgama cultural está presente não só na variedade de ingredientes, mas, sobretudo, nos nomes das próprias receitas, as quais "guardam histórias, tradições, tecnologias, procedimentos e ingredientes submersos em sistemas socioeconômicos, ecológicos e culturais complexos, cujas marcas territoriais, regionais ou de classe lhes conferem especificidade, além de alimentarem identidades sociais ou nacionais" (CANESQUI e GARCIA, 2005, p.12).
Nesse sentido, embora nosso objetivo não seja fazer um estudo filológico, inventariando o léxico dos títulos das receitas de Meu livro de cozinha, vamos encontrar vocábulos que pertencem, em sua maioria, ao campo semântico da culinária, ou seja, nos títulos dessas receitas é recorrente a presença de termos que designam vegetais, legumes (creme de aspargos, sopa de tomates, velouté de alcachofras) ou remetem a hiperônimos como carne (sopa de carnes) ou peixe (velouté de peixes). Além disso, a referência a esses ingredientes é feita, em alguns casos, por vocábulos oriundos de outras línguas, geralmente o francês. Por isso, esclarece a autora, em uma das receitas, que "o nome Crécy é reservado aos pratos à base de cenoura, como o nome Mornay é reservado ao de queijo, Dubarry aos de couve-flor, Argenteuil aos de aspargos, etc." ou que "o nome parmentier é sinal de que se trata de um parto à base de batatas. Do mesmo modo, à la Conde indica que é à base de favas, à la Freneuse de nabos, Florentine de espinafre, etc." (NABUCO, 1997, p.42).
Ao lado disso, os vocábulos dos títulos das receitas remetem a costumes alimentares regionais (peixe à baiana, galinha da roça, rebuchada pernambucana, panelada pernambucana) ou de outros países (sopa de feijão branco à portuguesa, bortsch – sopa russa –, sauce espagnole, sauce allemande – chamado hoje de sauce parisienne –, molho holandês, molho tártaro, filets de pescadinha à inglesa, miolo de vitela à romana). Ademais, o inventário desse léxico revela também não só a presença de relações de raça (torta preta e branca), de classes (consommé à la reine, consommé à la royale, consommé à la reine Jeanne, charlotte burguesa de maçãs) como também aspectos políticos (torta às direitas), nomes de logradouros (sopa real grandeza), desejos (massa para sonhos) ou nomes dos utensílios (bife de panela, assado de panela, perdiz de caçarola).
Sendo a cozinha espaço habitualmente reservado às mulheres, mais do que aos homens, ainda que sejam registrados, ao longo da História, chefs e famosos cozinheiros, os títulos das receitas culinárias não podiam deixar de lado a presença feminina. Daí por que pululam nomes de mulheres em várias receitas: conssommé Joana, consommé à la reine Jeanne, outra sopa de alhos de Júlia, patê Adélia, charlotte Noêmia, charlotte Carmen, gnòcchi vienenses Maria José.
CONSIDERAÇÕES FINAIS


As receitas culinárias não só nos legam um saber fazer, um aprender a fazer e um dizer como fazer, mas também, em meio à sucessão de gestos que se encadeiam e compõem uma sinfonia de cheiro, som e sabor, revelam o hábil movimento de mãos que são capazes de unir matéria e memória, presente e passado, tradição e inovação, sonhos e desejos, amor e morte. Isso, dada a sua relevância, aponta para a necessidade da criação de uma memória culinária. Sobre essa necessidade, é muito pertinente a seguinte indagação de Eça de Queiroz (apud QUEIROZ, 1988, p.14): "De Sófocles, temos as tragédias, de Teócrito, as éclogas... Onde estão os molhos de Aftonetes?" Por isso, o grande romancista português conclamava: "já vastamente exploramos a Antiguidade nas suas letras: é tempo de a esquadrinharmos nos seus petiscos". Para tanto, urge que "os estudiosos fechem os livros e preparem as caçarolas".
Por outro lado, além da importância de registrar gostos, cheiros, cores, sabores, especiarias e condimentos, elementos importantes na construção de uma memória culinária, como bem queria Eça de Queiroz, as receitas culinárias trazem em si as marcas de "gestos de mulheres, vozes de mulheres que tornam a Terra mais habitável" (GIARD, 2005, p.297). Por isso, elas são fontes imprescindíveis na busca de traços do feminino e na construção de uma outra memória: uma memória feminina que ainda está imersa em muitas zonas mudas ou até mesmo num verdadeiro oceano de silêncio (PERROT, 2005). Por fim, num trabalho cujo corpus seja composto por manuscritos culinários, saber (do latim sapore) e sabor (do latim sapere "ter gosto"), palavras ligadas pelo mesmo étimo, passam a constituir, a um só tempo, entrada e prato principal.







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