quarta-feira, 11 de junho de 2008

Variações do Trágico em Carolina Nabuco



Marcelo Medeiros da Silva (UFPB)



INTRODUÇÃO


Escrita e saber estiveram, durante muito tempo, ainda, talvez, continuem, relacionadas ao poder e foram, por muito tempo, usados como formas de dominação e de exclusão de determinadas vozes que intentassem ecoar algum som em meio ao silêncio que era imposto para que se mantivesse a ordem social em uma sociedade de base falocêntrica, patriarcal, machista e sexista. Mesmo assim, o discurso hegemônico do patriarcalismo não conseguiu abafar determinadas vozes, principalmente de algumas mulheres que não estavam contentes em serem rotuladas de o segundo sexo e que, por isso, se negaram à subordinação.
Por causa, dentre outros fatores, das tentativas de subversão à ordem do pai, a integração de mulheres/escritoras ao universo da escrita foi marcada por uma trajetória bastante dolorosa, principalmente porque escrita e saber, além de serem usados como forma de dominação "ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até mesmo sentimentos esperados em determinadas situações" (TELLES, 2002, p. 402), eram tidas como ferramentas exclusivas do espaço masculino. Por isso, durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação.
Dentro do cenário literário, a escrita produzida por mulheres teve – e continua tendo – de conviver com uma política de ocultamento que trouxe conseqüências quase que irreparáveis. Muitas foram as mulheres que, embora com a pena em riste, não puderam se expressar e tiveram sua obra, sua intelectualidade assujeitadas ao Outro, o sujeito masculino. Por isso, persiste a necessidade de estudos que possam, segundo Schneider (2000), reconstruir a história literária produzida por mulheres, pondo em evidência o percurso, as dificuldades, os temores, as estratégias para romper o confinamento em que viviam e, ao mesmo tempo, promover a revalorização dessa literatura que no passado não recebeu devida atenção.
Nesse sentido, é preciso estudar os textos não-canônicos para que a história das mulheres e a de sua produção literária possam ser reconstruídas, o que pode transformar a visão tradicional da própria história literária a fim de que esta passe a levar em conta a produção literária de mulheres que, em meio às pressões de uma sociedade patriarcal, falocêntrica, sexista e machista, ousaram fazer da pena bandeira de luta, ainda que tenham, em seus escritos, registrado ou até mesmo sucumbido aos preconceitos dessa sociedade.
Esperamos estar, portanto, contribuindo para dar visibilidade às numerosas autoras que não figuraram nas histórias literárias brasileiras da época nem nas posteriores e, assim, trazer à tona uma memória literária feminina na literatura brasileira que vem sendo negligenciada ao longo dos séculos (CUNHA, 2001; MOREIRA, 2006). O regaste de produções femininas é importante porque, por um lado, permite-nos a recuperação de uma identidade feminina há muito silenciada e, por outro lado, permite:
o desenvolvimento de uma arqueologia literária que resgatasse os trabalhos das mulheres, que de diversas formas foram silenciados ou excluídos da história da literatura. Neste sentido, engaja-se no trabalho de recuperação de uma ‘identidade feminina’ que aponte para as diversas formas de sua experiência, rejeitando, enfaticamente, a repetição e reprodução dos pressupostos mitológicos da crítica literária tradicional, que, via de regra, identifica a escrita feminina com a "sensibilidade contemplativa", a "linguagem imaginativa" etc., bem como as diversas formas como a biologia, a lingüística e a psicanálise vêm definindo a especificidade da linguagem feminina (HOLLANDA, 1994, 3).
De acordo com Carvalho (2001), resgatar textos de escritoras, produzidos em períodos anteriores aos movimentos sociais da década de 60 do século passado, é, dentre outros aspectos, uma rara oportunidade de trazer a lume a produção intelectual de todo um grupo social marginalizado pela cultura patriarcal hegemônica para a qual as mulheres, não sendo capazes de construir e elaborar aspectos de nosso imaginário social, já que estas eram uma tarefa masculina, deveriam preocupar-se apenas com as prendas domésticas, visto que o lar era sobretudo o espaço de confinamento para muitas mulheres que eram incorporadas e consolidadas ao marido ou ao pai.
Na empresa de resgate de textos de autoria feminina e de construção de uma memória literária feminina brasileira, este artigo aborda a presença do trágico em dois contos da escritora fluminense Carolina Nabuco: "A pérola rosada" e "O viúvo", respectivamente. Para tanto, dividimos o presente texto em duas partes. Na primeira, construímos a biografia da escritora Carolina Nabuco ao mesmo tempo em que tecemos algumas considerações gerais sobre a sua obra que compreende romances, biografias, contos e ensaio. Na segunda parte, analisamos, nos dois contos presentes no livro O ladrão de guarda-chuva e outros dez contos (1969), os resquícios do trágico, ou seja, resquícios da suplantação da vontade individual pelo destino, categoria importante na compreensão de boa parte dos contos que compõem a referida obra.

Carolina Nabuco: esboços de uma fortuna crítica


Romancista, memorialista, biógrafa e mulher de grande cultura, Carolina Nabuco nasceu em 1890 e faleceu em 1981. Filha de Joaquim Nabuco, escritor e senador do império, a cujo nome sempre esteve atrelada como se fosse uma sombra do próprio pai, Carolina Nabuco, segundo Schumaher e Brasil (2000), consagrou-se por possuir um estilo simples e erudito, rico e profundo em conteúdo.
A respeito da obra de Carolina Nabuco Gabriela Mistral escreveu, na orelha do livro O ladrão de guarda-chuvas e dez contos (1969), que:
Poças veces me acarreó tanta alegria um escritor no metafórico ni lírico. Me parece que usted sea el novelista por excelência que hace solamente lo suyo sin recurrir a los géneros colaterales, para dar a um texto más valor o volverlo más convincente. Como usted, igualmente permeado de experiencia humana e igualmente limpio de recursos extraños, escribía sus novelas don Miguel de Unamuno, el español, y me lo recuerda usted también en su saturatón racial.
Ao falar da história de seus livros, Carolina Nabuco afirmou que sua vocação pelas letras despontou assim que aprendeu a ler e a escrever. Ela atribui isso à influência do pai, Joaquim Nabuco, "que sempre via com a pena à mão". Além disso, confessa em Oito décadas, livro de memórias que integra o seu acervo literário, que "entre os vários gêneros literários que tentei nenhum me atraía como o da ficção. Nos meus anos de adolescência, na primeira década do século, quando não existiam ainda nem cinema nem televisão, a juventude tinha de se satisfazer com a leitura de obras de ficção" (NABUCO, 2000, p. 264).
Esse seu desejo pela leitura de obras de ficção fomentou um outro: o de escrever obra de ficção. Nessa empresa, Carolina Nabuco empreendeu algumas tentativas vãs, como ela mesma recorda:
Aos quinze anos tentei publicar numa dessas revistas um conto que foi rejeitado. Animaram-me, porém, a continuar. Outro que escrevi mais tarde foi igualmente rejeitado.
[...]
Fiz nova tentativa, num concurso com bons prêmios, aberto pelo Jornal do Brasil. Meu querido amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade fazia parte da banca de julgamento. Sabia que eu concorrera e tinha muita vontade de me adivinhar entre os autores, mas nem ele, nem ninguém, adivinhou, e meu conto perdeu-se no monte dos rejeitados (NABUCO, 2000, p. 265).
Apesar dos insucessos de início, Carolina Nabuco alimentava o desejo de se tornar escritora. Esta era, conforme afirma em Oito décadas, a sua mais cara ambição de menina, embora reconhecesse que ainda lhe faltavam "experiência e técnica para fazer coisa prestável":
Só desistirei de ambições literárias se verificar que não tenho mesmo talento. Sei que meu cérebro, terreno inculto, é pelo menos boa terra, fértil em duas gerações. Só depois de trabalhar para me armar de um bom estilo, poderei dizer, se tudo for debalde, que não há ouro (NABUCO, 2000, p. 99).
Por isso, ela continuava, na busca pela experiência e técnica, escrevendo, primeiro em inglês e francês, línguas em que fizera seus estudos, e, depois da morte do pai, em português. Essas suas primeiras investidas literárias eram todas narrativas curtas com as quais não pensava em ganhar destaque:
Não pensava em publicar esses escritos, nem me animava a ver meu nome sair em letras de fôrma. Essas primeiras tentativas foram feitas em geral concorrendo para concursos de jornal. Ganhei o prêmio num desses e o conto foi publicado em O Jornal, que pertencia ainda a Renato Lopes, o fundador (sendo adquirido, depois, por Assis Chateaubriand para ser o elo inicial dos "Diários Associados"). O outro conto que mandei para um concurso, promovido não me lembro mais em que jornal, não só não ganhou nenhum dos três prêmios, como tive o dissabor de ouvir as seguintes palavras de Osório Duque Estrada, responsável pelo concurso: "Os demais concorrentes não têm aptidão para as letras" (NABUCO, 2000, p. 265).
Para Carolina Nabuco, só pertenciam à classe de obras de arte, ou seja, à verdadeira literatura, a poesia e a ficção. Por isso, "quando eu contemplava a possibilidade de me tornar escritora [...], desejava infinitamente mais aparecer como romancista do que como historiadora ou ensaísta" (NABUCO, 2000, p. 266). Entretanto, a sua estréia no campo das letras deu-se com o lançamento de uma biografia: A vida de Joaquim Nabuco (1929). Esta que é considerada por sua própria autora o seu livro e que lhe consumiu oito longos anos de intenso labor:
É "meu livro" porque foi durante muitos anos o único; o primeiro que escrevi e que já vivia em mim desde muito tempo. Nunca tive dúvida de que seria o volume mais importante de minha pobre bagagem literária, o mais necessário de ser escrito, para mim e para a divulgação de fatos ainda esparsos sobre Joaquim Nabuco (NABUCO, 2000, p. 266-267).
A vida de Joaquim Nabuco, conforme afirmam Schumaher e Brasil (2000), fez com que o poeta Alberto de Oliveira liderasse um movimento para que Carolina Nabuco fosse eleita para a Academia Brasileira de Letras. No entanto, a escritora, "considerando que a academia, nos termos do estatuto, era reservada apenas a escritores, não aceitou o convite formalizado pelo poeta" (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p. 141). Após o lançamento de A vida de Joaquim Nabuco, que foi, à época, um êxito de livraria, pois foram vendidos, em duas edições, mais de quatro mil exemplares, vieram somar a essa pobre "bagagem literária", palavras de Carolina Nabuco, outros livros que não biografias: A sucessora (1934) e Chama e cinzas (1947).
Sobre a gênese do primeiro, a sua autora afirmou que ele, inicialmente, foi planejado como um conto que se chamaria "O retrato da primeira esposa", mas que, aos poucos, foi crescendo até se tornar o romance A sucessora, cujo enredo, à época, parecia, segundo a própria escritora, novo:
[...] A sucessora é apenas a história de uma obsessão, a da esposa pela morta. Contei um caso mais psicológico que real. [...]a minha heroinazinha, Marina, deseja que aparecessem manchas na imagem imaculada da morta; que Rebecca houvesse sido infiel, adúltera; e desejava, também, através de todo o livro, que o fogo destruísse o lar que fora da outra e ao qual ela não conseguia adaptar-se (NABUCO, 2000, p. 269).
Apesar da boa recepção da crítica que lhe tecera alguns artigos elogiosos, A sucessora só alcançou "boa venda alguns anos mais tarde e por um motivo incidental": sua semelhança com o romance mais falado na época – Rebecca, da escritora inglesa Daphene du Marier. Este livro alcançou um sucesso mundial quase sem precedentes e serviu como inspiração para um filme magistral: Rebecca, de Alfred Hitchock. Para muitos, Carolina Nabuco havia sido plagiada pela escritora inglesa. Sobre este aspecto, a escritora brasileira escreveu nas páginas de Oito décadas:
Eu havia traduzido o livro para o inglês com esperança de vê-lo editado nos estados Unidos. Esta tradução foi oferecida – sem êxito – a várias editoras por uma agência literária de Nova York, a quem confiei o manuscrito para esse fim, mediante contrato. Eu havia pedido a esse literary agent que tentasse também encontrar-me um editor na Inglaterra. Logo que li Rebecca e me inteirei do caso, escrevi a esse agente perguntando se havia atendido ao meu pedido de encontrar um editor em Londres. Respondeu-me que não. Pouco depois, porém, apareceu um artigo no New York Times Book Review, ressaltando as coincidências existentes entre Rebecca e A sucessora, e o agente então (não creio que no mesmo dia) apressou-se em me escrever que, de fato, mandara meu romance a seu correspondente inglês, cujo nome me comunicou. Rebecca vendeu-se literalmente aos milhões; foi traduzido em muitas línguas e depois explorado num magnífico filme. Embora muitos me aconselhassem iniciar processo, eu fiquei plenamente satisfeita em ver o plágio ser geralmente proclamado pelos que haviam lido os dois livros. Eu fora talvez a primeira pessoa avisada. O informante foi meu amigo Bob Winans, um dos raros a quem eu havia mostrado os originais e que lera Rebecca no primeiro momento de sua publicação. Tive a princípio um grande desgosto, mas veio a convicção de que houve realmente plágio. O fato alcançou tal repercussão no Brasil, que me consolei perfeitamente e não cogitei de processo. Coisas desse gênero são, alias, extremamente difíceis de levar a bom termo. Quando o filme Rebecca chegou ao Brasil, o advogado de seus produtores (United Artists), doutor Alberto Torres Filho, procurou meu advogado, Bartolomeu Anacleto, para pedir-lhe que eu me prestasse a assinar um documento admitindo a possibilidade de ter havido mera coincidência. Se me prestasse a isso, eu seria compensada com uma quantia que o doutor Torres qualificou como "de ordem patrimonial". Não anuí, naturalmente (NABUCO, 2000, p. 140-141).
Esta citação retifica um equívoco presente em Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (1711–2001), de Nelly Novaes Coelho, no qual está escrito que Carolina Nabuco processou judicialmente a escritora inglesa, acusando-a de plágio. Como se vê pela citação acima, o plágio existiu realmente, mas o processo não. Álvaro Lins, crítico brasileiro que provou a existência do plágio, afirmou: "A sucessora e Rebecca são duas obras semelhantes como não creio que se possam encontrar outras em toda a história das literaturas" (NABUCO, 2000, p. 270). Entretanto, Carolina Nabuco não deixou de ver o seu livro chegar às telas não do cinema, mas da televisão. A sucessora, anos mais tarde, ganhou uma versão para a TV, numa telenovela da rede Globo.
Após a publicação deste seu primeiro romance, Carolina Nabuco lançou um outro: Chama e cinzas. Este, talvez, o mais difícil de ter sido escrito, porque faltava à sua autora substância: "Fui reunindo fragmentos de diálogos e títulos de capítulos, mas essas notas não passavam de lascas espalhadas. Lutava com uma grande falta de detalhes" (NABUCO, 2000, p. 142). Em Oito décadas, Carolina Nabuco registra, da seguinte forma, a maneira como havia trabalhado na elaboração de Chama e cinzas:
Estou tecendo o enredo do meu futuro romance ainda sem título. O primeiro personagem que ideei e ao qual já estou me afeiçoando é o de um banqueiro e homem de negócios de meia-idade. Sua vida financeira e industrial está me saindo parecida com a do barão de Mauá e a de Percival Farquhar, o arrojado americano que conheci lutando em vão junto do governo Bernardes para, com os milhões americanos de que dispunha, estabelecer a indústria metalúrgica que engrandeceria o Brasil. Não deixarei meu personagem, o Rabelo, lutar em vão.
Há muito tempo que elaborei o ambiente de família que aparece na primeira parte e que tracei o arcabouço dos últimos capítulos, cujo eixo é a ida forçada de Nica ao banquete, deixando o marido moribundo.
Estes pontos não constituem ainda enredo. Quero uma rivalidade de amor entre as duas irmãs, mas os personagens masculinos ainda estão obscuros. Fiz pelo menos doze esquemas de enredo, para fixar os personagens Fernando e Evaristo. Enveredei por vários caminhos falsos, rasgando muitas páginas. Li a mamãe o rascunho. Li-o depois a João de Azevedo Macedo, operado da vista, a quem fui fazer companhia várias tardes. Recebi dele algumas sugestões, outras de Mariana, que bateu duas cópias na máquina, outras de Jim Chermont, que foi o primeiro leitor do original já mais ou menos terminado, todas as sugestões foram ótimas (NABUCO, 2000, p. 143).
A respeito desses dois romances, escritos num período em que estava em plena ascensão o romance nordestino regionalista, escreveu, na contra-capa de Chama e cinzas, Manoel Carlos, novelista de televisão brasileiro:
Quando escolhi o romance A SUCESSORA, de dona Carolina Nabuco, para nele me inspirar e escrever uma história de 126 capítulos, para a televisão, já contava com o seu sucesso. Nada mais fácil do que sentir, lendo o romance, a força de suas personagens, a trama coerente e bem elaborada, a firmeza de cada um dos "ganchos", ingredientes perfeitos e indispensáveis a uma novela. Mas com a SUCESSORA eu tinha ainda mais: tinha qualidade literária, aprofundamento psicológico, com algumas questões, inclusive, levantadas pela primeira vez na literatura urbana brasileira, à época em que o romance foi escrito.
Agora estou diante de CHAMA E CINZAS, escrito 12 anos depois do primeiro, e percebo que estou novamente diante de uma história carregada de emoções fortes [...]. Poucos escritores brasileiros sabem, tão bem como Dona Carolina, incorporar o leitor aos seus cenários, fazendo-o circular entre as personagens e participar de suas vidas e emoções cotidianas. CHAMA e CINZAS reaparece nas livrarias muito oportunamente, uma vez que continuamos carentes de romances bons e, ao mesmo tempo, acessíveis ao leitor comum, que gosta de ler (como é hábito dizer) "da primeira à última página, sem conseguir parar". Estes romances que rareiam na nossa literatura são os romances fascinantes, empolgantes, vertiginosos. Assim é CHAMA E CINZAS de Dona Carolina Nabuco (grifos meus).
Segundo Coelho (2002, p. 110), estas obras, dentro do contexto da literatura da época, expressam "os primeiros esforços da mulher no sentido de questionar sua verdadeira posição na sociedade moderna". Apesar de estas obras, como afirma a referida autora, apresentarem todos os preconceitos que estão na base da sociedade tradicional, elas são importantes porque refletem atitudes, tendências ou ideais que expressam bem o processo de modernização no Brasil da década de 30 e 40.
Simultaneamente à composição de seu segundo romance, Carolina Nabuco desviou-se um pouco e escreveu um livro de instrução religiosa, Catecismo historiado – doutrina cristã para primeira comunhão (1940), e mais duas biografias: A vida de Virgílio de Melo Franco (1962) e Santa Catarina de Sena (1957). Estes dois últimos livros "nasceram de uma resolução súbita de minha parte, resultante, em ambos os casos, de uma emoção que me pôs logo a pena à mão, deixando por algum tempo o romance em que eu trabalhava" (NABUCO, 2000, p. 270).
A respeito dos motivos que a levaram a escrever a biografia sobre Santa Catarina de Sena, Carolina Nabuco afirma que não foi o fato de ser católica, mas, sim, o fato de Santa Catarina de Sena ter sido uma mulher que seria extraordinária mesmo que não fosse santa. Essa admiração por esta santa poderia ter levado Carolina Nabuco a se deixar levar pela emoção, mas ela afirma que não se deixou guiar pela emoção, pois possuía uma "tendência natural de ver objetivamente as figuras que mais admiro". Apesar disso, este livro é fruto de uma admiração por uma mulher, como Santa Catarina de Sena, não podia deixar de inspirar:
Olhei-a com deslumbramento pelo maravilhoso conjunto de seus dotes com que Deus a armou para seu destino de lutas: sua admirável eloqüência, sua penetração nos pensamentos, sua intrepidez; enfim, seu gênio. O gênio é mais raro que a santidade e nela ele sobressai com luz solar (NABUCO, 2000, p. 271).
A biografia sobre Virgílio de Mello Franco surgiu como forma de enaltecer o valor e pagar um tributo ao amigo cuja vida foi cortada em plena atividade e cuja figura humana Carolina Nabuco procurou, embora receasse não ter conseguido, colocar sobre o papel. Ao contrário das outras biografias de cujos acontecimentos narrados Carolina Nabuco não participou, os desta terceira biografia foram acompanhados por ela, já que havia sido coetânea de Virgílio de Mello Franco:
A pesquisa para a biografia de Virgílio de Mello Franco foi muito diferente. [...] conheci-o bem, estreitamente como são ligadas as nossas famílias, tendo sobrinhos em comum com ele. Tive necessidade apenas de verificar com maior exatidão fatos que eu conhecia por alto. O melhor dessa pesquisa foi a conversa com os seus amigos, foram os depoimentos que muitos deles me vieram trazer em casa sem esperar que eu os procurasse. Reuni assim – e conservo – um grosso maço de entrevistas que já foram uma satisfação (NABUCO, 2000, p. 273).
Enquanto escrevia essas biografias, Carolina Nabuco, não abandonando inteiramente a ficção, escreveu uma história e outra que foram reunidas no livro O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969). Um outro livro escrito por ela foi Retrato dos Estados Unidos à luz de sua Literatura. Este livro, pertencente ao gênero crítica literária, reúne, segundo a sua autora, textos sobre autores americanos, apontando o que existe de mais típico ou mais altamente americano nesses autores.
Além de ficção, biografia e crítica literária, integra o acervo de Carolina Nabuco um outro livro: Oito décadas. Livro de memórias, espécie de testamento literário, esta obra reúne as reminiscências de Carolina Nabuco ao longo de oito décadas, uma a menos do que ela própria viveu. Oito décadas é muito mais do que um simples livro de memórias. Ele é um testemunho de uma época: "Carolina fala dos costumes, da evolução da política brasileira e personalidades que marcaram um período decisivo na história da humanidade: Einstein, Duchamp e a arte abstrata, os avanços na medicina, a Segunda Guerra Mundial e muitos outros" (SCHUMAHER e BRASIL, 2000, p. 142). Este livro começa com as revoltas e guerras civis, o enterro de Floriano Peixoto, as primeiras lições com a mãe, os estudos na Inglaterra, a descoberta da vocação literária, as lembranças da constante presença paterna.
Para Francisco de Assis Barbosa, em prefácio à primeira edição de Oito décadas, Carolina Nabuco escreveu "uma obra séria, vigorosa, honesta", que "se ergue altaneira", pois foi "solidamente construída sobre os alicerces mais profundos do sentimento brasileiro, no que há de melhor e mais representativo: nossa tradição de respeito à lei e de amor à liberdade".
Resquícios do trágico em O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias

O vocábulo trágico pertence à categoria daquelas palavras possuidoras de uma grande extensão semântica: pode designar aqueles que escrevem ou representam tragédias ou o princípio filosófico ou categoria estética que encontram sua expressão mais pura na tragédia, embora se manifeste (ou possa vir manifestar -se) também no romance, na música, nas artes plásticas, na poesia ou mesmo em situações da vida real. Antes de apresentarmos uma "definição" do que seja o trágico, gostaríamos de reproduzir aqui o trecho final de Antígona, tragédia de Sófocles, no qual o Coro, como palavra final, fala:
CREONTE – Todo o meu desejo expresso em uma única súplica! Ouvi!
CORO – E não formules desejos. A vida é breve, e um erro traz sempre um erro. Desafiando o destino, tudo será destino. E aos mortais não cabe evitar as desgraças que o destino traz (SÓFOCLES, 2006, p.201).
Embora, como apregoam os formalistas russos, a literatura não possa ser usada como argumento para formulações, verdades ou definições científicas, esta resposta do Coro a Creonte, tirano cuja obsessão pelo poder levou sua esposa e filho à morte, acreditamos ser uma belíssima "definição" do que vem a ser o trágico que, na fala acima, é apresentado metaforicamente sob o nome de Destino. Ou seja, como o trágico diz respeito àquele evento de intenso dinamismo que irá acontecer e que não podemos evitar, ele é este acontecer cujas desgraças nós não podemos evitar, pois ele é fruto de um infortúnio do Destino ou de um erro nosso, eis o perigo com que convivemos, dos quais podem nascer a desgraça e o sofrimento.
Em conversação normal, o predicado trágico é, portanto, associado a acontecimentos que apresentam as seguintes características: são geralmente tristes; envolvem uma perda irreparável de um indivíduo único; tendem a envolver morte, particularmente a morte inesperada, desnecessária e prematura (MOST, 2001). Ainda de acordo com esse autor, o termo trágico, neste caso, "distingue e enobrece situações que expressam com particular pungência uma contradição fundamental entre os desejos mais profundos de satisfação e plenitude dos seres humanos e o indiferente universo no qual eles devem viver e fracassar" (MOST, 2001, p. 22-23).
Neste sentido, o vocábulo trágico não apresenta o mesmo significado que o seu homônimo grego: "Em síntese, tragikon descreve, na maioria das vezes pejorativamente, algo ou alguém que excede, ou especialmente quer exceder, as normas humanas comuns aplicadas a todos os outros" (MOST, 2001, p.23). Paralelamente a esse moderno uso estendido do trágico, um outro conceito mais complicado desenvolveu-se entre filósofos e intelectuais nos últimos séculos e apresenta as seguintes características:
Uma aparência de significação que esconde a arbitrariedade fundamental das coisas; uma responsabilidade pessoal esmagadora que vai muito além dos estreitos limites da liberdade de ação e não é diminuída pelas limitações evidentes da necessidade cega; uma nobreza indestrutível no espírito humano, revelada especialmente no sofrimento, na insurgência, na renúncia e na compreensão; um inextrincável nó do destino, cegueira, culpa e expiação; uma sabedoria final a respeito da grandeza e da inconseqüência do homem no universo, finalmente alcançada através da purificação conferida por um profundo sofrimento no mínimo parcialmente não merecido e às vezes pagando o preço de total aniquilação (MOST, 2001, p. 24).
Devido a sua polissemia, o trágico apresenta-se, na visão de Lesky (1996), como um "problema" que não pode ser resolvido em toda a sua extensão e profundidade, pois "é da natureza complexa do trágico o fato de que, quanto maior a proximidade do objeto, tanto menor é a possibilidade de abarcá-lo numa definição" (LESKY, 1996, p. 21). Por isso, segundo Vecchi (2004, p. 113), "nomear o trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto, cair em uma rede de incertezas, ser levado através de um Dédalo a procurar até mesmo lingüisticamente figuras recompositivas de um conflito – o quiasmo, o oxímoro –que apazigúem temporariamente o perturbante contato do extremo".
Noutras palavras, buscar uma conceituação normativa do trágico moderno e uma definição excludente dessa categoria é, nas palavras de Sterzi (2004), deparar-se inexoravelmente com a desilusão, pois inúmeras são as visões hermenêuticas sobre o trágico, muitas deles coexistindo em conflito entre si. Por isso, neste trabalho, consciente dessa impossibilidade de apresentar uma definição fechada para um vocábulo que refrata uma definição única, pois retém em si várias outras, não nos interessa apresentar uma definição estanque sobre o que é o trágico, mas mostrar como aspectos, resquícios dele estão plasmados na prosa de O Ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969), de Carolina Nabuco.
O primeiro conto deste livro em que identificamos a presença de elementos do trágico chama-se "A pérola rosada". Como afirma Lesky (1996), a palavra trágico desligou-se, sem dúvida alguma, da forma artística com que a vemos vinculada no classicismo helênico e converteu-se num adjetivo que serve para designar destinos fatídicos de caráter bem definido e, acima de tudo, com uma bem determinada dimensão de profundidade sobre a qual cumpre indagar. Pois bem, em "A pérola rosada", temos a sucessão de acontecimentos fatídicos que marcam toda a geração da família do narrador: Sebastião Silveira de Góes, o qual resolveu escrever sua história a fim de evitar que outras pessoas venham a sofrer com os infortúnios trazidos pela Pérola Rosada:
Eu, Sebastião Silveira de Góes, coronel do exercito Imperial de sua Majestade Dom Pedro I (a quem Deus Guarde!) declaro que esta é a verdadeira relação das desventuras que sucederam a meu Avô, primeiro possuidor da pérola rosada, a meus malfadados Pais e a outras pessoas que, em diferentes ocasiões, estiveram sob a influência dessa jóia fatídica (LGC, p. 121).
Essa jóia fatídica entrou na família dos Silveiras de Góes como doação feita pelo rei Dom José I a João Augusto Silveira de Góes, avô do narrador, o qual, logo após receber esse "presente de grego", "foi morto pouco tempo depois, no exercício de sua profissão que era a marinha de guerra" (LGC, p. 121). Como afirmou Schiller (apud SZONZI, 2004, p. 82), "quando deve haver infortúnio, mesmo o bem deve causar algum dano". Após a morte de seu avô, o filho deste, que à época tinha apenas nove anos de idade, alcançando a idade de homem, abraçou a mesma carreira do pai e "partiu com a esquadra portuguesa que devia forçar a entrada do Rio grande em 1776, ano em que ele morreu e em que eu [o narrador] nasci". Até então, o caráter amaldiçoado da pedra rosada não havia sido percebido.
A partir daí, a Pérola Rosada se torna parte de uma herança maldita cujos malefícios atingem todos os membros da família do narrador ou todos os que dela fazem uso. Não há nada, anteriormente, no texto que revele esse aspecto nefasto, maldito da jóia, a qual funciona como uma espécie de talismã que atrai toda sorte de infortúnio, dor e infelicidade para quem a possui. Somente em seu leito, o pai do narrador, em meio a delírios, vem a afirmar, embora não saibamos como ele chegue a isso, que o anel onde esta incrustada a Pérola rosada havia sido a causa de sua morte. Como ele não queria ficar longe de sua esposa, com quem estava casado apenas há um ano, passou a jóia fatídica a ela a fim de que, dentre pouco tempo, a esposa pudesse morrer e eles se encontrarem na morte. Entretanto, ela, que tinha muito apego à vida, ficou profundamente abalada dos nervos, e isso a deixou desvairada, sem razão: "a infeliz senhora viveu ainda alguns anos, olhando sem cassar e com grande terror, para o dedo em que estivera o anel" (LGC, p.123) que foi guardado num cofre e somente entregue ao narrador quando este atingiu a maioridade.
Assim como os seus antepassados, o narrador não pôde escapar dos infortúnios trazidos pela pérola rosada, razão por que ele resolveu escrever o seu testamento. A sua família, desde que o presente recebido pelo patriarca passou a ser uma jóia de família, mergulhou numa sucessão de acontecimentos fatídicos que foram passados, como uma espécie de herança maldita, a todos os membros que se apossaram dela. A pérola rosada é, portanto, o objeto maldito que faz com que seu dono/possuidor mergulhe numa série de infortúnios. Ter/reter para si a pérola é ter seu destino marcado por sucessivas desgraças das quais torna-se impossível escapar.
Todo o conto, espécie de testemunho, é o relato das desgraças acontecidas com todos os que "tiveram a imprudência ou a desventura de usar essa jóia poderosa" (LGC, p. 124). Pois bem, atingindo a maioridade, o narrador, seguindo a (maldi)tradição da família, entra para a carreira militar e é enviado para a milícia da Vila Rica de Minas, onde veio a conhecer Dona Leonor, parenta de sua mãe e com quem veio a ter um enlace amoroso:
Era Dona Leonor fina e alta, muito alva e meio corada, com olhos de andaluza e boca de flor, e era toda ela meneios, sorrisos e caprichos, ao quais me enlevaram de tal modo que me tornei incapaz de lhe recusar qualquer coisa embora percebesse claramente que ela era falsa e ambiciosa (LGC, p. 124-125).
Dona Leonor, vivendo em situação de extrema penúria, vê na presença daquele parente distante o meio de sair de suas terras e viver em outros ares mais férteis, mais afortunados. Mesmo sabendo que ela não o amava e que os seus meneios galantes eram frios e calculados, o narrador deixou-se seduzir pelas artes de Dona Leonor, com quem noivou e a quem contou as tristes circunstâncias ocorridas em sua família pelo poder da pérola rosada. Ao saber da existência dessa jóia, Dona Leonor, ardilosa, passou a pedi-la insistentemente. Em atendimento a esse pedido de sua futura esposa, o narrador, meio a contra-gosto, mandou buscar a jóia e deu-lha de presente. Esse momento é crucial para Sebastião, pois a decisão dele, tomada baseando-se em informações insuficientes e em considerações erradas – ele, apesar de saber do poder nefasto da jóia, acredita ser amado por D. Leonor, por isso a presenteara – trará para ele e para a própria D. Leonor uma série de infelicidades.
Entretanto, ambiciosa, Dona Leonor, vendo que aquele noivo não poderia concretizar seus sonhos de grandeza e "fortuna" e sabendo da amizade dele com o Marquês de São Pedro, recém-chegado a terras próximas à fazenda onde moravam, insiste em que o seu noivo consiga fazer com que o Marquês, "homem já velho, viúvo, gordo e feio", viesse à fazenda deles. Ao receber o ilustre visitante, Dona Leonor, oblíqua e dissimulada (assim como Capitu, personagem bastante conhecida em nossa Literatura), desmanchou-se em desvelos e "durante o jantar mostrou-se tão amável e graciosa, falou com tanta vivacidade e gentileza, riu com risadas tão cristalinas e esteve tão radiantemente bela que vi perfeitamente que ela ambicionava virar a cabeça do Marquês embora na minha conduta não percebesse que vantagem almejasse de semelhante conquista além da satisfação de vaidade" (LGC, p. 127).
O narrador podia não saber o que Dona Leonor queria, mas ela sabia tanto que, uma vez "fisgado o Marquês", o noivado com o narrador é desfeito e o casamento com o Marquês é realizado logo em seguida: "Em 23 de fevereiro de 1798, ouvi, da própria boca de Leonor, a notícia de que eu era desprezado e de que nosso solene compromisso se achava rompido a fim de que minha noiva se tornasse marquesa, grande e rica" (LGC, p. 128).
Dona Leonor, sem saber, estará fadada ao engano e, apesar da ascendente prosperidade, estará fadada à ruína, pois, como afirma Szondi (2004), "não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação (lembremos que Dona Leonor pensa estar, ao casar com o Marquês, se livrando daquela vida de privações) tornar-se o aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína" (SZONDI, 2004, p. 89). Essa busca desenfreada de D. Leonor por fortuna, luxo, a conduzirá para a desdita e o que parece ter sido uma fortuna, ou seja, sorte, se revelará como desgraça.
Neste caso, casar-se com o Marquês só veio a contribuir para que ela desencadeasse o que já havia sido traçado pelas mãos do Destino: o casamento de D. Leonor é o primeiro passo para a morte, para sofrimento advindo de uma escolha errada que fazemos e que, como acontecerá com esta personagem, poderá nos levar à morte, pois as escolhas que fazemos pensando estarmos nos livrando da ruína é que nos conduzirão, inevitavelmente, a ela.
Atordoado com a resolução de D. Leonor, Sebastião pediu que ela lhe restituísse a Pérola rosada: "Também não me recordo do motivo que me levou, em tal momento a querer conservá-la, mas talvez tenha sido o desejo de encontrar por ela a morte que naquela hora me apetecia" (LGC, p. 129). Entretanto, D. Leonor havia se desfeito do noivo(ado) mas não dos presentes que ganhara. Ambiciosa e ardilosa, ela, alegando que havia perdido a jóia, guardou-a para si.
Nesse intervalo de tempo em que se mantiveram separados, enquanto D. Leonor gozava da "fortuna" que lhe viera com o casamento com o Marquês, Sebastião, apesar de obcecado ainda pela beleza dela e pela humilhação de que fora vítima, veio a se casar e, só depois de muito tempo, tornou a se encontrar com D. Leonor, que, apesar das calúnias e maledicências de alguns, se tornara modelo de virtudes para alguns membros da Corte:
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Quando a tornei a ver, não existia para mim, como nunca mais existiu, outra mulher senão a minha adorada Esposa, mesmo assim, porém, surpreendeu-me a indiferença com a qual pude contemplar novamente a mulher que fora a causa das mais fortes emoções de minha vida. Tanto nos muda a existência que, a caminho do Paço Imperial, onde sabia que a encontraria, depois de mais de dez anos, as minhas preocupações eram inteiramente outras (LGC, p. 130-131).
Depois desse encontro em que velhas paixões deram lugar à indiferença, Sebastião e sua esposa passaram a fazer parte da corte de D. Leonor, que parecia não ter sido afetada pelos poderes fatídicos da Pérola rosada, pois, além do luxo em que vivia, conservava uma suntuosa plenitude que não era menos irradiante do que o seu fresco desabrochar. Pela conversa que o narrador diz ter tido com D. Leonor, ficamos sabendo que ela se mantivera imune aos poderes da jóia porque a guardara a fim de encontrar uma outra semelhante para poder usá-las como brinco. D. Leonor pede que Sebastião deixe-a com a jóia durante mais um ano, pois os eu joalheiro havia encontrado outra semelhante a ela, e, depois desse prazo, ambas as jóias passariam às mãos de Sebastião para que ele presenteasse a sua filha mais velha.
O irmão de D. Leonor tentou dissuadi-la daquele desejo, alegando "que não lançasse à sorte tamanho desafio, pois acreditava firmemente que lhe adviria desastre" (LGC, p. 132-133); mas ela "tão pouco susceptível a receios e superstições quanto, infelizmente, era à crença e à religião, riu-se e nada quis ouvir" (LGC, p. 133). Se conseguiu se manter imune à Pérola rosada, D. Leonor, assim que a usou, confirmando o que acontecia sempre com os que se apossavam da jóia, tornou-se mais uma vítima e só usou a Pérola duas vezes, pois veio a ser assassinada por um jovem que se dizia enamorado por ela:
Chamava-se ele Francisco Pereira de Rezende. Pertencia a uma boa família aparentada à do Marquês. Era mui jovem e todos sabiam que estava desde muito perdido de amor pela Marquesa, perseguindo-a em toda parte, do que ela várias vezes se queixara nos últimos anos. Boatos maliciosos tinham antes ligado seus nomes, mas já então, outros boatos corriam, em torno da admiração que demonstrava à Marquesa um dos mais altos personagens do Império. Assim foi logo atribuído a despeito o gesto tresloucado do belo capitão Rezende. Chegava Leonor ao Paço de São Cristóvão quando o assassino se aproximou do seu coche como para saúdá-la, apunhalando-a antes que qualquer pessoa lhe pudesse perceber o intento (LCG, p. 133).
Morta a Marquesa de São Pedro, Sebastião foi reclamar ao irmão dela, Philippe, o direito à Perola rosada, mas este, que herdara todos os defeitos da irmã, disse que fizera da jóia um alfinete e o presenteara a uma amigo: o Coronel Barros Silva. Sebastião tenta evitar que a Pérola faça mais uma vítima e procura reavê-la, mas o "estrago já havia sido feito": o Coronel já havia usado a jóia e, uma vez exposto à influência dela, veio a falecer, vítima de uma queda de cavalo. Sua esposa veio a se casar com Philippe, irmão da marquesa, que presenteara o amigo com o intento de ele ser mais uma vítima dos poderes fatídicos da jóia e, assim, desposar a viúva; "e esse enlace, que lhe trouxe grande fortuna, não surpreendeu a ninguém, pois havia muito que o digno coronel era o único a ignorar a traição da Mulher e do Amigo" (LGC, p. 135). Com a morte do Coronel, depois veio a falecer a filha de Sebastião, mas a sua morte, apesar de ter sido para ela que D. Leonor tinha deixado a jóia de presente, ele não atribui aos poderes da jóia, fecha-se o ciclo das vítimas da Pérola rosada, que, para não fazer mais vítimas, o narrador manteve guardada no escrínio.
Ao contrário dos textos trágicos clássicos nos quais ao herói é vaticinado um destino marcado pelo infortúnio, o herói deste conto só fica sabendo disso depois que foi vítima dos maus presságios que emanaram da Pérola rosada. Como as suas tentativas para evitar o poder maléfico da jóia se revelaram vãs, o narrador recorre a uma última alternativa para tentar remediar o irremediável: escondê-la no escrínio e escrever aquela carta que alerta aos possíveis interessados na Pérola Rosada os perigos que esta jóia contém:
Esta é a história da Pérola Rosada, que escrevo para meus filhos e seus descendentes com o mais escrupuloso respeito pela verdade, procurando relatar com exatidão as circunstâncias por mais pequenas. Minha mulher assina comigo, em testemunha de minha boa fé.
Assinado:
Sebastião Silveira de Góes
Adelaide de Góes (LGC, p. 135)
Escrever os infortúnios que marcaram a sua família e legá-los à posteridade em forma de relato é, como dissemos, a última tentativa do narrador/personagem para enfrentar o medo da morte e angústia de presenciar eventos que sabe ser irremediáveis. Entretanto, conforme afirma Goethe (apud ESTERZI, 2004, p. 109), "qualquer tragicidade é fundada por um conflito inconciliável. Se intervier ou se tornar possível uma conciliação, o trágico desaparece". Nesse sentido, podemos dizer que essa última atitude do narrador/personagem representa "o esforço humano, seja no intuito de exorcizar o espírito trágico, seja na tentativa de racionalizar suas aparições e efeitos. Contra Tanatos, o terrível deus, vale tudo: no controle da pulsão de morte, portanto, na resistência ao trágico, estaria a condição mesma da sobrevivência humana" (LUNA, 2005, p.20).
O conto "O viúvo" assemelha-se ao conto anterior por dois aspectos. Primeiro, assim como em "A pérola rosada", existe um narrador em primeira pessoa que conta os fatos depois que eles aconteceram e dos quais ele mesmo participou. Em ambos os casos, os acontecimentos nos são oferecidos depois de filtrados pelo olhar e consciência do narrador. É ele quem manipula a narração, oferecendo-nos fatos que já aconteceram. Neste caso, narrar o que já aconteceu acentua o sentido trágico daquilo que vai ser narrado, pois, segundo F.L. Lucas (apud LUNA, 2005, p. 242), "o pretérito é realmente o mais trágico dos tempos. Se foi feliz, não é mais; se foi desastroso, não pode ser desfeito". Noutras palavras, ambos os contos assemelham-se do ponto de vista da trama, ou seja, do ponto de vista da "aparição na obra [do conjunto de conhecimentos ligados entre si]" e "da seqüência das informações que se nos destinam" (TOMACHEVISKI, 1973, p.173). Se não, vejamos os parágrafos iniciais de "A pérola rosada" e de "O viúvo", respectivamente:
Eu, Sebastião Silveira de Góes, coronel do exercito Imperial de sua Majestade Dom Pedro I (a quem Deus Guarde!) declaro que esta é a verdadeira relação das desventuras que sucederam a meu Avô, primeiro possuidor da pérola rosada, a meus malfadados Pais e a outras pessoas que, em diferentes ocasiões, estiveram sob a influência dessa jóia fatídica (LGC, p. 121).

Este caso, de que fui testemunha há muitos anos, ocorreu a bordo de um transatlântico rumo à Europa. Eu era moço e sentia-me feliz por ir conhecer novas terras, viajando com meus primeiros proventos de arquiteto.
Esse estado de satisfação talvez me tenha sido um dois fatores que, por pena de seu manifesto isolamento, me lavaram a apadrinhar um passageiro idoso e triste cuja presença constrangia as rodas alegres (LGC, p. 111).
Sendo a trama, consoante lição de Tomacheviski (1973), uma criação puramente artística, podemos dizer que é a mesma a forma como tomamos conhecimento da fábula desses contos, isto é, "o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra" (TOMACHEVISKI, 1973, p.173). Embora apresentando fábulas diferentes, os contos assemelham-se na forma como os acontecimentos narrados são apresentados ao longo da trama, pois, em ambas as narrativas, os fatos narrados já aconteceram. Isso faz com que "as causas que engendraram a catástrofe não mais [possam] ser alteradas e essa terrível imutabilidade da ordem das coisas passadas contribui poderosamente para acentuar o sentido trágico da ação" (LUNA, 2005, p. 242).
Além dessa semelhança estrutural, outra há que une os referidos contos: a temática. Em ambas as narrativas, a morte está presente e traz consigo as marcas do trágico. Apesar de existirem fatos que são trágicos embora não resultem em morte, esta participa freqüentemente das representações do trágico. Essa presença marcante da morte como elemento desencadeador (ou resultante de) eventos trágicos deve-se ao fato de que, "dentre os fenômenos da vida, a morte é aquele que mais efetivamente alia os dois traços essenciais à tragicidade: sofrimento e resistência à razão" (LUNA, 2005, p. 19). Sendo assim, a morte, apesar de apresentar, em cada uma das narrativas, nuances diferentes, é o elemento que as une. Se na primeira, a morte é decorrente da sucessão de infortúnios que acometem todos os membros da família Silveira de Góes e todos os que se apossam da jóia fatídica; na segunda, ela é responsável pela deflagração do estado lutuoso da personagem que dá título ao conto.
Este personagem era "um velho chileno estancieiro, viúvo, que ia pela primeira vez à Europa a fim de visitar, na Itália, uma filha casada com diplomata" (LGC, p. 111). Ele usava luto fechado, pois perdera a esposa e sem ela a sua existência era um fardo pesado. E, como lembra Caruso (1989), a separação daqueles a quem se ama é uma das mais dolosas experiências na vida humana – se não for, talvez, a mais dolorosa. Nenhum ser humano é estranho a esse fato e, diante dele, pode expressar, como reação, sentimentos de rebeldia e resignação, o que varia conforme a história de vida de cada indivíduo e o seu condicionamento específico.
No caso do personagem do conto em pauta, ele prefere, em decorrência da separação conseqüente à morte física de sua amada esposa, manter luto fechado. Aliás, como lembra Freud (1990), sendo uma reação à perda de um ente querido ou de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal, o luto possui alguns traços distintivos, tais como: desânimo profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade. Ou seja, o luto profundo, a reação à perda da pessoa amada, acarreta:
O mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda do interesse pelo mundo externo – na medida em que este não evoca esse alguém –, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele (FREUD, 1990, p. 276).
Sem querer fazer uma análise psicanalítica do conto em pauta, aliás, os formalistas russos repudiavam toda e qualquer análise que se baseasse em dados exteriores ao literário, podemos dizer que alguns desses traços distintos do luto são apresentados pela personagem em pauta, uma vez que ele, devido à perda da esposa, enredava-se, cada vez mais, na "concha da tristeza" e, por isso, era avesso às pessoas, a qualquer companhia que fosse. Perder a pessoa amada gera uma frustração especialmente dolorosa. A separação amorosa ocasiona uma dor que talvez possa ser vista como uma das mais difíceis de ser suportada. De acordo com Caruso (1989, p.13), não é por acaso que, em todos os mitos religiosos, "o estado idealizado de dor absoluta após a morte física do pecador [seja] equiparado à separação absoluta do objeto amoroso". Ainda segundo este autor:
O reino das sombras –o inferno –apresenta-se como o lugar da dissociação, da ausência e da separação eterna; só os deuses e semi-deuses podem superar as leis da existência e descer a esse reino, para libertar os amantes esperançosos. Na representação cristã da condenação eterna, a própria essência dessa condenação encontra-se na dor provocada pela separação dos amantes (isto é, na separação do amor absoluto personificado no Cristo) e no desespero daí decorrente (CARUSO, 1989, p.13).
Como um ser em profundo estado lutuoso, o chileno vê o mundo como algo que se tornou pobre e vazio, pois, conforme afirma Luna (2005, p.20), além da morte, "a ausência do trágico se prolonga na dor e no sofrimento provocados pela ausência do ser, pela perda da existência. É o que podemos chamar de ‘efeito trágico’, a lutuosidade que se instala como processo de transposição para o além":
Não se consolava da perda da esposa. Lastimava-se sempre nas nossas conversas dos anos, provavelmente muitos, que ainda lhe restavam de vida. "Tenho uma saúde de ferro", queixava-se. A seu gosto, dizia-me, não teria saído da fazenda distante, onde passara a vida e que percebi ser muito próspera e de grande desenvolvimento. Os filhos, porém, obrigavam-no a mudar um pouco de ambiente, com a esperança – ilusória, dizia-me ele – de que a viagem poderia distrair-lhe os pensamentos (LGC, p. 111-112).
Como veremos, a viagem será mesmo importante não só para distrair-lhe os pensamentos mas sobretudo para que ele rasgue o luto. Entretanto, por ora, resta-nos frisar que, conforme trecho acima, o chileno, diante da perda do objeto amoroso, vivia, por assim dizer, em plena adoração desse objeto. Ele trazia consigo, como prova dessa devoção à esposa, um retrato dela que foi tirado em Paris quando ela precisou viajar para levar a mãe, gravemente doente, para ser tratada e que, além de registrar a beleza da morta, punha em evidência "aquele sorriso, que não chegava a sorrir, [que] guardava um extraordinário poder de comunicabilidade e era uma autêntica mensagem, ou confissão, de amor feliz. Pensei: ‘ Esta mulher ama e é amada [...]’" (LGC, p. 113).
Pelo que nos conta o narrador, o luto apresentado pelo chileno parecia ser eterno, pois se tornara "um homem de poucas palavras, avesso ao convívio social e à troca de amenidades" (LGC, p.112). Entretanto, como afirma Freud (1990), o luto, apesar de envolver graves afastamentos, é superado após certo lapso de tempo, o que acontecerá para esta personagem após uma conversa banal.
Numa das noites da viagem, como que por acaso, o chileno, que era avesso ao contato com os demais, resolvera participar de uma conversa entre o narrador e um casal de argentinos que estava em lua de mel:
Revolta-me a terrível coincidência desse encontro que era tão fácil não ter ocorrido, da tragédia que o destino jogou tão desnecessariamente em seu caminho. Por que escolhera esta noite para se juntar ao meu grupo, ele que costumava tratar os passageiros como se fossem inimigos? Teria havido uma atração inconsciente, uma obra verdadeiramente infernal para o que era predestinado a saber, a destruição de todo o seu passado e de quanto lhe restava de felicidade que parecera indiscutivelmente sua? (LGC, p.118).
Fazia parte também da conversa uma terceira personagem: um famoso escritor espanhol, o qual será importantíssimo na configuração do elemento trágico nesta narrativa, pois é o responsável por deflagrar o inevitável, o que estava predestinada e, assim, fazer com que o chileno rasgasse o luto pela esposa.
Nesta conversa aparentemente banal, para a qual o chileno, segundo o narrador, parece ter sido chamado, pois "devia estar se sentido inda mais triste que de costume, triste a ponto de não poder mais suportar o peso da solidão" (LGC, p.114), o espanhol, ao saber que fazia parte da roda de amigos um chileno, disse que um de seus maiores amores foi uma chilena.
Ao saber disso, Mercedes, a argentina que, juntamente com o marido, participava da conversa, pensando que ouviria mais um daqueles picantes casos amorosos, pede ao escritor espanhol que o relate. Para o narrador, essa história seria apenas mais uma insossa água com açúcar, mas, mesmo assim, ele não sabia explicar por que sentia "uma inexplicável aflição, como o de ver uma pessoa tomar um caminho errado que poderia conduzir a desastre" (LGC, p.115).
Como poderemos ver, o relato do espanhol tratará um elemento surpresa que caracterizará uma situação inesperada, ou melhor, a revelação de uma verdade inesperada. Entretanto, antes de sabermos que verdade é essa, voltemos ao relato do espanhol. Este, continuando a sua história, conta que conhecera a tal chilena num hotel e, durante vinte dias, eles viveram uma paixão intensa e, ao final desse período, se separaram e nunca mais se encontraram: "quando partiu para seu país, proibiu que eu a seguisse ou mesmo lhe escrevesse" (LGC, p.116).
Novamente, o narrador pressente a revelação do irremediável: "atravessou-me o cérebro uma idéia que me teria horrorizado se eu não a tivesse logo afastado por impossível" (LGC, p.116). Essa idéia, que o narrador não chega a formular, mas que o leitor, talvez, já seja capaz de inferir qual seria, é esta: a mulher por quem o escritor espanhol diz ter sido apaixonado é a mesma por quem o chileno mantém luto. Isso é revelado quando o espanhol confirma ter sido a sua amada uma mulher casada que viera a Paris acompanhar a mãe que estava doente de câncer.
A vivência como dona de casa num mundinho restrito à fazenda do marido fez com que essa mulher se deslumbrasse com Paris. Estar ali era um verdadeiro milagre: "Sua alegria em descobrir Paris, em gozar dos passeios, das lojas, da arte, fazia tudo mais belo, mais novo" (LGC, p. 115). A saída do ambiente privado e o contato com um lugar mais público fazem com que a esposa do viúvo não só desfrute dos prazeres materias advindos das compras em lojas parisienses, mas também se permita viver, sentir outros prazeres amorosos, ainda que no curto espaço em que estivera em Paris. Dessa época de felicidade, o escritor espanhol diz ter guardado apenas um uma fotografia daqueles dias:
É um desses retratos de que é costume dizer que falam, e o que ela diz nele do modo mais claro possível é a sua felicidade no nosso amor. Ela disse-me que o tirou pensando em mim e a mensagem que me quis deixar esta realmente ali, radiosa e eloqüente (LGC, p. 117-118).
Nesse momento, o que para o narrador se revelara apenas como uma leve intuição, uma suspeita efêmera se revela como verdade: "Olhei depressa para o meu amigo. Ele podia ter desconfiado antes por qualquer detalhe, mas vi que só agora, com essa referência à operação da mãe, veio-lhe, como a mim, a certeza" (LGC, p. 116). A esse reconhecimento de alguma verdade antes desconhecida os gregos chamavam anagnorisis, a qual é definida por Aristóteles (apud LUNA, 2005, p. 259) nos seguintes termos: "o ‘reconhecimento’, como indica o significado da própria palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão designadas para a dita ou a desdita".
Segundo Luna (2005), Aristóteles chama atenção para diversos tipos de reconhecimento, como, por exemplo, os que podem ocorrer através dos sinais do corpo ou do despertar da memória. Este último é o que se manifesta no conto em análise, pois foi relembrando que ouvira do chileno que a esposa deste estivera em Paris para tratar da mãe enferma que o narrador descobriu ser verdade aquilo que ele apenas intuíra. Já para o chileno, a história do espanhol lhe revela uma verdade antes desconhecida: a traição da esposa a quem ele, depois da morte dela, se mantivera fiel vestindo o luto. Essa espécie de reconhecimento, apesar dos vários tipos existentes, é a que se mostra como melhor, pois, urdido da própria trama, introduz um elemento surpresa que caracteriza uma situação inesperada e faz com que a surpresa resulte de modo natural.
Diante dessa verdade que lhe era desconhecida, o chileno, cujo erro trágico foi ter ido participar daquela conversa banal, teve como ímpeto inicial atirar-se contra o espanhol, mas se conteve e recolheu-se ao seu camarote Nesta mesma noite de revelação, ele atirou ao mar o retrato de sua esposa cujo sorriso de amor e felicidade captado naquele retrato guardado na carteira dele não era para ele e, sim, para o outro, o amante dela, como única recordação daquela paixão fugaz. Jogando ao mar o retrato da esposa, a quem ele se manteve fiel e que lhe fora infiel, o chileno estava relegando-a ao esquecimento e, ao mesmo tempo, libertando-se daquele luto, ainda que, para isso, não tenha escapado de uma experiência trágica, pois o trágico é "uma descrição de certos tipos de experiência ou de traços básicos da existência humana, ou seja, está ligado à essência da condição humana, em sua estrutura imutável ou como se manifesta em circunstâncias, catastróficas" (MOST, 2001, p. 24).
Nesse sentido, a existência do viúvo, de agora por diante, poderá ser mais trágica, pois, se antes do momento de revelação, ele sofria porque havia se separado fisicamente da esposa, agora, uma vez sabendo que ela lhe fora infiel, ele terá de separar-se definitivamente dela. Ou seja, ele terá de provocar a morte dela dentro dele mesmo, o que ele já fizera ao atirar para o mar o retrato dela. Essa separação afetiva fará com que a esposa, antes devotada, se torne um cadáver que nem sequer o fará mais sofrer, o viúvo, uma vez superado o luto, terá de viver uma outra fase, talvez mais dolorosa: a do esquecimento.
REFERÊNCIAS

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CARUSO, Igor. A separação dos amantes – uma fenomenologia da morte. 5.ed. Trad. José Silvério trevisan. São Paulo: Diadorim; Cortez, 1989.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: — Obras completas. Ed. Standard Brasileira. vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
LESKY, Albin. A tragédia grega. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.
LUNA, Sandra. A arqueologia da ação trágica – o legado grego. João Pessoa: Idéia, 2005.
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NABUCO, Carolina. O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias. Rio de Janeiro: Record, 1969.
NABUCO, Carolina. Oito décadas – memórias. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital. Dicionário de mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
SÓFOCLES. Édipo rei – Antígona. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2006.
STERZI, Eduardo. Formas residuais do trágico – alguns apontamentos. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e VECCHI, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno – uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora, 2004.
SZONZI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da literatura – os formalistas russos. Trad. Ana M. R. Filipousski, Maria A. Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio C. Honlfeldt. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976.
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