quarta-feira, 26 de abril de 2017

O MENINO, O ADULTO E A BICICLETA: SOBRE UMA TELA DE VALCI OLIVEIRA


Quando digo que não sei andar de bicicleta, as pessoas se espantam. Algumas, inclusive, chegam a perguntar se eu não tive infância. Não sei bem o que essas pessoas entendem por infância. Só sei que ela não é a mesma para todas as crianças, assim como nunca foi a mesma em todas as épocas. Mas, por muito tempo, ante aquela pergunta, eu respondia dizendo que não tive infância porque precisei trabalhar.
Desde os seis anos de idade, vendi jornal na rodoviária nova em Campina Grande. Logo, as brincadeiras de infância foram trocadas pela necessidade de trazer dinheiro para casa. Era um tempo em que comprávamos meio quilo de feijão, de açúcar. Em que se vendia mercado de óleo. Nessa época, o meu brincar era conseguir a garantia de poder prosseguir no jogo da vida. Por isso, eu saia do Bairro das Cidades para o Terminal Rodoviário Argemiro de Figueiredo muito cedo, quase de madrugada, em uma época em que Campina Grande tinha  empresas de transportes como a Dantas, espaços como o velho “Pela Poico” e os ônibus tinham roletas por baixo da qual se passava para não pagar a passagem. Enquanto alguns colegas brincavam, andavam de bicicleta, eu acordava de madrugada para não perder o embarque das cinco, já que esse era um horário em que mais se podia vender jornal aos passageiros que, na pressa para honrar os compromissos, passavam voando indiferentes ao que estava ao seu redor.
Lembro-me de que, uma vez, até tentei aprender a andar de bicicleta. Era uma caloi cujo quadro, pintado de preto, tinha alguns detalhes na cor verde limão e laranja. Nesse dia, talvez um domingo à tarde, ou um feriado, meu irmão, o dono da bicicleta, ia me ensinar a pedalar, mas tinha de ser na frente de casa porque mãe poderia brigar. Montei na bicicleta, ajeitei-me na cela e desci pela rua da bueira na Vila Cabral de Santa Teresinha, onde morei por mais de dez anos.
Lembro-me ainda da alegria de conseguir pedalar por alguns segundos antes de cair. Nada grave. Mas, se me levantei da queda, o sonho de andar de bicicleta ficou no chão. Meu irmão me disse ante meu fracasso: “Sai daí, tu és burro demais. Não aprende. Devolve”. Disse-lhe umas palavras de revolta, devolvi a bicicleta com raiva e voltei para casa. Desse tempo para cá, nunca mais tentei aprender a pedalar. Andar de bicicleta ficou naqueles sonhos de infância. Se a infância ficou perdida, aquele sonho se perdeu também até que, ao ver a tela abaixo, pude me lembrar um pouco do menino que fui e dos sonhos que ele sonhou. Alguns concretizados; outros olvidados:




A tela acima foi pintada pela artista Valci Oliveira, faz parte de um projeto dela de registrar brincadeiras de infância e integrou um conjunto de telas em uma exposição de arte contemporânea organizada pela Secretaria de Cultura de Campina Grande – SECULT – na década de 1980, creio.
O colorido intenso aponta para um traço da produção da artista que, além de pintora, é também ceramista, inclusive premiada pelo TOP 100 Sebrae de Artesanato. As casas ao fundo da tela lembram o estilo art déco que é a marca de boa parte dos prédios que compõem o centro comercial de Campina Grande.   Além disso, a presença de formas circulares é outro traço da artista. Aliás, na pintura de Valci Oliveira já se prefiguram traços que ela vai transpor para suas peças em cerâmica, o que se configurará como uma singularidade de seu estilo. Além do brilho das cores fortes, a tela tem movimento. A impressão que nos passa, como espectador, é de estarmos diante de uma criança em uma bicicleta em movimento. A rua em azul, da perspectiva em que foi pintada, passa-me a ideia de que a criança, solitária em seu brincar, parece ser o dono da rua, ou melhor, o dono da terra, porque a rua lembra, de certa forma, o próprio planeta terra. A tela capta, a partir de certo encantamento e poeticidade, um momento lúdico da infância, momento esse que para algumas crianças fez falta e que, em alguns adultos, se faz sentir como ausência.  
Um menino em uma bicicleta. De imediato, o leitor deste texto pode perceber a ligação entre o que eu vinha dizendo no início e a tela de Valci Oliveira. Aquele menino em cima da bicicleta, desde que vi a tela pela primeira vez, era uma espécie de projeção de mim mesmo. Ele era o que sonhei ser, mas não pude. No menino da tela, eu me vi pedalando. Na tela de Valci, mais uma vez, vejo confirmada a assertiva de que “a arte é uma confissão de que a vida não basta”. Que bom que existe arte para alimentar as nossas faltas, para nos preencher as nossas necessidades de fantasia e de desejo! Com essa tela, trago para dentro de minha casa, um pouco daquele menino para quem o futuro era incerto e o presente era uma luta pela sobrevivência diária. Enfim, O menino e a bicicleta, de Valci Oliveira, é uma tela que me comove pela sensibilidade com que flagrou um matiz de uma infância. Para mim, perdida; para outros, a tela venha, talvez, mostrar que o menino de antes (re)vive no adulto de hoje.  


domingo, 23 de abril de 2017

Franciscas-Aves: Notas Ligeiras sobre Valci Oliveira


Conheci o trabalho de Valci Oliveira no Salão de Artesanato da Paraíba, em 2015, na cidade de Campina Grande. Como sempre faço toda vez em que visito uma edição do salão, percorri, primeiro, cada estande para ver o que de novidade havia. Depois, em uma segunda passada de vista, mais detida, deparei-me com atenção em uma peça que me cativou: era este São João de cerâmica.
 Não sabia por que, mas a obra me fisgara. Para minha tristeza, ela já estava vendida. Informou-me o senhor que cuidava do estande e que, ante meu interesse, me passou o contato da artista para que eu pudesse ver se ela não tinha nenhuma outra peça. Liguei para o número e outra surpresa: não era a artesã que estava do outro lado da linha. Era um amigo com quem ela desenvolve ações educativas a partir de oficinas de reciclagem. Expliquei-lhe que estava no salão de artesanato e que queria falar com ela sobre a peça que me chamara a atenção salão. Hermógenes, esse era o nome do amigo, que também é artesão, me passou o contato de Valci, para quem  liguei e expliquei o que já falara a Hermógenes: que me encantara pelo São João, mas que, como a peça estava vendida, queria saber se não havia outra que eu pudesse levar.
Lembro-me de que lhe disse que morava longe (estratégia para ver se me repassava a peça que já estava vendida!), mas não contava que fosse me perguntar onde. Como perguntou, pensei em até lhe dizer que morava em Belo Horizonte, mas, como me incomoda mentir, disse-lhe que morava em Monteiro. Então, ela me falou que poderia me fazer uma peça semelhante à que eu tinha visto, mas isso demoraria mais um pouco porque estava muito ocupada com as demandas do salão. Eu disse que entendia e que aguardaria que entrasse em contato comigo para dizer quando a peça estaria pronta.
Voltei meio resignado para casa porque queria aquela peça. Semanas depois, recebi uma ligação. Era Valci, dizendo que estava com a peça pronta. Finalmente, eu teria o meu São João! Por telefone, enquanto combinávamos o local para entrega, perguntei por outra peça que estava exposta no salão. Valci me respondeu que ainda a possuía. Pedi-lhe que também a separasse para mim. Na hora de pegar as peças, deparei-me com outra e acabei adquirindo três peças de uma só vez. 
Desde então, venho aumentando meu acervo de peças assinadas pela artista ao mesmo tempo em que tenho acompanhado a produção dela e visto o reconhecimento que está passando a ter em nosso estado, onde, à semelhança de outros, é pouco o incentivo para o artista viver de seu próprio ofício. Mas isso é outra história. Mesmo assim, as lentes, em especial da TV,  voltaram-se para Valci desde que ela foi uma das premiadas com o TOP 100 SEBRAE de Artesanato. Das três peças que receberam o prêmio TOP100, duas fazem parte do meu acervo, digo isso com muito orgulho! 
Conversando com Valci e pedindo que me fizesse uma ou outra peça a partir de temas específicos, de lá até cá, passamos a cultivar uma amizade e desde então me veio a vontade de escrever algo sobre as esculturas dela pelas quais sou encantado.  Mas o desejo de escrever, por si só, não basta. Eu desejava escrever sobre o apego que passei a nutrir pela arte dela, mas não sabia como até que me deparei, lendo um livro de Mario Vargas Llosa, com a seguinte citação de Louis Bouilhet:

“Ao enunciar um juízo, talvez pudéssemos simplificar a crítica se declarássemos nossos gostos; porque toda obra de arte encerra uma coisa particular à pessoa do artista e que faz, a despeito de sua execução, com que nos sintamos seduzidos ou irritados. Também nossa admiração não se completa senão por obras que satisfaçam ao mesmo tempo nossos temperamento e nosso espírito. Esquecer essa distinção preliminar é causa de uma grande injustiça”.

As palavras acima dizem muito do que vejo nas obras de Valci Oliveira: uma satisfação que me alimenta certo apego. São obras que falam ao meu espírito e creio que ao espírito de muitos que possam vir a apreciá-las. Falam não apenas por que suas peças, em grande maioria, são representações de mulheres, tema de interesse particular em minha vida de professor de Literatura. Ouso a arriscar que, guardadas as devidas diferenças entre as peças, elas são manifestações de um mesmo arquétipo: um feminino que se liga à terra, à vida em harmonia com os animais e que remete, a meu ver, ao lado positivo do arquétipo da Grande Mãe, uma das várias formas de representação do Feminino em sociedades primitivas e civilizações milenares muitas das quais anteriores ao advento do Patriarcado. Não é à toa que as peças produzidas por Valci tem na argila o seu material principal, o qual é um dos mais antigos elementos associados ao feminino, como nos lembra a professora Maria Nazareth Alvim de Barros:

“O primeiro elemento cultuado pelo homem foi a terra; e a terra foi gerada por ela mesma. Era ela que produzia frutos, os animais, o próprio homem. A vida surgia de sua carne rasgada – grutas e fendas; de suas manifestações de força – rochas, montanhas, florestas, árvores, desertos; de suas profundezas líquidas – mares, rios, poços, nascentes; trazida por animais aquáticos e introduzida no ventre feminino após o contato da mulher com esses elementos ou animais. [...]. Como Tellus Mater, Terra Mãe, [a terra] foi considerada a divindade da fertilidade. [...] A evolução vai transformar a Terra Mãe na Deus Mãe e todo simbolismo com o qual a terra foi investida não desaparece, ao contrário, incorpora-se à Deusa” (BARROS, 2004, p. 17).

 Além do elemento de que são feitas ser ligado ao feminino, já que, não custa reiterar, “o culto à Grande Deusa, muito anterior à palavra escrita, manifesta-se em arcaicas esculturas de argila” (LEVY E MACHADO, 1995, p. 15), todas as peças de Valci recebem um mesmo nome. São todas chamadas pela artista de Franciscas, nome esse que faz alusão ao padroeiro dos animais, São Francisco de Assis, de quem a artista é devota, e estão sempre acompanhadas de um animal: ora é um gato, ora é um cachorro, mas na maioria das vezes esses animais são pássaros. Na figura abaixo, a Francisca não só está carregando consigo um gatinho, mas tem em sua camisa desenhados pequenos pássaros:



 Aqui, é pertinente lembrar que, em sociedade primitivas, “eram frequentes também representações da Grande Deusa como Senhora dos Animais (com seus animais sagrados), como Deusa-Mãe coruja, ou como Madona com seu filho ao colo” (LEVY E MACHADO, 1995, p. 15). Nessa outra imagem, além de animais, aparece uma Francisca com uma criança:


 Não estou querendo dizer que o que estou “intuindo” da obra de Valci Oliveira seja uma ação deliberada da própria artista, mas estou buscando compreender um aspecto que é recorrente em sua obra: a presença de figuras femininas acompanhadas de animais. Nem sei se a artista conhece algo sobre arquétipo. Se não conhece, melhor ainda porque a sua produção aponta para a vitalidade do próprio arquétipo, já que esse, ao se mostrar por imagens, revela, por sua vez, “um mundo que é regido de signos, símbolos, metáforas e imagens, repleto de significados” (DOWNING, 1998, p. 11), os quais estão submersos no inconsciente coletivo.
Para mim, as esculturas de Valci Oliveira são, pois, produtos de “uma força além do seu controle” porque advinda do inconsciente coletivo, o que as faz poderem ser vistas como um motivo arquetípico. No caso, o da Grande Mãe. Para encerrar, por ora, esse ponto, gostaria de lembrar que, em uma de nossas conversas, Valci deu-me uma chave para interpretação de suas peças. Disse-me que todas as suas Franciscas eram animais antropomorfizados. A peça abaixo é uma das que, para mim, representa melhor essa antropomorfização:


                A Francisca acima traz consigo uma lagartixa. O rosto da boneca lembra a cara do animal, em especial os olhos, assim como as costas da Francisca possuem certo afundamento que lembra parte do corpo do réptil. Entretanto,  a maioria de suas Franciscas parece-se com aves. Os rostos circulares, os narizes pontiagudos, as mãos sem os detalhes bem definidos dos dedos, as quais se assemelham mais a asas, as bocas pequenas podem ser tomadas como  bicos de pássaros ou, segundo a própria Valci,  bocas de peixes, como, acredito, podemos perceber na peça abaixo. O rosto desta Francisca rendeira, seu olhar, boca e nariz lembram o de uma ave:







Há nas peças essa harmonia entre o racional e o irracional, entre o humano e o animal, como se a artista procurasse recuperar uma integração há muito perdida, como se fosse possível reestabelecer “uma conscientização do homem em relação a seus pares e à Mãe-Terra”. É, pois, um gesto sutil, quase político, de luta e de respeito aos animais que conosco partilham a Casa Mundo e com os quais, certamente, já mantivemos elos de parentesco ancestral, como advoga a sabedoria xamanística e como representa bem a Francisca dormindo abaixo:

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      Se o que disse até agora pode parecer fantasioso, produto de uma mente criativa, creio que é possível concordar com o que se segue adiante. Começo dizendo que quem vê as peças de Valci é, de imediato, fisgado pelas formas: cabeças retorcidas com inclinação de 90° (noventa graus), braços circulares que parecem mais grandes linhas espessas. Esses são, de primeira, traços que marcam o estilo de Valci Oliveira. Um estilo que é próprio e que apresenta uma “ingenuidade”, advinda da arte popular, possui um traço próprio, o volume, e não deixa de lado certos traços acadêmicos que remetem à escola cubista, em especial a nomes como Picasso e Portinari.
Nas formas e cores das peças de Valci Oliveira, há certa aura, uma energia que traz paz e tranquilidade que apazígua o espírito de quem a contempla, o que lembra certa marca dos artistas naïfs.  Isso, a meu ver, se manifesta a partir de outro traço muito particular nas peças da artista: o olhar de suas Franciscas. Olhares de dentro. Bastante expressivo, não diria que esse olhar é de tristeza simplesmente, mas, sim, que é um olhar que se fixa para algo que não sabemos bem o que pode ser, é um olhar que, talvez, procure não enxergar o exterior, mas, sim, o interior. Olhar distante que, aparentemente, parece ser triste, mas é, sobretudo, pensativo. É um olhar que olha para dentro, que procura levar o seu espectador para o mundo dos sentidos. Talvez seja esse um dos traços mais singulares das peças de Valci e que o espectador ligeiro por deixar passar despercebido. Mas, uma vez fisgado, o espectador não pode escapar desse olhar inquietante. Das peças que a artista produziu até agora, no que toca à expressividade do olhar e desse incômodo que ele pode causar porque nos prescruta em nossas mais recônditas reentrâncias, acredito ser a Francisca abaixo a mais emblemática, talvez, por isso mesmo, uma das vencedoras do TOP 100 SEBRAE de Artesanato:



Nesse sentido, se a arte é algo que se vê,  que se dá simplesmente a ver, e, por isso mesmo, impõe a sua específica presença, o olhar das peças de Valci Oliveira é algo que se impõe como traço peculiar, sua sutil assinatura de artista. É um olhar olhante. A suas peças, podemos aplicar as seguintes palavras de Georges Didi-Huberman: “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”. E as Franciscas de Valci não só nos olham, mas nos falam ao espírito, nos tocam. Seus olhares são frases do (ou para o) espírito de quem as vê, de quem nelas se mira e se queda absorto na contemplação de seus olhares. Enfim, é um olhar a que não se consegue ficar indiferente.             

domingo, 26 de março de 2017

QUANDO O AMOR É LEVADO A NÃO DAR CERTO:
DESEJO E INTERDIÇÃO NA LITERATURA
Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Estadual da Paraíba – Campus VI


I. INTRODUÇÃO


Concebida como uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas, a literatura comparada não apresenta, a priori, nenhum problema. Entretanto, a prática do comparativismo literário revela uma miríade de perspectivas de investigação, com uma diversidade de metodologias e de objetos de análise, dando à literatura comparada um campo de atuação muito vasto. Dentro desse cenário, como aponta Carvalhal (2000), encontramos trabalhos que visam examinar a migração de temas, motivos e mitos nas diversas literaturas, outros que buscam estabelecer as influências de fontes e sinais, além dos que se voltam para a comparação entre obras pertencentes a um mesmo sistema literário ou para os processos de estruturação das obras.
Apesar das dificuldades em precisar o que vem a ser literatura comparada, parece que existe um consenso: o de que a literatura comparada não pode ser tomada apenas como sinônimo de comparação. Esta está para a literatura comparada como um procedimento metodológico que permite ao comparatista, no confronto entre duas ou mais obras, não só estabelecer as semelhanças, mas, sobretudo, evidenciar as diferenças. Por isso, a comparação, nos estudos de literatura comparada, deve ser vista como um meio e não como um fim. Como procedimento metodológico, a literatura comparada permite-nos enveredar por várias trilhas do pensamento humano.
Nesse caminho, as fronteiras existentes, antes de impedirem o exercício do comparativismo, servem como estímulo ao conhecimento do Outro, são um convite a navegar por territórios estranhos, a descobrir que aquele que vemos como estrangeiro pode ser nós mesmos. Enfim, como afirma Allegro (s/d), pela literatura comparada somos levados a “descobrir que o ‘’Outro’’ pode ser o ‘’Mesmo’’ ou que o ‘’Outro’’ pode ser ‘’Eumesmo’’, ou simplesmente o “Outro’’; é valer-se da oportunidade de olhar longe para ver de perto como o Outro fala, do que o Outro fala, o que o Outro pensa, onde o Outro vive, como vive;”.
Ainda segundo Allegro (s/d), várias são, portanto, as trilhas de que o comparatista pode, usando a literatura comparada como método, servir-se para obter o entendimento do Outro. Ele pode, então, recorrer à tradução literária, à estética da recepção, à intertextualidade, aos polissistemas literários, dentre outras. Para o presente trabalho, a fim de pensarmos em alguns aspectos concernentes ao exercício da literatura comparada, ater-nos-emos às relações intertextuais que marcam o diálogo entre os seguintes contos: “O segredo de Brokeback Mountain”, escrito em 1997 pela norte-americana Annie Proulx, em que se baseou o cineasta Ang Lee para produzir, em 2005, o filme homônimo, que chegou a ganhar três oscars, e “Do outro lado do lago da aldeia também é proibido”, retirado do livro Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão (2007), reunião de contos homoeróticos escritos pelo paraibano Antonio de Pádua Dias da Silva.


II. Do espaço do desejo homoerótico: o silêncio urdido nas relações intertextuais
 

O termo intertextualidade, cunhado por Júlia Kristeva, a partir de estudos da obra de Bakthin, diz respeito à capacidade que um texto tem de remeter a outro texto, de forma que, no dizer de Kristeva, um texto se constitui em um verdadeiro mosaico. As obras, aqui escolhidas como corpus, mantêm entre si relações intertextuais que podem ser perceptíveis a partir da temática. Em ambas, temos representadas, com suas alegrias e tristezas, as relações amorosas entre sujeitos que amam outros do mesmo sexo, ou melhor, sujeitos que são marcados pela impossibilidade de amar, porque o outro do seu afeto pertence ao mesmo sexo. Aqui, cumpre esclarecermos que não nos interessa discutir o que entendemos por “mesmo sexo”. Para isso, remetemos o leitor a Costa (2000). A intenção do presente artigo é, dentro de uma intenção comparatista, analisar tais obras a partir da representação das relações homoafetivas. Acreditamos que, ao colocarem no cerne da narrativa essas relações, tais obras visam contribuir para uma “visão mais sutil das relações afetivas entre homens”, de forma que elas, rotuladas de esquivas, sejam vistas a partir de uma perspectiva destituída de preconceitos, de mal-estar de que foram acometidas, e ainda são, as relações entre iguais.
No estudo das obras em pauta, o espaço diegético desempenha um papel importante, sobretudo, porque esse marcador textual funcionará não apenas como lugar físico por onde desfilam as personagens da diegese narrativa, mas, simbolicamente, como metáfora para a interdição contra a expressão do desejo de sujeitos pertencentes ao mesmo sexo. Nas obras em apreço, o espaço emerge como um elemento estrutural que, para além dos lugares sociais representados e das configurações dos cenários íntimos das personagens, problematiza as relações de gênero e de sexualidades, sendo, portanto, o locus de enunciação de sujeitos cujos desejos só podem se expressos em espaços restritos onde aquele amor, gestado em silêncio e, talvez, para o silêncio, pode ser vivido longe dos interditos sociais. Aliás, o silêncio parece ser o signo que “abençoa” essas relações que fogem à heterossexualidade normativa e que, desde o início, como apontaremos depois, parecem ser marcadas pelo trágico.
Em O segredo de Brokeback Moutain, o sintagma silêncio, embora não apareça explicitamente, já está implícito na palavra segredo, uma vez que, dentre as acepções em torno dessa palavra, está aquela segundo a qual o vocábulo segredo significa “o que não deve ser revelado”. Por extensão, podemos dizer que se pede segredo para aqueles fatos ou ações que devem ser mantidos em silêncio. No conto de Annie Proulx, ao leitor é revelado aquilo que, dentro da diegese narrativa do conto, é preciso segredar: a relação entre dois jovens cowboys: Ennis del Mar e Jack Twist, “ambos garotos do interior sem o ensino médio completo e sem perspectivas, preparados para dar duro e passar necessidades, ambos de modos e fala rudes, acostumados à vida estóica” (PROULX, 2006, p. 07). Esses sujeitos, protagonistas da história, marcados pelas agruras da vida e por carências afetivas, encontraram-se na primavera de 1963, quando ambos foram trabalhar um como “ovelheiro e [o outro como] coordenador de pasto para a mesma operação de ovelhas a norte de Signal. O pasto de verão ficava acima da alameda em terras do Serviço Florestal na montanha Brokeback” (PROULX, 2006, p. 08). Ennis del Mar e Jack Twist, a princípio, são representações dos típicos cowboys americanos. Vejamos como o narrador no-los apresenta:

À primeira vista, Jack parecia bastante bonito com aquele cabelo cacheado e aquele riso fácil, mas, para um homem baixo, era meio cadeirudo e seu sorriso revelava que era dentuço, não a ponto de poder comer pipoca no gargalo de uma garrafa, mas ainda assim chamava atenção. Era apaixonado pela vida de rodeio e apertava o cinto com uma fivela pequena com um boiadeiro em cima de um touro, mas suas botas eram surradas demais, tão furadas que não tinham mais consertos, e ele estava louco para se ver em qualquer lugar que não fosse Lightning Flat.
Ennis, de nariz aquilo e cara estreita, era desgrenhado e tinha o peito meio encovado, equilibrava um tronco pequeno em pernas compridas e finas, possuía um corpo musculoso e ágil feito para andar a cavalo e brigar. Seus reflexos eram extraordinariamente rápidos e ele era perspicaz o suficiente para não gostar de ler senão o catálogo de selas Hamley’s (PROULX, 2006, p. 10-11).

Pela descrição feita dos personagens, não somos levados a pensar que esses sujeitos “machos” possam sentir afeto, atração por outro do mesmo sexo. Entretanto, devemos ter cuidado com o fato de incorrermos em erros devido a determinadas cristalizações instaladas “inconscientemente” em nosso imaginário, como se apenas sujeitos que não se enquadram no ideal de masculinidade pudessem ser susceptíveis de desejarem outros iguais, de relacionarem-se afetivo-sexualmente e de diversas formas com outros do mesmo sexo biológico. A acreditar-se nisso, é como se defendêssemos a existência de um conjunto de traços que condicionariam a expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que a possua (COSTA, 2000).
Os contos, aqui analisados, vêm mostrar, a partir da construção/representação dos personagens protagonistas, que a expressão do desejo homoerótico não está atrelada a traços físicos e/ou psíquicos, como erroneamente somos levados a pensar quando associamos homoerotismo à pusilanimidade, à efeminamento e não à virilidade, à masculinidade (COSTA, 2000). Pelo contrário, os contos em pautam sinalizam que as pulsões homoeróticas podem ser vistas como uma expressão de uma subjetividade que não é aprovada pelo ideal sexual da maioria que quer ver homogeneidade onde há heterogeneidade, pluralidade, de forma que a privação da expressão do desejo entre iguais, segundo Costa (2000), chega a constituir um paradoxo sob o qual se assenta a nossa sociedade, a qual incita, por um lado, a ideia de realização afetiva e sexual e, por outro lado, nega essa realização quando ela se dá entre sujeitos do mesmo sexo.    
Esses “dois diabos rumo a lugar nenhum” terão suas vidas mudadas profundamente, depois da curta convivência em Brokeback. A montanha será o palco onde eles, impelidos pela solidão a que os expunha o árduo trabalho, irão vivenciar novas potencialidades de suas sexualidades. Nesse aflorar do lado homoerótico dos personagens, o ambiente em que eles foram trabalhar desempenha papel preponderante. Longe da visão determinista que marcou a prosa naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio, o espaço na obra em apreço, em certo sentido, propicia, entretanto, as condições para que os personagens, diante da solidão, possam, no começo, ajudar um ao outro na superação das adversidades do trabalho e, depois, como fruto dessa convivência, venham a ver no companheiro de trabalho o objeto de seu desejo, sentimento esse que ambos lutam secretamente para entender e manter: “Felizes de ter um companheiro onde não esperavam encontrar nenhum” (PROULX, 2006, p. 17), Ennis e Jack, de tanta convivência, vão ter uma relação mais íntima que transcenderá o campo de trabalho e que possibilitará o cultivo de um amor no masculino e para o masculino:

– Caramba, pára de martelar e vem cá. O colchão é grande – disse Jack com uma voz irritadiça e sonolenta. Era grande e quente o suficiente, e em pouco tempo eles aprofundaram consideravelmente a intimidade. Ennis andava a toda em todas as estradas, estivesse consertando uma cerca ou gastando dinheiro, e não queria nada disso quando Jack pegou a mão esquerda dele e levou-a até o próprio pau enrijecido. Ennis retirou a mão depressa como se estivesse tocado em fogo, ajoelhou-se, desafivelou o cinto, abaixou as calças, pôs Jack de quatro e, com a ajuda da superfície escorregadia e de um pouco de cuspe, penetrou-o, nada que tivesse feito antes, mas não havia necessidade de manual de instruções. Fizeram tudo em silêncio, a não ser por algumas tomadas de fôlego bruscas e o anúncio – o canhão vai disparar – abafado de Jack, depois tirar, deitar e dormir (PROULX, 2006, p. 19).  
                            

O interessante no excerto acima não é a descrição da relação sexual entre dois iguais, mas a ênfase do narrador em mostrar o quão era nova para os personagens essa experiência. Por ser nova, essa experiência, em certo sentido, tem um caráter desconcertante para os personagens: “[...] Ennis disse: ‘Não sou bicha’, e Jack interveio com ‘Nem eu. Primeira e última vez. Não é da conta de ninguém a não ser da gente’” (PROULX, 2006, p. 20). Entretanto, o fato de terem cedido aos seus desejos não fará dos protagonistas do conto em tela sujeitos marcados pela culpa. Pelo contrário, a impossibilidade da vivência amorosa entre esses personagens advirá das coerções sociais que criaram uma miríade de interditos que visam à não concretização do desejo entre iguais. A impossibilidade da vivência amorosa que marca sujeitos do mesmo sexo pode ser vista no momento em que, terminado o serviço para o qual foram contratados, o narrador descreve a separação entre Ennis e Jack:

[...] eles se apertaram as mãos, cada um deu um tapinha no ombro do outro, depois havia doze metros de distância entre eles e nada a fazer senão ir cada um para um lado. Menos de um quilometro e meio depois, Ennis sentiu como se estivessem lhe arrancando as tripas, puxando de metro em metro. Parou na beira da estrada e, na neve fresca que caía em turbilhão, tentou vomitar mas nada saiu. Nunca se sentiu tão mal e a sensação custou a passar (PROULX, 2006, p. 24). 

Passado algum tempo, Ennis e Jack voltam a se encontrar, e parece que a distância que os separou só fez tornar mais intenso o desejo de que eles foram acometidos durante o período em que trabalharam na montanha Brokeback. O excerto abaixo mostra como o encontro entre Jack e Ennis é marcado por desejo, o calor que uniu os corpos em meio ao frio intenso do inverno na montanha Brokeback ainda mantinha-se aceso, tanto que a descrição que o narrador faz do reencontro entre os amigos vaqueiros não só nos dá a justa medida do quanto foi intensa a relação entre os dois como também nos passa a impressão de que os dois personagens estão tendo, de fato, uma relação:

[...] Eles se agarram pelos ombros, abraçaram-se com força, cada um espremendo o ar de dentro do outro, dizendo: filho-da-puta, filho-da-puta, depois, e com a facilidade com que a chave certa gira as lingüetas da fechadura, suas bocas se encontraram, e com força, os dentões de Jack tirado sangue, seu chapéu caindo no chão, a barba arranhando, a salivação aumentando [...] e eles ainda agarrados, peito e virilhas e coxas e pernas coladas, pisando nos pés um do outro até se separarem para respirar e Ennis, desajeitado para palavras de carinho, disse o que dizia a seus cavalos e suas filhinhas, benzinho.
[...]
Seu peito palpitava. Ele sentia o cheiro de jack – o cheiro intensamente familiar de cigarro, suor almiscarado e uma leve doçura de relva, e, com isso, o frio agressivo da montanha (PROULX, 2006, p. 27-28). 


Se antes era a montanha o lugar em que eles podiam se amar, agora Ennis e Jack têm de procurar outros espaços onde é possível que o desejo de um pelo outro possa ser concretizado. Sobre esse aspecto, é interessante a observação de Ennis, quando este diz o seguinte a Jack: “Não vamos pode estar perto um do outro de forma decente se o que aconteceu lá – virou a cabeça na direção do apartamento – nos pegar assim. Se fizermos isso no lugar errado estamos mortos. Nesse não tem rédea. Me mijo de medo”. (PROULX, 2006, p. 35). O receio de Ennis é interessante porque aponta para o fato de que, como afirma Costa (2000, p. 20-21), “viver sendo considerado dia a dia como ‘homossexual’ é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens”. Em virtude disso, como a relação dele com Jack é algo que transgride o que é socialmente aceito, afastando-se dos ideais sexuais da maioria, ela não pode ser vivida em todo e qualquer espaço, daí por que a escolha por espaços isolados como a montanha ou mais reservados como os motéis. Enfim, lugares que segredam aquele amor que não pode dizer o nome. Por isso, os encontros entre eles eram sempre bastante furtivos, embora possuíssem, sempre, uma coisa que nunca mudou: “o brilho de suas cópulas bissextas era obscurecido pela sensação de que o tempo voava, nunca era suficiente, nunca bastava” (PROULX, 2006, p. 49).
Apesar disso, Jack chega a aventar a possibilidade de ele e Ennis viverem juntos em que eles teriam “uma fazendinha juntos, um negocinho de criação de gado, seus cavalos, seria uma vida gostosa” (PROULX, 2006, p. 35-36). Entretanto, as amarras sociais e os interditos são bem maiores do que o desejo de união, de forma que a relação de Ennis e Jack parece, desde o surgimento dela, marcada pela impossibilidade de duração: “A gente não pode. Estou atolado com o que tenho, preso no meu próprio laço. Não dá para sair. Jack, não quero ser como esses caras que às vezes a gente vê por aí. E não quero morrer” (PROULX, 2006, p. 37). A referência ao termo “laço” não é aleatória, porque aponta para o fato do quão presos estão os personagens aos ditames sociais, de forma que se torna quase impossível desvencilhar-se deles. Qualquer tentativa é vista como uma transgressão ao socialmente estabelecido, de maneira que os sujeitos que rompem com a ordem do discurso social, o laço, símbolo de aprisionamento, portanto, devem ser punidos. Ennis e Jack não sairão incólumes: um será punido com a morte; o outro, com a vida solitária sem a presença do outro de seu afeto.
Ennis e Jack são, devido aos ditames sociais, obrigados, portanto, a viverem de forma esquiva, quando, se não fossem esses ditames, eles poderiam ter vivido uma vida juntos, que não chega a, de fato, se concretizar porque ambos os personagens sendo compelidos a se assujeitarem “à heterossexualidade compulsória, à matriz heterossexual que designa a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, os gêneros e desejos são naturalizados” (MUNIZ, 2008, p. 131). Dessa possibilidade de união que sempre existiu apenas como um devir nunca concretizado, restou apenas a montanha Brokeback, já que “Tudo foi construído lá”, a qual ficou gravada na memória afetiva de ambos os personagens por lá ter sido o lugar em que eles, livres das amarras sociais e dos interditos, puderam viver o desejo de terem um ao outro:

A coisa de que Jack se lembrava e com que sonhava de uma forma que não conseguia evitar nem entender era a vez, naquele verão distante de Brokeback, em que Ennis chegara por trás e o puxara para junto dele, o abraço mudo satisfazendo alguma fome compartilhada e assexuada (PROULX, 2006, p. 54).

A montanha Brokeback tornar-se-á mais significativa ainda depois da misteriosa morte de Jack, uma vez que não sabemos ao certo se ele morreu em um acidente ao consertar o pneu do carro ou se foi morto a mando de sua mulher que descobriu ser o marido gay. Descoberta a morte de Jack, Ennis, agora solitário, vai à procura dos pais dele e, em um dos momentos mais tocantes do conto, adentra no quarto que fora de Jack:


No lado norte do armário, um discreto desvio na parede criava um pequeno esconderijo, e ali, dura depois de muito tempo pendurada num prego, estava uma camisa. Ele tirou-a do prego. A velha camisa de Jack da época da Brokeback. O sangue seco na manga era seu próprio sangue, um sangramento nasal violento na última tarde na montanha quando Jack, naquele agarramento contorcionista deles, dera uma joelhada violenta no nariz de Ennis. [...].
A camisa parecia pesada até ele ver que havia outra dentro dela, as mangas cuidadosamente vestidas nas mangas da de Jack. Era a sua camisa xadrez, perdida, achava ele, muito tempo atrás em alguma lavanderia, o bolso rasgado, faltando botões, roubada por Jack e escondida ali dentro da camisa dele, o par igual a duas peles, uma dentro da outra, duas em uma. Ele colou o rosto no tecido e inspirou devagar pela boca e pelo nariz, esperando sentir algum leve vestígio do cheiro de Jack, ranço salgado e doce de cigarro e sálvia da montanha, mas não havia propriamente cheiro, só a lembrança de um, a força imaginada da montanha Brokeback da qual nada restava senão o que ele tinha nas mãos (PROULX, 2006, p. 63-64).


No dizer de Muniz (2008, p. 132), “a morte de Jack e a sobrevivência solitária de Ennis remetem à clássica associação entre crime e castigo, pecado e punição, desvio e exclusão, estabelecida pelo sistema normativo e controlada pelo poder disciplinador”. Com esse desfecho, é como se o exercício da sexualidade não pudesse ocorrer para além da heterossexualidade normativa que “fixa papéis/comportamentos e materialidades corporais masculinas e femininas” (idem). Da união que precisou ficar no armário, aprisionada, restaram apenas aquelas camisas. Metonímia interessante da união entre dois iguais que tiveram de permanecer separados: devido aos interditos sociais e devido à morte de um deles. Das dificuldades dessa relação, ficaram as nódoas de sangue, símbolo da dor, mas também da alegria. Por isso, as camisas são preservadas por Ennis ao lado de um cartão-postal cuja paisagem é a de Brokeback. Espaço da realização amorosa proibida, a montanha também é o local onde Jack queria ser enterrado. Se tudo começou lá, é nela que tudo deve findar ou permanecer, ainda que como uma vaga lembrança. É uma lembrança como dói!
            No conto “Do outro lado do lago da aldeia também é proibido”, temos, assim como no texto de Annie Proulx, uma história entre dois iguais que se deixam levar por suas pulsões homoeróticas, transgredindo as rígidas normas sociais da velha aldeia de Narayma. Os personagens envolvidos são A-Lang e Lee. Não sabemos até que ponto a nossa impressão pode estar certa, mas o nome de ambos os personagens lembram, anagramaticamente, o nome do diretor do filme O segredo de Brokeback moutain: Ang Lee. Coincidência ou diálogo intertextual? Além dessa possível intertextualidade, o conto de Antonio de Pádua Dias da Silva remete-se ao texto de Annie Proulx, por fazer do aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo de iguais o tema principal. Aliás, desde a epígrafe do conto (Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação), retirada de Levítico, vamos percebendo que a grande isotopia que marca o conto do começo ao fim é a do aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo entre iguais.
O espaço em que se desenvolve o efêmero caso de amor entre A-Lang e Lee é bastante semelhante ao do conto de Annie Proulx: “Do lado da montanha, muito gelo, poucas folhas, bastante frio. [...] Narayama era o nome da aldeia. Nada acontecia de extraordinário naquele lugar. Era inverno.” (SILVA, 2007, p. 59). A aparente calmaria desse lugar, marcado pelo frio do inverno a determinar também álgidas relações entre os seus habitantes (a comunicação entre as pessoas era praticamente impossível, não fosse a astúcia dos velhos provedores dos lares), será alterada sensivelmente, desde que A-Lang “havia visto, antes de o inverno chegar, o olhar do filho do seu cunhado, que acabara de chegar de terras muito longes para ajudar a família a enfrentar o inverno rigoroso daquele ano” (SILVA, 2007, p. 60).
No espaço ocupado pela aldeia de Narayma e marcado por pessoas de “expressões tristes, corpos retesados”, A-Lang e Lee ousarão quebrar a aparente harmonia, ao darem vazão às suas pulsões homoeróticas. Assim como Ennis del Mar e Jack Twist, A-Lang e Lee sentem-se, a priori, perturbados com essa descoberta:

Era inverno e os corpos estavam retesados. Havia neve e nada de nuvens de poucos balões a soprar uma tranqüila brisa nas cabanas de Narayma. A-Lang estava pensativo e queria uma palavra. Lee não sabia como esconder o fato e não sabia compreender. Em torno da neve e do fogo, dois corações sem nenhuma história. Envoltos em pensamentos apaixonados e uma gama de valores a serem considerados” (SILVA, 2007, p. 60).      


Na descrição da paixão entre A-Lang e Lee, é interessante notar que os signos usados para representar o cálido sentimento entre esses personagens (trêmulo de desejo, corpo febril) se opõem aos signos usados para representar o espaço físico onde habitam as personagens e pertencentes todos ao campo semântico da frieza, representando a rigidez dos códigos sociais que regem a aldeia de Narayama e a imutabilidade das coisas lá estabelecidas. Desafiando os códigos estabelecidos em Narayama, A-Lang e Lee resolvem concretizar aquilo que era apenas sentindo, desejado, mas não consumado. Se antes o inverno era a estação que vira nascer aquele desejo e, de certa forma, contribuíra para coagir a sua realização, agora a primavera parece vir a ser cúmplice na aproximação dos amantes. A mudança de estação aponta a mudança de estado entre A-Lang e Lee. Antes a interdição no inverno; agora, a realização na primavera:

Era uma outra a estação a que cruzaram. As flores tinham aspecto de alegria. O cheiro do campo e da fumaça lembrava que não havia lembrança. Era outra estação naquela estação. Como antigos conhecidos que eram, correram em busca um do outro. E no centro da margem do lago, lado esquerdo, próximo a um partido de bambu, os dois se encontraram (SILVA, 2007, p. 62). 

Desse excerto, gostaríamos de destacar a ênfase que o narrador dá ao local do encontro entre A-Lang e Lee: no centro da margem do lago, lado esquerdo. Se formos pensar nas conotações atribuídas ao vocábulo “esquerdo”, visto como o proibido, o negativo, o que precisa ser corrigido em relação ao que é considerado o direito, essa ênfase do narrador está só ratificando o peso da interdição contra a relação entre A-Lang e Lee, que violaram “o código da natureza, instaurando em pleno inverno a estação das flores”. Cúmplice, a natureza aproxima aqueles que, pelos ditames sociais, deveriam permanecer separados, com seus corpos que, embora ardentes de desejo, deveriam ser e estar retesados. Não é à toa que o vocábulo “retesado” é bastante reiterado ao longo do conto:

As regras não importariam. Teriam que ali estar e ser. Calmamente desce o corpo apoiado no tronco da sequóia. Enquanto desce num ritmo anestesiado, Lee acompanha aquele comportar-se e ajuda o companheiro. Invade-lhe os cabelos, lança-lhe dedos de forma a sentir os flocos de neve, os cabelos, a pele. [...] Sente o ofegar do companheiro. Dá-lhe um cheiro no cabelo, cumprimenta-o com um cheiro no rosto, encosta-se no corpo do outro, sente a pulsação, o ofegar, o membro. [...] Fazem as bocas encontrarem um beijo. [...]. Corados e envergonhados, sabiam o que sentiam. Os braços de Lee forçavam sem violência o corpo de A-Lang a encontrar resposta. Não havia dúvida nem crime. Apenas o que não era entendido ali. [...]. Boca na boca e o beijo primeiro. Lágrimas descendo e hosanas subindo. Rostos colados, braços apertados. [...]. Nu da cintura para cima, o corpo querendo. Frio às margens do lago, fogos de amor. Casaco no chão, corpos sobre ele. No íntimo mais dele, o dele ali furando. Nas partes mais íntimas, o homem ali sussurrando. No movimento desconhecido, a invasão permitida (SILVA, 2007, p. 63).

Na descrição da cena anterior, é pertinente notar que o narrador no-la apresenta de forma “natural”, sem julgamentos de valor. A realização amorosa entre os dois iguais é decorrente não de taras, mas do impulso desejante que um sente pelo outro, desejo esse representado metaforicamente pela expressão “fogos de amor”. Por isso, o narrador afirma que não havia dúvida nem crime. Os dois se permitiam vivenciar o que sentiam um pelo outro, daí por que as invasões que um poderia exercer sobre o outro eram permitidas, concessões de quem ama e permite-se ser amado na plenitude, ainda que efêmera, de sua sexualidade.       
Entretanto, por terem transgredido com o socialmente permitido, lembremos agora da epígrafe do conto, A-Lang e Lee são punidos. Como forma de pagarem pela vergonha que cometeram às suas famílias, eles são condenados a trabalhos forçados. Aqui, o espaço adquire uma projeção interessante porque ele amalgama, ao menos, a permissão e a proibição, ou como diz o narrador, “no mesmo lado da cidade, o proibido”.
Parece-nos que, além das visíveis semelhanças, existe uma sutil diferença entre as obras em apreço: se Ennis e Jacks deixam-se guiar pelo modelo heterossexual normativo, casando-se, constituindo família e alimentando o desejo de eles mesmos formarem uma família, unindo-se e vivendo juntos, Ang e Lee, de certa forma, fogem ao modelo heterossexual normativo, já que ambos, ao contrário dos dois cowboys, não se deixam guiar pelo modelo heterossexual, embora suas ações sejam vistas como transgressão à luz desse modelo e sejam, todavia, punidas. 
As obras em apreço, pertencentes a culturas diferentes, propiciam o contato com formas de afeto entre iguais, quando as relações afetivas hegemônicas são aquelas pautadas, exclusivamente, a partir de experiências e representações heterossexuais, modelo único de referência que “homogeneíza a pluralidade com suas concepções totalizadoras, sexistas e hierarquizadoras” (120). São obras que, ao invés de ratificarem preconceitos que estão na base de uma sociedade patriarcal, mostram como tais preconceitos nos impedem de conviver com a(s) diferença(s), com o respeito ao Outro, além de cercear a possibilidade de vivenciarmos novas identidades e formas de subjetivação de realidades igualmente novas.

Ao problematizarem as relações entre iguais numa sociedade de base patriarcal, as obras em apreço apontam que tais relações representam uma outra forma de vivência da sexualidade humana, daí por que a importância do respeito à diferença, fazendo com que sujeitos ex-cêntricos, como os personagens das obras analisadas, adquiram, como afirma Linda Hutcheon, “uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que, na verdade, nossa cultura não é o monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido”.  
O VERBO INCANDESCENTE:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE ALMENARA DE LUCILA NOGUEIRA




O primeiro livro de poesia de Lucila Nogueira já nos chama atenção pelo próprio título: Almenara. Como está dito na orelha da obra, assinada por Mario da Silva Brito, por almenara entende-se:

um fogo, uma luz que se acendia nas atalaias ou torres de antigas cidades. Para dar sinais, avisar o povo sobre o movimento de tropas inimigas ou da chegada de piratas e assaltantes, servindo, ainda, para enviar mensagens, quando transportada de uma área para outra. Anunciava também a deposição do rei. Permanentemente acesa, guiava os caminheiros da noite. É um farol da terra, um nome antigo de candeeiro, a defesa luminosa de um burgo em tempo de perigo.


Entretanto, a ideia de guia, de iluminação, de condução, de aviso não fica circunscrita apenas ao título do livro. Os poemas de Almenara colocam em exercício aquilo que o título já prenuncia, isto é, são uma espécie de chama a manter sempre acessa a poesia a guiar a nós em meio às atrocidades da vida em sociedade ou em meio às dores e delícias da existência. E a poeta parece-nos ser uma sacerdotisa que procura manter viva a chama da poesia “neste tempo de encontros relativos” e que só nos faz uma exigência: “não me tente seguir e não me tente/ se não tiver o passo das fogueiras”. O fogo parece, então, desde o título, a maior isotopia figurativa da obra.
Conforme ensina o professor João Batista de Brito, em teoria poética, por isotopia entendemos a construção, em determinado texto, “de um universo semântico a partir da reiteração de elementos de significação subterrânea, em princípio, menor que a extensão semântica de uma palavra” (BRITO, 1997, p.08). Os pequenos pedaços de sentido recebem o nome de sema, os quais, geralmente, estão presentes nos poemas de forma caótica e são quase imperceptíveis a olho nu. No livro de Lucila Nogueira, o fogo inerente ao significado da palavra que dá título à obra vem à tona na forma de outros semas, tais como: labareda, aceso, esbraseada, fogo, fogueiras, queimadura, taças de fogo, centelhas, incêndio, acender, arder, consome, chama, incendiado. Cabe a nós, entretanto, descortinar qual(is)  o/os universo(s) de sentido para o qual apontam tais semas. Nesse caso, um dos primeiros feixes de significação é aquele em que o sema “fogo” pode se associado a uma isotopia temática: a do desejo, à qual somos remetidos mediante a presença de semas como: fogo, chaga, nua, amor, convulsões, desespera, irrompo, e que pode ser comprovada mediante a leitura de poemas como:

SE UMA MULHER ESPERA

Talvez se a manhã vier me restitua
a túnica universal da primavera
mas agora estou triste, só e nua
te esperando, sem sono, na janela.

Eu não durmo, não chegas, e é tão tarde
descem na minha dor todos os astros.
Se uma mulher espera, a noite arde
e o mundo vira e revira em sua carne.

Levanto a cada ruído, mas não chega
aquele por quem se ilumina toda a rua.
Ai, se uma mulher espera, nos seus braços
resume a certeza de todos os espaços.

Mas talvez se chegar a madrugada
meu amor pode ser venha com ela
e me deixe cantar nossas cantigas
e adormeça em meu colo e cesse a guerra
que me faz nesta hora tão sozinha
triste e desesperada sobre a terra.

     
O poema acima, mais do que tematizar a espera feminina pelo amado, tematiza os efeitos dessa espera: a solidão, o arder de desejo por aquele que se encontra ausente. E, na configuração do desejo imantado na espera, a poeta cria imagens lapidares como: “Se uma mulher espera, a noite arde/ e o mundo vira e revira em sua carne”. Embora o poema tenha como título uma construção que estabelece a ideia de hipótese, todo o poema fala de reações que não se realizam no plano das hipóteses, mas no da experiência vivida, sentida na própria pele e acalentada pelas dúvidas que suscita toda e qualquer espera: “Mas talvez se chegar a madrugada/ meu amor pode ser venha com ela/ e me deixe cantar nossas cantigas/ e adormeça em meu colo e cesse a guerra/ que me faz nesta hora tão sozinha/ triste e desesperada sobre a terra”. Hipotética é apenas a chegada do amado. Certos são os medos, os receios e os desejos por sua chegada: “Levanto a cada ruído, mas não chega/aquele por quem se ilumina toda a rua”.
Dentre dessa perspectiva lírico-amorosa, parece que o sujeito lírico feminino, quando não está a cantar a espera pelo amado, canta a separação, mas não a partir de uma perspectiva triste e melancólica, ainda que tenha ficado o vazio do abandono:

TUA PRESENÇA ENORME

Tua presença enorme confundiu os astros
emudeceu as aves, despovoou a rua.
Tua presença enorme absorveu meus passos
entregando-me à noite, subitamente nua.

Tua presença enorme incandeou o fogo
suspenso no meu colo, em meio a qualquer chuva.
Tua presença enorme ultrapassou o jogo
aniquilou muralhas, envergonhou a luta.

Tua presença forte, noventa vezes forte
estremeceu a carne, violentou o rumo.
Minha presença terna, setenta vezes terna
feriste e abandonaste, distantemente rude.

Mas houve indefinido e poderoso vento
misterioso e claro a bater no meu rosto.
E eu vi em teu olhar fantasmas submersos
estendendo-me os braços, na ânsia de ser sonho.

Foi queixa, não foi guerra o teu grito profundo
atravessando a noite, desacordando o mundo
e de repente fraca, e de repente nua
confusa como os astros, atravessei a rua.

        
No poema acima, desde o título, a repetição do sintagma “tua presença enorme” vai, em um crescendo, mostrando, anaforicamente, como a figura do ser amado revelou-se como algo que absorveu não só o sujeito lírico, metonimicamente representado pelo sintagma nominal “passos” em “tua presença enorme absorveu meus passos”; como também tudo o mais ao seu redor: os astros, as aves, a rua. Em contraposição a esse ser que é capaz de emudecer as aves, confundir as aves, incandear o fogo do desejo, o sujeito lírico se apresenta como terno, ainda que a sua ternura tenha sido ferida e abandonada pelo expansivo ser amado, hiperbolicamente referido em “tua presença noventa vezes forte”.
Outra hipérbole também encontramos no décimo primeiro verso, a qual faz menção ao  sujeito lírico, mais especificamente à presença terna dele, embora o exagero tão característico da hipérbole não ocorra na mesma proporção ao que é feito à figura do amado do sujeito lírico feminino. Se a presença do ser amado é noventa vezes forte; a presença do sujeito lírico é setenta vezes terna. Ou seja, embora tomando um mesmo elemento comum, o da presença, para a comparação entre sujeito lírico e ser amado, este ainda se sobrepõe sobre aquele vinte vezes.
Notemos que a comparação entre um e outro ocorre na terceira estrofe que, situando-se no meio do poema, divide-o em dois segmentos. O primeiro, composto pelas duas primeiras estrofes, vai desenhando a imagem do amado como um ser de presença marcante e absorvente diante do qual tudo o mais é tragado. O segundo segmento do poema, composto, agora, pelas duas últimas estrofes, rompe com a estrutura paralelística que encabeçava os versos iniciais das duas primeiras estrofes e, iniciado pelo conector adversativo “mas”, apresenta um conteúdo informacional que se opõe ao que vinha sendo dito nas estrofes anteriores. Se antes, nas estrofes anteriores, com exceção da terceira, temos a presença excessiva do ser amado, as duas últimas vão falar da ausência dele e, de certa maneira, do alívio do sujeito lírico em se perceber só: “e de repente fraca, e de repente nua/confusa como os astros, atravessei a rua”.
O estado final do sujeito lírico, isto é, “confuso como os astros”, remete-nos aos versos inicias do poema nos quais está dito que a presença enorme do ser amado confundia os astros. Todavia, se antes a confusão advinha da presença dele, agora, é a sua ausência que provoca o estado confuso em que se encontra o sujeito lírico que, saindo do estado de torpor em que vivera diante do sufocante ser amado, atravessa a rua como se estivesse deixando para trás o que precisava ficar para trás: o ser amado e sua asfixiante presença. Como toda mudança radical não ocorre sem que sejam provocadas certas reações, o sujeito lírico só poderia sentir-se confuso.
Ainda da primeira parte de Almenara, achamos bastante paradigmático o seguinte poema, porque não só ainda está dentro do viés lírico-amoroso de que vimos tratando até agora, como, também, ainda faz remissão ao sema fogo:


SE NÃO TIVER O PASSO DAS FOGUEIRAS

Desembarquei sozinha das estrelas:
o que chamam de céu é só meu chão.
O patear dos sonhos me antecede
e o amor é minha vara de condão.

Presença absoluta, deus que treme
o ladeiroso esquife da razão,
amor que mais em eleva e mais me vence:
candeia amaviosa em minha mão.

Navego a cordilheira das promessas
neste tempo de encontros relativos.
Sofro o redemoinho das artérias:
ai que já não suporto ter sentidos.

Sentir danadamente como eu sinto
e abrir-se o peito em vasto precipício:
não me disseram, não, não me disseram
que a solidão rezava meu início.

O sonho é minha única alforria.
Do amor, do amor sou guia e prisioneira:
não me tente seguir e não me tente
se não tiver o passo das fogueiras.

Neste poema, composto por vinte versos divididos em cinco quartetos, o sujeito-lírico, espécie de ser cósmico, canta a importância do amor em seu destino, sentimento este a que ele se refere por meio da metáfora vara de condão e que lhe serve de candeia amaviosa, isto é, de guia, de fonte de iluminação. Devido a tal importância, o amor assume para o sujeito lírico uma “presença absoluta” que o eleva, mas diante do qual ele, o sujeito lírico, tomba vencido e que lhe exige a mais completa devoção.
Deste amor a que serve como um sacerdote, o sujeito lírico só pode fugir nos momentos de sonho, única via de evasão que lhe é possível. Por isso, o sujeito lírico sente-se guia e prisioneiro do amor, estado do qual ele só será retirado se o outro, o ser amado, for possuidor do passo das fogueiras, espécie de segredo que o sujeito lírico não revela qual é, mas que o outro deve ter, conforme podemos depreender da seguinte advertência: “não me tente seguir e não me tente/ se não tiver o passo das fogueiras”.
Na primeira parte de Almenara, Lucila Nogueira reúne, a nosso ver, os poemas que podem ser inseridos em três vieses, o que já tinha sido percebido por Mário da Silva Brito quando ele afirma que “Lucila canta o amor”, compromete-se com o social e chega a atingir o plano metafísico, empenhada em cobrir as muitas dimensões que a compõem como indivíduo a um tempo solitário e solidário”. O primeiro viés é, portanto, o de natureza lírico-amorosa, e nele se enquadram os poemas aqui analisados até agora, os quais assumem um tom bastante confessional e cujo sujeito lírico faz do desejo a expressão de seu ethos. O segundo viés é dotado de uma dicção mais social em que o sujeito lírico, para usar uma feliz expressão da poeta, “neste tempo de encontros relativos”, mais do que fazer reivindicações, faz reflexões ante “o caos desumanizador em que o mundo mergulhou” e o homem descobre-se como um ser partido ou em meio a um universo marcado, em toda a parte, por signos da destruição, do sofrimento, como indicam os semas cruz, sede, espinho, chicote, conforme podemos ler no poema abaixo:

O HOMEM


Por toda a parte a cruz, a sede, o espinho
o sangue refletindo a face exausta
e o chicote entoando ao seu céu hino.
Por toda a parte o peso do absurdo.

Por toda a parte a queda. E a terra fria
mergulhando a ferida consentida.
Por toda a parte o gesto é paralelo
e o fel inunda o lábio que suplica.

Por toda a parte sofre o ser que intenta
aureolar na sombra o absoluto.
Por toda a parte a morte é companheira
e a solidão  persiste além do túmulo.

Por toda a parte a carne é véu-limite
da chama que esvoaça sobre o tempo.
Mas se fiel o homem a seu caminho
por toda a parte é deus e ressuscita. 


Entretanto, se o homem vive em um mundo partido, estilhaçado, onde o chorar e o sofrer parecem ditar as regras, de maneira que a ferida não é mais provocada, mas consentida, como se o homem já estivesse se acostumado à dor e ao sofrer, e onde apenas a morte e a solidão revelam-se companheiras, se, enfim, boa parte dos signos explorados pelo sujeito lírico desenha uma geografia da desilusão, ainda assim, o sujeito lírico aventa uma possibilidade de esperança: o ressuscitar da dor, do caos, como podemos depreender da leitura dos seguintes versos: “Mas se fiel o homem a seu caminho/por toda a parte é deus e ressuscita”.  E a esperança, às vezes transmudada em sonho, parece ser um signo a pontuar não só determinados versos de alguns poemas (“cavo no peito uma ilusão de ferro/ e sou forte e as lamentações enterro”; “vida pressentida/ na torre sem lanternas a que chamava mundo”), mas alguns outros poemas, como este “CONTRA O SONHO NÃO PODE UM ARGUMENTO”:      


Rude estrada invertida, rude vento
rude atalho impreciso, rudimento
rude rumo arraigado rudemente.

Escondemos a ira, o sofrimento
todo o amor impossível, todo intento
e mais eles se alteiam para dentro.

Eu finjo que suporto e não agüento.
Eu finjo que suporto e me arrebento
ninguém jamais percebe o ferimento.

istante estou de ti neste momento.
Um sonho está pesando no meu ventre.
Contra o sonho não pode um argumento.

Nele aflora a saída inexistente
nele ocorre o triunfo das sementes 
sobre o deserto enorme à nossa frente.

Rude rumo que arrosto alegremente:
A vida está sonhando um novo tempo.
Contra o sonho não pode um argumento.


Ou então, este “TRAGO CHAGAS DE LUZ NO CORPO INTEIRO”, cujo título já apresenta em si mesmo uma belíssima metáfora para a esperança:

Trago chagas de luz no corpo inteiro.
Com a fúria das mágicas certezas
arremeto, severa, contra o gelo
que se alastra na sombra submersa.

Minhas armas secretas se bifurcam.
Mensageira, sou luta. O sonho é lento
e é preciso acender na mão a lança
que há de abrir sobre a terra um novo tempo.

Eis-me pronta, irmão, dentro do leito.
Trago ondas, estrelas, redemoinhos
de raízes selvagens me alimento.

Sou ramagem iluminando o vento.
A alquimia invencível do meu sangue
As origens do eterno submeto.


Por fim, a terceira dicção perceptível na poesia de Lucila Nogueira, em Almenara, é a de matiz metafísico ou filosófico-existencial.     

QUEBRANDO A PREPOTÊNCIA DOS GIGANTES

E enfrentei a manhã como quem dorme
na sela de uma águia agonizante.
Não temeram por mim os que me amaram:
deitei com as miragens do horizonte.

Não temeram por mim os que me amaram
e o sonho me estendeu taças de fogo.
Vaga-lumes agora me navegam
e enguias se eletrizam no meu corpo.

Pelo me ventre rola essa lanterna
a desferir circuitos do meu rosto.
Talvez por isso o amor levante ferros
sempre que me aproximo de seu porto.

Mas não temam por mim os que me amarem:
na veia fluorescente e trepidante
corre um riso de fadas e duendes
quebrando a prepotência dos gigantes.

A ideia de luta constante ante a prepotência dos gigantes já está assinalada pela forma gerundial do verbo quebrar presente no título do poema. O primeiro verso, por ser iniciado pela conjunção aditiva “e”, mantém relação com outro ou com outros enunciados aos quais não temos acesso, como se estivéssemos acompanhando o sujeito lírico em plena ação em desenvolvimento: “E enfrentei a manhã como quem dorme/ na sela de uma águia agonizante”. A ideia de combate está presente em todo o poema, o que pode ser corroborado pela presença de verbos como enfrentar, temer, desferir ou por substantivos como sela, taças de fogo, lanterna, ferros. Entretanto, parece-nos que o combate a ser enfrentado não é de natureza beligerante, mas de natureza psicológica, isto é, uma enfrentamento do eu consigo mesmo. Senão vejamos. Espécie de ser dotado não de poderes sobrenaturais, mas de forças advindas do esforço próprio, o sujeito lírico foi compelido à ação de quebrar a prepotência dos gigantes. Aqui, o sintagma nominal “gigantes” pode ser tomado como metáfora para tudo aquilo que o sujeito lírico, precisava enfrentar para libertar e expandir a sua personalidade.
Nesta espécie de jornada em busca de conhecimento de si, uma vez que se acreditarmos que o grande combate de gigantes é enfrentarmos “a evolução da vida no sentido de espiritualização”, o sujeito lírico precisou deitar-se “com as miragens dos horizontes”, isto é, possivelmente acreditar em falsas esperanças, alimentar-se de ilusões ou incorrer nas armadilhas do próprio Ego, mas não deixou de ser ajudado não só porque havia quem acreditasse nele, os que o amaram, mas também porque os sonhos, ao lhe estenderem taças de fogo, serviram-lhe de guia, iluminando os caminhos a serem seguidos bem como lhe veio o auxílio de seres fantásticos, como as fadas e duendes: “na veia fluorescente e trepidante/corre um riso de fadas e duendes/quebrando a prepotência dos gigantes”, os quais não só atuam como guias, mas representam “os poderes paranormais do espírito ou as capacidades mágicas da imaginação” e satisfazem, ou desfazem, os mais ambiciosos desejos.
Dentro da esfera de ambiciosos desejos, nota-se em Lucila Nogueira que a mais auspiciosa ambição é adquirir a simplicidade como um ideal de vida. Como exemplo desta filosofia das coisas simples ou da vida simples, leiamos o poema “O desafio”, cujo título já revela quão difícil é o que almeja o sujeito lírico:

Serei sempre tão clara como a vida
dos simples que semeiam neste campo:
seu ácido suor tem mais estrelas
que a penunbra macia dos meus sonhos.

Se um pássaro de amor em meus ouvidos
desfia a rede azul dos oceanos
eu cruzo de jangada para o abismo
acesas caravelas pelos ombros.

Toda nave me toma por sentido
no verão da cidade americana.
Atiro sob as pontes do Recife
meus olhos convergindo mar e campo.

Mas não passa a nudez das coisas simples.
pelo canal da hipocrisia humana:
arrasto no meu passo sempre um grito
dos que tremem seu medo pela sombra.

Eu desafio a máscara do tempo
a cada instante que respiro e ando.
Da farsa foge até o próprio verme:
onde vão enterrar tanta vergonha?

Sempre serei tão clara como a vida
dos simples: sem joguetes ou enganos.
Para o mundo me basta esta colina
e o amor que nela aponta o oceano.


Assim como o poema acima, a simplicidade como ideal a ser seguido é a tônica do poema a seguir, cujo título e cuja linguagem, na forma como são orquestrados, fazem da simplicidade não só elemento do plano do conteúdo, mas também do plano da expressão:

Lição

Um povo iluminado me orienta
me condena, me bate, me sepulta
e pisa alucinado no meu ventre
e afoga em sua ira o meu tumulto.

Um povo esfomeado me alimenta
após tomar-me o pão, a casa, tudo
me beija, me possui e me acalenta
e dança sem remorso no meu luto.

Povo desamparado, em sustenta
me ensina essa grandeza indissoluta
me ensina a ser só simples, verdadeira
e corajosa e firme e resoluta.


O sujeito lírico precisa passar por provas e despojar-se do que tem, ou ser expropriado, para receber, em troca, a grande lição: ser simples verdadeiramente. Notemos como a presença do polissíndeto no último verso (e corajoso e firme e resoluta) marca a persistência do sujeito lírico na busca por tal ideal ou na manutenção do ideal tão almejado.               
É perceptível também em alguns poemas certo talhe helenizante de que serve como exemplo este:

         A CARIÁTIDE

Com a fúria do sol e das feridas
em barro incendiado me levanto.
Assustarei as sombras do silêncio.
as espirais acessas são meu corpo.

Ergo um sinal e torno minha vida
do sangue e da esperança a cariátide.
Por onde eu for meu fardo me ilumina
e vela o sono exausto da cidade.

Por cariátide, entendemos as estátuas de mulheres que sustentavam o entablamento e a cobertura de prédios da Grécia antiga. Como sustentáculos, as cariátides representavam o ideal de harmonia grega, ideal que é respeitado por Lucila em seu poema, já que este é composto por duas estrofes que visivelmente parecem ser o reflexo da outra. As estrofes, além do mesmo número de versos, quatro em cada uma, também possuem a mesma métrica, isto é, apresentam versos decassílabicos. Como as cariátides, o sujeito lírico, composto pela “fúria do sol” e “das feridas em barro incendiado”, em referências aos elementos de que se constituíam tais estátuas, procura investir contra as intempéries do tempo, e, possivelmente do esquecimento, (“assustarei as sombras do silêncio”), valendo-se do corpo como locus de resistência (“as espirais acessas são meu corpo”). A fusão entre sujeito lírico e o ideal de ser cariátide é apresentada nos dois primeiros versos da segunda estrofe: “ergo sinal e torno minha vida/ do sangue e da esperança a cariátide”, em que o sangue e a esperança do sujeito lírico passam a ter a força e a resistência que caracteriza a cariátide sob cuja forma é que o sujeito lírico pode-se colocar como protetora da cidade: “Por onde eu for meu fardo me ilumina/ e vela o sono exausto da cidade”, já que, sendo uma cariátide, o sujeito lírico passa a ter como função de suportar, isto é, ter como fardo, o peso de algo que, no caso, é servir como sustentáculo da cidade, impedindo que ela venha a ruir. É portanto uma luta contra o desaparecimento e pela permanência em vida. Não seria, cremos, disparate ver nesse poema uma bela metáfora para o ser e o agir da própria poesia e, por extensão, do próprio poeta.
Por fim, a poesia de Lucila Nogueira, no livro em comento, pode ser vista, apropriando-nos de um verso do poema que serve de prelúdio à obra, como uma “labareda incessante que se atreve/mas que a abismos se sabe condenada”. Poderíamos perguntar que abismos são esses. Cremos que eles são os abismos do Amor, da Existência, da preocupação com o social, espécies de linhas de força que dão forma à poesia de Lucila Nogueira em Almenara, um poesia cujo sujeito lírico desencadeia uma busca possivelmente marcada pela impossibilidade de encontrar o que se foi buscar, uma vez que o importante não é encontrar o objeto buscado, mas desencadear a demanda, como podemos ler no seguinte poema que abre a primeira parte do livro:

PORQUE NÃO TE CONHEÇO TE PROCURO


Porque não te conheço te procuro.
E te chamo de amigo e te asseguro
que  invisível falcão me dilacera.

Sou uma caça abatida em meio a feras.
E abatida inda busco o monumento
Que eleve a paz e luz o sofrimento.

Amar é dispensar todas as armas.
É partir para o sonho, o corpo claro
e voltar tinturado pelas balas.

Eu peço ferro e fogo nesta chaga.
Até que ela por si murche e endureça
e a ternura em seus marcos amanheça.

Eu recuso, eu acuso e ultimo a farsa
Que está sempre exigindo quem abraça.
Quando a verdade some a fé naufraga.

Que a fé no meu peito não te afaste:
Feridas em memória eu transfiguro.
Porque não te conheço te procuro.
   
 Como podemos perceber, o eu-lirico anuncia aquilo que o move: o desejo de conhecer o que se lhe afigura como desconhecido, isto é, “o invisível falcão que me dilacera”. Esse algo que desencadeia a busca, o desejo de conhecimento é, a pensar-se no título do poema, o ser amado, este que é a fonte das nossas dores e alegrias, este que nos faz sentir vivos porque mantém acesa em nós a nossa chama de pulsão de vida, mas que sempre se nos revela uma incógnita, um terreno desconhecido, daí por que a presença do paradoxo que está presente no verso que serve de título do poema, que abre a primeira estrofe e encerra a última: “Porque não te conheço te procuro”, não nos oferecendo o alívio do encontro, mas a insatisfação do desejo não saciado a nos impulsionar a manter a busca pelo que se nos apresenta como um terreno a ser ainda explorado, penetrado, conhecido e que pode deixar em nós feridas que, conforme ensina o eu lírico em um belíssimo verso, precisam ser transfiguradas: “Feridas em memória eu transfiguro”.
Em uma linguagem objetiva, em um verso limpo e transparente, Lucila Nogueira, neste seu livro de estréia, apresenta-se como senhora de uma poesia que fala mais da plenitude do ser do que da carência do ser. A busca por compreender a plenitude do ser faz da poesia de Lucila Nogueira uma espécie de almenara inapagável cujas chamas foram tornando-se mais intensa à medida que passou a reluzir em outras obras.


BIBLIOGRAFIA

NOGUEIRA, Lucila. Almenara: poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Poesia Hoje; v. 34).

BOSI, Alfredo. Interpretação da obra literária. In: ______Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Dias Cidades; Editora 34, 2003.

______ . O som no signo. In: _____ o ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


BRITO, João Batista de (org.).  Leitura do texto poético: ensaios de (e para) a sala de aula. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1997. 

Fonte da Imagem:

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