quarta-feira, 28 de maio de 2008

Carta às minhas queridas professoras

Para Ruth Fernandes, Graça Vilar, Yêda Raya, Tereza Neuma Campina, Graça Barbosa, para minhas professoras do primário de cujos nomes não me lembro mais e em memória de José Henrique Sobrinho e Maria Betânia Campos de Medeiros.

"Navegar é preciso, viver não é preciso". Essa frase, há muito, trago-a na memória. E dela me aproprio para dizer que rememorar é preciso, viver não é preciso. Ou seja, é preciso trazer à memória aquilo que estava imerso nas densas águas do rio Lete. E quando empreendemos singrar contrários ao curso desse rio, navegamos por mares sempre desde antes esquecidos. Nessa demanda em busca desse graal, que desconhecemos e que é sempre um eterno devir, somos impulsionados sem nem sequer sabermos que estamos nessa empreitada. E assim com fios que muitas vezes desconhecemos, seja porque invisíveis, seja porque, mesmo visíveis, não os percebemos, vamos tecendo um bordado no qual somos mais o desenho que, ponto a ponto, está sendo confeccionado do que o próprio bordador. Espécie de Penélope, tecemos não a fim de que Ulisses retorne, mas a fim de nos conhecermos a si próprios. Ulisses somos nós mesmos. Por isso, o nosso bordado é um contínuo traçar e destecer fios a fim de compor um desenho que se nos afigura como inefável. Mesmo assim, numa empresa que não é vã, tecemos e no traçado das quase sempre nem bem traçadas linhas, um ponto une-se a outro que, por sua vez, liga-se a mais outro e, assim, vão compondo esse bordado que me revela, me desvela, me esconde, me expõe. E como sempre estamos bordando novos bordados para este grande tecido a que chamamos vida, bordamos uns, destecemos outros. Guardamos estes, escondemos aqueles. Mas todos esses bordados trazem em si as marcas não só de nós mesmos como de outras pessoas. Pessoas que nos trouxeram alguns novelos, sugeriram pontos, cores para o nosso bordado, ouviram nossas angústias diante da dificuldade em algum ponto, compartilharam nossas alegrias quando o bordado estava pronto e era preciso começar mais um outro, em um novo tecido, com novas cores, pontos novos, desenhos ainda a serem pensados. Entre essas pessoas, fiandeiras, ou melhor, parcas às avessas, pois não cortavam os novos fios, mas traziam mais novelos, estão as minhas antigas professoras de português a quem devo o contato com os fios da Literatura com os quais, pouco a pouco, fui tecendo uma roupa que me protegeu das agruras do mundo e que me deu afagos quando tudo ao meu redor era tristeza ou solidão. Com elas, fui aos poucos juntando um ponto, tecendo outro deste bordado que ainda não terminei, que ainda está se constituindo, que, a cada girar da roca de fiar, toma formas que nem sempre foram previstas por mim. Por isso, sempre que pego um livro, seja os que vim a comprar muito tempo depois, seja os que vocês me deram ou me emprestaram (e ainda não os devolvi), ainda que vocês não venham de imediato à memória, foram vocês que me permitiram ter acesso à literatura e, assim, foram me dando um pouco dessa dose de humanidade que a literatura traz entre uma linha e outra e que me ensinou a viver no mundo, apesar do mundo.
Obrigado.

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