“Liberdade! Livre!”. Os gritos retumbavam no escuro da noite, enquanto outras vozes pediam que se fizesse silêncio. “Enfim livre!”. Eram palavras que zumbiam em sua cabeça, mas o som não a incomodava. Há tempos que sonhara com esse dia. A partir de agora, preferia esquecer tudo o que passara naquelas frias paredes, entre aqueles corpos exalando suor acre que lhe chegava a corroer as narinas. Não sabia como conseguira suportar aquilo tudo, mas de agora em diante precisaria de mais cautela. As portas não se abriram para ela. Foi preciso forçá-las. O ar da noite lhe revigorava os pulmões que já estavam se acostumando ao ar das paredes frias e mofadas daquela cela pequena, assim como o seu estômago já havia se acostumado à ração diária que lhes serviam e que tinha gosto de azedo. O mesmo gosto que estava impregnado na vida das outras companheiras suas.
De repente, ouvem-se pios fortes. “Deve ser de alguma coruja”, sussurra uma voz meio ofegante. “Minha Nossa Senhora, valha-me Deus”, diz outra voz, assustada, fazendo o sinal da cruz. Os pios tornam-se mais intensos. “Corre, corre”, grita uma daquelas vozes, enquanto um estampido agudo rasga o negro véu da noite e atinge algo que como uma rosa rodopia no ar, como se fosse uma bailarina que errou o passo em dia de estréia, e cai manchando de vermelho, que escorre de suas pétalas, aquele chão escuro. “Atingimos uma, essa não foge mais”, vibra umas vozes mais fortes que se aproximam esgueirando-se pela não mais silenciosa noite que, arfante, vai cedendo lugar para o novo dia.
Era um dia de domingo. Ela saiu do quarto e foi até a sala. Verificou se estava tudo trancado. Olhou para a estante e viu a foto da família. Se seu pai estivesse aqui ainda, sua irmã não precisaria ter passado por aquilo. Amanhã, limparia a estante. Era preciso tirar as teias de aranha que iam formando uma espessa camada que escondia o rosto de seu pai. Foi à cozinha e certificou-se se a porta estava aberta, conforme havia combinado. Sua mãe saíra para igreja. Sua irmã também fora. De uns tempos para cá, ela precisava encontrar conforto para a sua alma.
Hoje seria o dia ideal para tornar concreto aquilo que fora posto em suspenso. Sentou-se em uma das cadeiras da mesa. Partiu um pedaço do bolo de milho, adoçou um pouco de café. Iria lavar o copo, quando olhou para o relógio que estava em cima da geladeira. Faltavam poucos minutos. Apressou-se. Não podia estar na cozinha. Voltou ao quarto. Colocou um pouco de perfume, mas sabia que ele não poderia impedir que exalasse aquele odor que lhe vinha da alma. Passou a mão por sobre a cama. Apalpou o travesseiro. Estava ali tudo aquilo de que ela precisava para aquela noite. Apagou a luz e foi deitar-se. Agora era só esperar mais um pouco. Já sabia o que iria fazer e não sentia nenhum remorso. Era hoje.
A porta da cozinha soltou um som de instrumento desafinado. Passos seguiam pelo corredor. A maçaneta da porta do seu quarto girou: “– Deixe a luz apagada”, pediu ela com a voz meio embargada. O vulto foi se aproximando da cama. Apesar de escuro, ela podia perceber o sorriso de satisfação em seu rosto. O mesmo que seduzira sua irmã. Ele avançou para a cama igual animal a dar o bote em sua presa. Vinha sedento. Sentiu o peso do seu corpo em cima do dela.
Com a mão esquerda, afastou-o para o outro lado da cama enquanto a mão direita, habilidosa, pegava, embaixo do seu travesseiro, um objeto que, iluminando a escuridão daquele quarto, era cravado no peito daquele que roubara a alegria de sua irmã. Sentada em cima dele, ela forçou mais um pouco a faca. Lembrou-se do dia em que sua irmã havia chegado com as roupas rasgadas e, em prantos, lhe contara o que ele fizera a ela. De seus olhos, corriam algumas lágrimas. Suas mãos estavam sujas, mas sua alma lavada. A honra da família havia sido restaurada. Agora, qual pássaro que, capturado, sabe que vai para uma gaiola, ela podia entregar-se.
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