terça-feira, 16 de março de 2010

O CHORO DE PROCNE

Para Nadilza Martins de Barros Moreira



        “Liberdade! Livre!”. Os gritos retumbavam no escuro da noite, enquanto outras vozes pediam que se fizesse silêncio. “Enfim livre!”. Eram palavras que zumbiam em sua cabeça, mas o som não a incomodava. Há tempos que sonhara com esse dia. A partir de agora, preferia esquecer tudo o que passara naquelas frias paredes, entre aqueles corpos exalando suor acre que lhe chegava a corroer as narinas. Não sabia como conseguira suportar aquilo tudo, mas de agora em diante precisaria de mais cautela. As portas não se abriram para ela. Foi preciso forçá-las. O ar da noite lhe revigorava os pulmões que já estavam se acostumando ao ar das paredes frias e mofadas daquela cela pequena, assim como o seu estômago já havia se acostumado à ração diária que lhes serviam e que tinha gosto de azedo. O mesmo gosto que estava impregnado na vida das outras companheiras suas.
        De repente, ouvem-se pios fortes. “Deve ser de alguma coruja”, sussurra uma voz meio ofegante. “Minha Nossa Senhora, valha-me Deus”, diz outra voz, assustada, fazendo o sinal da cruz. Os pios tornam-se mais intensos. “Corre, corre”, grita uma daquelas vozes, enquanto um estampido agudo rasga o negro véu da noite e atinge algo que como uma rosa rodopia no ar, como se fosse uma bailarina que errou o passo em dia de estréia, e cai manchando de vermelho, que escorre de suas pétalas, aquele chão escuro. “Atingimos uma, essa não foge mais”, vibra umas vozes mais fortes que se aproximam esgueirando-se pela não mais silenciosa noite que, arfante, vai cedendo lugar para o novo dia.
        Era um dia de domingo. Ela saiu do quarto e foi até a sala. Verificou se estava tudo trancado. Olhou para a estante e viu a foto da família. Se seu pai estivesse aqui ainda, sua irmã não precisaria ter passado por aquilo. Amanhã, limparia a estante. Era preciso tirar as teias de aranha que iam formando uma espessa camada que escondia o rosto de seu pai. Foi à cozinha e certificou-se se a porta estava aberta, conforme havia combinado. Sua mãe saíra para igreja. Sua irmã também fora. De uns tempos para cá, ela precisava encontrar conforto para a sua alma.
        Hoje seria o dia ideal para tornar concreto aquilo que fora posto em suspenso. Sentou-se em uma das cadeiras da mesa. Partiu um pedaço do bolo de milho, adoçou um pouco de café. Iria lavar o copo, quando olhou para o relógio que estava em cima da geladeira. Faltavam poucos minutos. Apressou-se. Não podia estar na cozinha. Voltou ao quarto. Colocou um pouco de perfume, mas sabia que ele não poderia impedir que exalasse aquele odor que lhe vinha da alma. Passou a mão por sobre a cama. Apalpou o travesseiro. Estava ali tudo aquilo de que ela precisava para aquela noite. Apagou a luz e foi deitar-se. Agora era só esperar mais um pouco. Já sabia o que iria fazer e não sentia nenhum remorso. Era hoje.
        A porta da cozinha soltou um som de instrumento desafinado. Passos seguiam pelo corredor. A maçaneta da porta do seu quarto girou: “– Deixe a luz apagada”, pediu ela com a voz meio embargada. O vulto foi se aproximando da cama. Apesar de escuro, ela podia perceber o sorriso de satisfação em seu rosto. O mesmo que seduzira sua irmã. Ele avançou para a cama igual animal a dar o bote em sua presa. Vinha sedento. Sentiu o peso do seu corpo em cima do dela.
        Com a mão esquerda, afastou-o para o outro lado da cama enquanto a mão direita, habilidosa, pegava, embaixo do seu travesseiro, um objeto que, iluminando a escuridão daquele quarto, era cravado no peito daquele que roubara a alegria de sua irmã. Sentada em cima dele, ela forçou mais um pouco a faca. Lembrou-se do dia em que sua irmã havia chegado com as roupas rasgadas e, em prantos, lhe contara o que ele fizera a ela. De seus olhos, corriam algumas lágrimas. Suas mãos estavam sujas, mas sua alma lavada. A honra da família havia sido restaurada. Agora, qual pássaro que, capturado, sabe que vai para uma gaiola, ela podia entregar-se.

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