terça-feira, 16 de março de 2010

AO HOMEM QUE EU QUIS

Para Tibúrcio Valério de Azevedo, ou, simplesmente, Tinho;

Para Eduardo Manoel de Brito (in memorian), que estava deixando para trás o que precisava ficar para trás.



     Assim como sua avó, sua mãe e suas tias, todas largadas por seus homens, ele, embora não tivesse nascido mulher, havia trazido consigo aquela sina que fizera das mulheres de sua família imaculadas medéias. Ao ver o bilhete deixado no criado-mudo, tivera a certeza de que não havia se desvencilhado daquela singular desdita amorosa que marcara, uma por uma, as mulheres de sua família. O papel trazia um único período (Fui embora e não volto mais, adeus) e ainda recendia ao cheiro amadeirado do perfume que o Outro tanto gostava de usar, que, inúmeras vezes, deixou impregnado em suas carnes e que lhe servira de consolo, quando a saudade vinha só lhe mortificar o peito.
     Olhara novamente o bilhete, a letra miúda, bem desenhada assim como também o era o corpo do seu senhor que cheirava à juventude. Branco, cabelos escuros, olhos castanhos, sorriso maroto, olhar sedutor de cafajeste. Não houve jeito, desde o primeiro olhar, sentira-se fisgado. Aquele garoto apresentara-se diante dele como o seu veneno e o seu remédio, e ele se lhe entregou como quem se entrega ao seu carrasco. Durante meses, ele conheceu, uma por uma, as curvas daquele corpo, as suas reentrâncias mais recônditas, as suas fendas mais íntimas, enquanto o Outro lhe sorvera a tristeza, a solidão, fazendo-o, naquela idade, redescobrir a alegria de estar vivo, de, novamente, ser, ao mesmo tempo, sujeito desejante e objeto de desejo.
      Amassou o bilhete, mas não o jogou fora. Deixou-o no criado mudo e, agora, também surdo: queria ter, ao menos, aquela última lembrança daquele que, assim como os outros, entrara em sua vida sem muito explicar, mas que, ao contrário, se apossou, sorrateiramente, dela como um velho posseiro. Desarmado, ele não teve outra saída senão entregar-se perdidamente. Sentou-se na cama, passou a mão pelo colchão como se cada vinco dele fosse os do corpo do Outro. Não mais poder tocar aquelas carnes rígidas e suaves, cheirando a guardado, não mais sentir-lhe o gosto, não mais poder morder-lhe os mamilos, sussurrar-lhe palavras ao ouvido ou sorver-lhe o grito antes do gozo... Tudo, agora, era mediado por aquele atroz não mais.
      Lembrou-se de quando o conhecera. Era seu aluno. Desde o primeiro dia de aula, sentira-se atraído por aquele jovem calado, recém chegado à universidade. A princípio, quis esconder, como sempre fazia, os seus sentimentos. Cidade interiorana, não queria dar o que falar. Professor ter caso com um aluno renderia muita conversa para aqueles que viam na vida alheia uma forma singular de distração. Percebeu, no entanto, ser correspondido. Entre uma aula e outra, o desejo aumentava. Nas aulas de literatura, parecia que os poemas lidos, os contos ou os romances escolhidos eram cúmplices na concretização daquele desejo gestado entre interditos. Ao término do semestre, ao corrigir a avaliação final, leu uma pequena frase: “Você pode me ligar”. Deixou de lado a caneta e ficou pensativo. Pegou o telefone e, pausadamente, discou cada um dos algarismos como quem joga na certeza de que aqueles eram, de fato, os números da sorte. A voz do outro lado atendeu ao som de um estridente alô. Não precisou identificar-se, o Outro lhe reconheceu. Dali para frente, desde o primeiro, todos os outros encontros eram contados como se fossem anos. Queriam prolongar cada minuto, cada segundo em que estavam juntos. Procuravam viver, em cada vão momento, as delícias que seus corpos sentiam um pelo outro.
      E, agora, de tudo o que vivera, restavam-lhe, apenas, aquelas letras naquele papel amassado. Ao pensar nisso, a sua primeira reação foi chorar, mas as lágrimas não sairiam. Aprendera a sofrer a sua dor resignadamente, principalmente porque chegara a uma idade em que se acostumara ao abandono. Não mais vivia agosto esperando setembros. Aprendera a recomeçar sempre depois de vários abrius despedaçados. Apesar disso, o peito ainda lhe doía a cada nova despedida. Sabia que a relação deles, da maneira repentina que começara, caminhava para acabar. Intuía sempre que cada encontro deixava, sem que pudessem perceber, uma nota silente que, pouco a pouco, ia compondo a sinfonia do adeus a ser ouvida na partida que se fazia, amiúde, iminente.
     Ele começara a perceber que o Outro estava cansando de seus beijos, de seus abraços, de seus amassos, de seu corpo onde não apenas ficaram as marcas de seus dentes, de seus abraços fortes. O Outro não o procurava mais com tanta freqüência. Ele é que tinha de mendigar carinhos, carícias, afetos. O telefone, quando não desligado, estava sempre fora de área. O Outro havia, certamente, descoberto novas rotas ou sentia a necessidade de percorrer outras geografias. E, assim, começara a ferir a ele da maneira mais sutil e dolorosa possível, de forma que, mesmo podendo vir a cicatrizar, a ferida do abandono doía, latejava, sangrava, arranhava qual grão de areia nos olhos. O Outro soubera pisar no seu coração. O amor que o Outro lhe dera já viera, desde o primeiro beijo, com o gosto de adeus. Restava a ele apenas esquecer aquela paixão. “O passado deve servir de alimento apenas para si mesmo. Amanhã será outro dia”, pensou consigo. Enxugou as lágrimas, ajeitou-se na cama e tentou consolar-se, dormindo, ao som de The Blower's Daughter, enquanto o lado direito de sua cama, mais uma vez, voltava a sua serena espera por um novo alguém.

Um comentário:

RALINE disse...

PERFEITOOOOOOOOO!!!!!!!!!