terça-feira, 16 de março de 2010

FELIZ ANIVERSÁRIO

Para Maria Alcione Vieira Diniz



        Faltavam poucos minutos para o encerramento do expediente. Daqui a pouco, o ônibus estaria passando como todo dia. Mas, hoje, não sabia por quê, ela não estava com pressa para chegar à sua casa. Sim, havia a sua filha, que deveria estar saindo da escola também daqui a pouco. Olhou absorta para o relógio, mas parece que o tempo havia, por um instante, retesado os ponteiros. “Mas ela já é quase uma mocinha (Ah, meu Deus! Que ela não passe por minhas agonias) e pode voltar sozinha pra casa; o ônibus pára perto.” Sua mãe não estava com vontade de chegar na hora certa em casa, como fazia todos os dias. Desde a manhã, sentira uma dor aguda que lhe sufocava. Pensou que fosse a pressão que estivesse alta, mas a dor era mais angustiante e ela não sabia a causa.
        Hoje, talvez, pela primeira vez, ela desejou que o seu expediente se prolongasse mais um pouco. Não. Ela queria mesmo que o tempo parasse (havia esquecido que, como disse o poeta, o tempo não pára, não pára não) e apenas ela tivesse consciência disso. Mas se o expediente demorasse mais um pouco, só hoje, apenas hoje, ela se daria por satisfeita. Apesar de não gostar daquele ambiente, ali, pelo menos (e parece que a sua vida era tecida sempre de pelo menos), mantinha a mente ocupada e o coração distraído. Entre um papel e outro, nem percebia que o tempo passava.
        E assim, como a sua vida, o tempo esgarçava-se dia a dia. Mas, só hoje, ela não sabia por quê, a consciência desse fluir ininterrupto do tempo (e de sua vida) estava lhe causando aquela sensação que tinha gosto de morangos mofados. Talvez, por isso, ela quisesse chegar mais tarde à sua casa. Ligaria para lá e pediria à filha que comesse o que quisesse. “Na geladeira, deve haver algum pedaço de queijo e um resto de doce. Essa mistura tinha um gosto de infância”. Ficou triste porque lembrara que a sua infância não havia sido tão doce, pois ela tivera sempre o gosto acre de um limão. Azeda a infância; amarga a vida. Não adiantava ficar ali pensando no que ela nunca faria. Sempre dera meia volta diante de situações que, por mais banais que fossem, estavam a lhe exigir uma ação mais enérgica. Recuava sempre à primeira tentativa de mudança.
        Ela mesma sabia que daqui a poucos minutos pegaria a sua bolsa e correria para o ponto do ônibus. Precisava chegar a sua casa, fazer o jantar e esperar que a filha descansasse um pouco, contasse as novidades da escola e, depois, juntas, fossem resolver os exercícios passados pela professora: “Quem me dera que só hoje não houvesse aqueles exercícios”, pensou ela enquanto, ao mesmo tempo, percebia que hoje, apesar daquela dor aguda que lhe apertara o peito e que lhe fizera companhia até aquele momento, ela não havia se trancado no banheiro e chorado. Sentia-se angustiada, mas sem vontade de chorar. “Quem sabe não seria hoje o tão esperado dia em que receberia a mais que esperada graça?” Tinha muita fé, e a demora da graça pedida a angustiava mais ainda: “Deus pode não querer me ouvir ou deve estar ocupado com pedidos mais urgentes”. Mas, justamente hoje, não era isso que a deixara daquele jeito. Sentia-se agudamente diferente.
        Apesar da aparente alegria, viver, especialmente hoje, estava sendo mais asfixiante. Por isso, o desejo de não chegar cedo em casa, embora não soubesse para onde ir. Parecia que os meridianos e paralelos que davam norte à sua vida haviam desaparecido e só lhe sobrara uma folha em branco sem vestígio de direção alguma. Talvez, fosse à casa de alguma amiga; mas não! Não se sentiria bem na casa de desconhecidos. Apesar de amigos, todos lhe eram desconhecidos. Nenhum deles a entendia, não sabia o quanto viver era angustiante para ela. Por isso, sentia-se incomodada. Se estivesse diante deles, especialmente hoje, iria falar dos mesmos problemas e ouvir os mesmos conselhos. Hoje, especialmente hoje, sentia que estava num caminho perigoso. Logo ela que tinha já traçado o mapa de sua existência, estabelecido longitudes e latitudes, ainda que não tivesse certeza do seu meridiano.
        Viver era perigoso, lera isso em algum livro. Acho que foi em Clarice. Como lhe era difícil ler Clarice! Achou que deveria ir à igreja, poderia melhorar aquela angústia que estava sentindo; mas ela ia sempre à igreja e todo dia pedia ao Senhor (Meu Deus, fazei com que as minhas orações não sejam em vão. Ouvi-me) aquele mesmo presente. Bem que poderia ter ficado casada. Por um instante se arrependeu de ter se separado: “Você é louca?! Era bom continuar casada mesmo, apanhando de seu marido e dormindo fora de casa todas às vezes em que ele aparecia bêbado. Disso, você também não sente falta, hein!?” O arrependimento logo se tornou em alívio quando o seu pensamento foi cortado pelas palavras de sua irmã.
        Mas, depois da separação, sua cama se tornara tão fria! Depois do divórcio, tornara-se tão difícil ... Ou isto já acontecia durante o seu casamento quando o seu corpo só sentia o peso do corpo do seu marido e recendia a álcool. Nunca um afago, um beijo caloroso ou uma pegada de jeito. Não, nunca pôde expressar seus desejos. Estes deveriam ser iguais aos seus choros: pequenos gemidos inaudíveis. Escondia-se. Guardara-se. Fora reprimida. Percebeu, então, o motivo daquela dor que a asfixiava desde a manhã: era o seu aniversário e ela estava só, profundissimamente só. Nesse momento, o ônibus havia parado, ela subiu, mas não sabia se hoje, especialmente hoje, desceria no mesmo ponto.

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