sábado, 20 de março de 2010

O ÚLTIMO ENCONTRO

Para FVMP

     Acordara ao som do telefone. Ainda sonolento, do outro lado da linha, ouviu uma voz que há muito ele resolvera esquecer. “Preciso vê-lo mais uma vez. Por favor, venha logo”, pôde escutar, enquanto o som ia, paulatinamente, tornando-se quase inaudível. Pensou que estivesse ainda dormindo. Pegou o telefone: “– Alô! Alô! Quem é? Isso não são horas de passar um trote. Quem é?”, perguntou meio que irritado.
     Do outro lado, já não era a mesma voz. Por isso, viu-se obrigado a pedir desculpas. Era feminina a voz  que se identificou como sendo atendente do Hospital Regional. Pensou, logo, na mãe ou no irmão com os quais há tempos não falara. Mas não era sobre eles de que se tratava.
     A moça perguntou-lhe se podia comparecer à unidade de terapia intensiva ainda naquela manhã. Havia um paciente que insistia em vê-lo. Era bom que não se demorasse. Ao ouvir o nome que a atendente lhe dissera, vieram-lhe várias lembranças que, há muito, empenhara-se em esquecer. Repassou-lhe os dados que lhe foram pedidos e confirmou que iria ao hospital ainda durante aquela manhã. Não se demoraria. Anotou o número da enfermaria: 227. Procurou vestir-se o mais rápido possível, enquanto telefonava para o serviço de táxi.
     Depois de tantos anos, quando ele pensava que o passado havia sido apagado, a vida, de súbito, lho trazia naquela manhã de dois de agosto, como tristes trastes deixados escondidos em algum canto de uma antiga gaveta de guardados perdida entre as velhas tralhas largadas no sótão da memória. Ele ainda tinha guardado o seu número de telefone. “Por que, nesses anos todos, nunca ligara?”. Era inevitável aquele encontro. Talvez, agora, pudesse ajeitar as coisas que ficaram pendentes e que eles, ao invés do ponto final, resolveram sustentar à base de reticências. “Bem que poderia ser em outro local”, pensou consigo, enquanto penteava o cabelo de frente ao espelho. Desde criança, sentia ojeriza a ambientes hospitalares. O cheiro de morte a percorrer cada um dos corredores o espantava. Sentia-se intimidado. Temia ser uma daquelas pessoas para quem a vida não era mais incerteza alguma.
     “ – Estou cansado”, dissera-lhe. Teve vontade de completar a frase: “Estou cansado de mim, de você, de saber que só liga para mim quando precisa de algo. Enfim, cansei de estar sempre presente para você e receber como recompensa as suas ausências temperadas com o que era pior: a sua indiferença. Estou cansado de ser usado à minha revelia”. Disse-lhe apenas aquela primeira frase, enquanto fechava a porta, deixando de lado um mundo que já era para ter ficado para trás.
     Passaram-se mais de dez anos depois daquela última conversa. A vida foi seguindo seu rumo. Nos primeiros meses, as lembranças batiam ao peito que latejava, mas, depois, cessava: aprendera a curtir a dor da separação, a fazer das recordações acalanto para uma dor que, pouco a pouco, foi deixando de doer, que perdera a sua razão de ser. Os anos vieram e, só uma vez ou outra, é que lhe vinham à memória o nome, a lembrança do sentimento acalentado, mas as imagens não eram tão mais nítidas como antes. Embaçara-se algo. Vago, fluido, tudo parecia ser, agora, a paisagem de um quadro impressionista.
     “– Por que você está ao meu lado, se todos, inclusive você mesmo, dizem que eu não presto?”, foi a frase que lhe veio à memória, enquanto, já no táxi, dirigia-se a caminho do hospital.
     Aquela pergunta, durante o jantar na casa dele, quando ainda podiam sorver da companhia um do outro, continuava a reverberar em sua cabeça. Feita assim, de chofre, ela havia-lhe desconcertado, deixando-o sem resposta alguma. Mas, renitente, a pergunta persistia, como a resistir ao esquecimento, e exigia-lhe uma resposta que creio ainda ele não ter, mesmo depois de passados tantos anos. Veio-lhe à mente ter sido aquela uma das poucas vezes em que o Outro o deixara sem resposta. Ainda assim, depois de muito pensar, ao longo desse tempo todo em que nem mais se lembrava da imagem daquele que, agora, agonizava, embora a imagem dele já estivesse há muito corroída pelo tempo, pelo esquecimento necessário, aquela pergunta manteve-se viva; incólume, ela resistia qual enigma semelhante ao da esfinge, a esperar seu Édipo.
     Das vezes em que se detivera sobre o que lhe fora perguntado naquele dia, ele, não encontrando resposta, pensava que poderia ter dito, simplesmente, que vivia ao seu lado porque gostava dele. Sim, gostava de uma forma que, ainda hoje, não sabia explicar. Apenas, sentia-se bem ao lado daquele de quem, em tempos outros, gostava com uma intensidade muito maior do que naquele tempo em que lhe fora feita aquela pergunta: “– Por que você vive ao meu lado, se eu não presto?”. “Ah, se fosse fácil, desfazer-se de quem gostamos!”, suspirou com tal intensidade que o motorista do táxi perguntou se ele estava bem.
     Lembrou-se das muitas palavras que, em noites de mais aguda tristeza, escrevera e que, mesmo reveladas, passaram indiferentes ao Outro: “Tornei-me a noite, enquanto você tornou-se-me o orvalho, negro orvalho, por que passei a ansiar, apesar. De tanto amá-lo, não só ofereci o que eu era, como também tentei oferecer o que eu não era e, talvez, o que eu nem chegasse a ser. Agi da forma que só aos loucos é dado a entender. Por isso, não me preocupei que me entendesse, apenas queria ser amado na mesma proporção em que eu amava.
     Agora, em que a vida lhe chamava para aquela prestação de contas, ele tinha a certeza de que, naquela época, dia a dia, afundava-se, cada vez mais, em suas próprias projeções. As cartas escritas, os bilhetes enviados, as músicas ouvidas, os cheiros sentidos, as lembranças guardadas, tudo fora parte de uma só lancinante sinfonia: a dor de quem não podia ter a quem elegera como o escolhido.
     Agora, não mais temia deparar-se com o passado. Era preciso ajustar as contas, resolver aquilo que fora deixado olvidado, arrastado, por muito tempo, como uma ferida que, fechada, nunca cicatrizara de vez. O tempo de sofrer já passara. Ainda, assim, o perdido lhe deixava confundido, porque não mais lhe doía, como antes, mas lhe deixava a saudade das coisas findas, amigável fantasma com quem somos obrigados a aprender a conviver.
     “Houve um tempo em que aquele meu gostar se conjugava como amar. Eu amava inclusive tudo o que doía em você porque era o que também doía em mim. Mas o meu não era o amor liquefeito a que você estava acostumado a dar e a receber. O risco era inevitável em um bordado cujo centro eu queria que fosse só você. Paguei o preço, mas não sei se recebi o troco merecido. Também não o quero mais saber. Hoje, bordado não mais há; ficou-me apenas o risco. Houve um tempo em que os sentimentos gestados não mais se ouvem. E por me ter feito sofrer, mais e mais eu aprendi a amá-lo. Tanto que, àquela época, só podia ver em você virtudes, mas vício nenhum”.
     “Foi-se o tempo em que você fazia-me falta. Você tornou-se apenas um corpo que agora se despede da vida”, ressentido, pensou em dizer aquelas palavras, mas não havia mais tempo para ressentimentos e também não era isso que ele queria dizer. A hora da despedida também era a hora para o encontro. Estava ali para dizer ao Outro que já podia partir tranqüilo. E, o que mais lhe queria falar, porém, é que guardaria sempre as lembranças daqueles dias anteriores à separação, das conversas que, hoje, tinham cheiro e gosto de jogado fora, mas que, ainda, resistiam ao tempo e à distância, como o cheiro suave de um perfume a preencher, em vão, as faltas de que e para as quais somos feitos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa como adoro o Marcelo como escritor e como pessoa !!! Priscila Marques