terça-feira, 16 de março de 2010

“LOVE THAT DARE NOT SPEAK IT’S NAME”

Para Israel (ou Samuel) Bilro




        Chovia e ele estava sem sono. Levantou-se da cama e foi para a cozinha preparar um bom chá que pudesse esquentar-lhe a alma e preparar o corpo para sucumbir aos encantos de Morfeu. Sabia, no entanto, que apenas o chá seria insuficiente. Por isso, resolveu ir à biblioteca que ocupava um dos maiores vãos de sua casa. Ali, realizara seu sonho de criança: ter para si o que de melhor havia sido escrito em prosa e verso. Cada livro, adquirido com o gosto que deve sentir uma criança que espera o outro dia para ver o que Papai Noel havia deixado na velha e surrada meia, era uma pedaço do filho que nunca tivera. Alguns daqueles livros, já lera mais de uma vez; outros estavam ali porque eram exemplares raros, não podiam faltar em uma boa biblioteca.
        Qual livro escolher, enquanto Morfeu estava preocupado em buscar Eurídice e, por isso, hoje, especialmente hoje, se atrasaria? Poderia escolher um de poesias. Gostava tanto de Bandeira, Cabral, Espanca, Pessoa. Ah, como se emocionara ao ler a história de Maria das águas! Meu querido Lúcio Lins, partiste; mas nos deixaste suaves, embora às vezes torrenciais, palavras em versos líquidos, cálice para quem quer um antídoto para a angústia de existir. Sentia uma inexplicável atração por aquele poema. Talvez porque lhe trouxesse lembranças de sua terra. Talvez porque falasse um pouco de si. Quando a gente envelhece, cada taça de vinho traz em si uma cereja de nostalgia. Sem se decidir, resolveu contemplar todos aqueles exemplares. Toda a sua vida fora devotada a eles que eram bem mais do simples livros. Eram um pedaço de si, de sua história. Sorveu mais um pouco do chá e olhou em direção a um dos poucos armários. Há muito tempo que não reparava no que ele continha. Sentiu uma vontade de abrir e, como uma criança que se diverte com a sua caixa de brinquedos, resolveu brincar com aqueles livros que estavam guardados naquele armário e que, se não me engano, eram do tempo da faculdade.
        Ah, tempo bom marcado pela euforia de ter passado no primeiro vestibular e deparar-se com um mundo novo a sua frente! Que surpresa a sua ao ver ainda guardadas velhas xérox de textos ainda da faculdade. È tão difícil desfazer-se de coisas velhas, de velhos trastes. Continuou vasculhando aquele monte de papel que Clara, a sua velha empregada, havia tão bem arrumado no armário. Entre uma folha e outra, entre uma pasta e outra, deparou-se com um envelope amarelo. Abriu-o, era um livro. A princípio, não sabia por que aquele livro estava ali. Mas ao ver uma foto rota foi, aos poucos, se lembrando. Enquanto folheava as memórias de Adriano, o livro guardado no velho envelope amarelo, eram as suas próprias memórias que vinham sendo passadas página por página, letra por letra.
        Conheceram-se de forma inusitada. Mesma idade, mesmo curso. Embora fossem de signos diferentes, leão e sagitário, eram ligados pelo mesmo elemento: fogo. Além disso, uma outra paixão os unia: a literatura. Adoravam Clarice. Essa paixão os levara a combinar se conhecer e passar a ler textos dela. Até então, entre si havia apenas palavras trocadas na frente do computador, e-mails enviados ou conversas efêmeras pelo messenger. A sugestão foi acatada, e se encontrariam na própria universidade.
        Então, ele vivera a esperança de um só dia poderem se encontrar. A partir daí, era constante a ansiedade por esse dia. Na frente do computador, esperava uma nova mensagem, um simples recado por menor que fosse, mas que dissesse: “Pronto, amanhã ou tal dia, nos encontraremos e leremos esse texto de Clarice”. Ele mesmo já havia pensado em alguns contos. Que tal começar por Onde estiveste ontem de noite? Ou então, Amor? Esse não, seria melhor O búfalo. Enquanto pensava nos contos, em como seriam os encontros, aguardava a resposta. Esta demorava a vir; não adiantava olhar o e-mail. No menssenger, só aparecia off-line.
        Então, encheu-se de coragem. Foi à universidade. Quem sabe, por acaso, e o acaso sempre urde os fios do destino (ou os corta de vez?), não o encontraria lá? Mas o que iria dizer? Mesmo assim foi, esperou um pouco, vagou pelos corredores e nada. Era melhor mesmo estar em casa, na frente do computador. Este oráculo de fios e sem pitonisa alguma. Talvez, tivesse aparecido e deixado algum recado. E assim, na esperança de um só dia, voltou para casa. Mas não havia recado, tampouco mensagem alguma. Apenas o sinal de off-line. Nem ao menos um ocupado ou volto logo que lhe pudesse alimentar a esperança de um retorno breve, a mesma que alimentou Penélope a tecer e destecer enquanto o seu Ulisses resistia aos encantos de belas nereidas.
        Paciência, Frederico, paciência. Se ainda não apareceu é porque deve estar ocupado. Afinal, é final de semestre. Ou você pensa que todo mundo é igual a você, que se devota aos livros, aos trabalhos, que se esquece de viver para só estudar? Mas não pôde agüentar; então, deixou um recado. E aí aumentou mais a sua ansiedade. Será que leu o meu recado? Se leu, por que não o respondeu ainda? E assim, na esperança de só mais um dia, continuava acessando o seu e-mail, conectando-se no messenger. E nada.
        Entre eles, perdurara um silêncio que só a poucos é dado significar. Sem querer compreender isso, ele, no entanto, teve de entregar-se. Afinal, pertenciam ambos, cada um a seu modo, a uma legião estrangeira. E, por isso, preferiram, sem dizer uma só palavra, manterem-se à distância. Durante alguns dias, ainda alimentou a esperança de um só dia; mas, passados outros tantos dias, aquela esperança de um só dia precisou de meses e anos. Desse tempo, marcado por esperança que se vestia de frustração, restara apenas aquela foto que guardara naquele livro que lhe era muito especial. Afinal, estava lendo-o quando se conheceram. Depois de muito tempo, entre uma espera e uma esperança de um dia só, um dia, se encontrarem, compreendeu que ele estava tentando achar a maçã no escuro para ver se conseguia tocar no lustre e, assim, pensar, ou se iludir na esperança de que chegou à descoberta do mundo sem ter de passar por uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, antes que chegasse a hora da estrela. 
        Como lembrança desse caminho das pedras, restara apenas aquela foto, marco de um mapa que levava a algum tesouro que ele desconhecia, mas que, ainda, depois de tantos anos, ansiava por encontrar, na esperança de que, assim, pudesse provar um pouco do cálice da água viva. E assim, perdido em pensamentos, ele nem se apercebera que o dia já havia começado a raiar, e ele nem dormira. Não havia problema, perdera o sonho, mas sentira que chegara bem perto do coração selvagem da vida. Guardou o livro no armário, fechou a porta da biblioteca, enquanto lhe vinham à mente os versos de Drummond: as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficam.

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