Para Juan Monteiro
Naquele dia, Marcel estava completando anos. Precisava registrar aquela data. Todo esse tempo já havia passado! E o que havia feito? De uns tempos para cá, essa pergunta se repetia com muito mais freqüência, embora a resposta fosse uma única: Nada. Não sabia se era coisa da idade, mas ele não conseguia lembrar-se de algo. Amores, talvez? Mas não os teve, apenas paixões frívolas, simples impulsos que procuravam agradar aos desejos da carne. Com o tempo, aprendera a ser o ponto de partida e de chegada de seus próprios desejos. O que fez da vida? O que ela havia feito dele?! Não sei. Talvez nada. E o nada tornara-se um de seus companheiros inseparáveis. Responder àquelas perguntas deixara de ser uma de suas preocupações. Restavam-lhe alguns... apenas um pouco lampejo de vida, último fragmento de uma existência marcada pela dor de existir. Cada dia, viver era uma certeza que se esvaia como a água por entre as mãos. Aproveitá-lo? Saberá? Talvez. Mas como, se não sai daquela cadeira? Há muito que se acha preso àquela madeira da qual a vida brotara para ser ceifada e se transformar naquela prisão de grades invisíveis.
Sentia-se só. Apenas ele e as suas recordações. Era assim que naquele tempo ele se sentia e eu me sinto hoje. Ele e eu, dois lados de uma mesma existência, de um mesmo pilar de tédio que o levava até mim e que me levava até ele. Desculpem-me. Deixem-me primeiro dizer quem sou. Serei breve, afinal cheguei a um momento em que tudo se me afigura como breve. Sou apenas um velho que estava se lembrando do passado onde repousam, quase inertes, poucas lembranças embaçadas. Marcel, antes que vocês me perguntem, era um senhor que conheci quando jovem. Era agosto de mil novecentos e ... e... Desculpem-me mais uma vez, nunca consegui lembrar-me de datas e mais agora nessa idade. Deixemos de conversas, as datas não têm importância. Deixemo-las, e desde já peço desculpas, para meus amigos historiadores ou arqueólogos que precisam deixar as coisas registradas ou vivem em busca dos registros das coisas, ainda que isso lhe seja uma das mais inefáveis atividades. A mim, basta-me ter os registros do tempo escorrendo nas acentuadas vias de meu rosto que se estendem para outras partes de meu corpo, chegando a interditar algumas delas.
Lembro-me de que naquela época eu tinha de sair e não tinha com quem deixar as chaves de casa. Mamãe saíra e, na pressa, não levara as chaves dela. Fui, então, ao apartamento do Marcel, perguntar-lhe se ele poderia ficar com as chaves e dá-las à minha mãe, quando ela voltasse. Ele atendeu-me bem, prontificou-se a entregar as chaves. Agradeci e pude perceber que seus olhos escondiam certo mistério. Pareciam olhos de santos roubados de igreja, relíquias perdidas na mão de um único colecionador. Sempre fui atraído por olhos. Furtivamente, eles guardam uma pequena diferença e escondem segredos que a nós não é dado conhecer. Tal qual esfinge, estão a todo tempo a sussurrar: decifrem-nos ou nós o devoramos.
Voltei mais uma vez ao apartamento dele. Dessa vez, eu tinha sido convidado para um almoço. Ele estava aniversariando e cansara de comemorar aquela data sempre só. Mandara convidar mamãe e a mim. Mamãe não pôde ir, estava viajando. Desde que meu pai morrera, ela assumira os negócios da família. Vivia mais viajando do que em casa. Eu procurava entendê-la. Eu havia aceitado o convite do almoço muito mais em retribuição à gentileza que dias antes Marcel nos fizera. Seu apartamento era um dos maiores daquele prédio. Havia poucos móveis, mas muitos livros. Diante de meu espanto, ele foi dizendo que os livros eram o seu mundo, uma parte do universo se escondia em cada um deles. Pediu-me que se sentasse à mesa. Depois do almoço, por educação, resolvi ficar mais um pouco. Ele ofereceu-me café. Entre uma xícara e outra, fiquei sabendo que ele morava sozinho. Não chegara a se casar ou tivera filho algum. Fora professor. Mostrou-me algumas fotos. Em todas elas, ele demonstrava o mesmo semblante sério. Parecia não ser afeito a muita gente. Os poucos amigos que tinha ou morreram ou estavam senis demais. Marcel tinha a misantropia de um Policarpo, mas não os seus sonhos.
Toda aquela seriedade escondia a profunda solidão da qual fora escravo por muito tempo. Ele confessou-me que havia nascido no tempo errado. Achava-se perdido nesse mundo. Um ser que não encontrou a conexão certa com a realidade de seu tempo. Estava velho e já era tarde demais para empreender alguma tentativa de mudança. Na sua idade, buscar recuperar o tempo perdido era muito arriscado, principalmente porque, disse-me, parecendo o Marquês de Maricá, que o tempo perdido não se recupera, apenas se lamenta. Passado tanto tempo, eu retifico a sua frase, dizendo que nunca é tarde demais para se lamentar...
Da próxima vez, procurarei ver a vida através dos olhos de uma criança. Elas, realmente, conseguem enxergar o que para nós fica embaçado. Elas penetram na corrente da realidade e conseguem ir mais adiante. É uma pena que quando vão crescendo deixem que a sua alma seja acometida de miopia. Da próxima vez, procurarei viver mais. Tentarei aprender a viver como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta. Sempre olhando para frente e pedalando. Na vida nunca olhei para frente. Vivi em função do deixei para trás.
Não voltei mais a ver o Marcel. Tivemos de nos mudar de lá. Mamãe recebera uma proposta de trabalho em outra cidade. Tempos depois, eu recebi em casa uma encomenda pelos correios. Eram alguns livros que o Marcel havia deixado para mim e pedido que me entregassem quando ele morresse. Havia entre os livros uma pequena carta de despedida. Nela ele dizia que temos apenas uns falsos, mas verdadeiros, amigos, aos quais ele chamava livros. Foram eles que acompanharam o Marcel e me acompanharam também. Às vezes, afastaram de mim a solidão; outras vezes, deixaram-na tão mais próxima. Sempre acreditei que, enquanto estivesse lendo um livro, ele afastaria de mim a morte. Hoje acabei de ler mais um. Lá fora toca uma vaga música, a lua muda de fase. À meia noite, completo mais um ano. Estou só. Sempre fui só. Ela está chegando, posso ouvir seus passos. Lá fora o vento bate nos galhos secos da árvore. É OUTONO.
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