terça-feira, 16 de março de 2010

NA PLATAFORMA

Para Saulo de Tasso

        Ele sempre detestava quando chegava à plataforma e não encontrava o ônibus ali, esperando os passageiros. Não gostava de ficar parado ao lado daquelas pessoas desconhecidas ou ter de dizer um não ríspido àquele pedinte que sempre interpelava com aquele olhar de piedade todos os passageiros antes de embarcarem. Também não lhe agradava ficar andando para lá e para cá, num vai-e-vem interminável, igual ao pêndulo de antigos relógios de parede. Ele se sentia assim: um velho relógio de parede sem parede. Às vezes, olhava para cima e sua aversão aumentava. Aquela rodoviária era horrível! O grude presente há tanto tempo nas latas de lixo não só tornava invisível a cor daqueles depósitos como lhe causava nojo. “E esse desgraçado do ônibus que não vem?!”, pensava enquanto fingia uma conversa com alguém pelo celular sem crédito. Sempre fazia isso toda vez que sentia vontade de romper o silêncio em ambientes onde se sentia estranho ou a que era avesso. Começou a aumentar o fluxo de passageiros passando nas catracas e entregando, num gesto mecânico, as passagens aos funcionários do terminal para que retirassem o bilhete da taxa de embarque. Afinal, faltam dez minutos para a hora prevista da viagem. E o ônibus ainda não estava na plataforma! E ele tinha pressa em chegar. Não sabia o porquê, mas queria sair dali. O ar pesado, o sol quente e o próprio ambiente daquela cidade, apesar das muitas árvores existentes, o sufocavam.
        Queria estar em casa, tomar um banho, comer um pouco e cair na solidão de seu quarto. Mas o ônibus teimava em não aparecer. Os passageiros iam se aproximando mais da plataforma e já começava a se formar uma pequena fila. Todos rostos estranhos para ele, que, cabisbaixo, olhava para o relógio. Ao levantar a cabeça e olhar em direção ao local para onde o ônibus já deveria ter aparecido, seu olhar cruzou-se com um outro. Sentiu um velho estalo que sempre aparecia quando se interessava por alguém. Aquele rosto havia lhe chamado a atenção. O seu dono tinha um misto de candura e doçura. Os hormônios presentes em seu rosto demonstravam que era novo. Deveria ter entre 17 a 20 anos. Isso o fez lembrar uma frase de Nelson Gonçalves: toda mulher deveria amar um jovem de 17 anos. Mas ele era um homem e será que poderia...? Não deu tempo de completar a pergunta tampouco achar uma resposta, pois percebera (Ou será que foi imaginação sua?) que o Outro havia percebido, num instante fugaz, que lhe despertara algum interesse: os olhos se entendem; os corpos se desejam.
        Absorto naquele curto momento em que olhares jogados ao acaso se encontram, nem percebera que o ônibus tinha chegado à plataforma. Só se deu conta quando o não mais tão esperado ônibus fez um barulho ao parar, o qual fez com que ele saísse daquele estado de alumbramento. Será que o Outro o havia notado mesmo? Não teria coragem de se aproximar. Se tivesse, pelo menos, um cartão com seu nome e telefone poderia tentar, discretamente, entregar. Mas isso lhe era impossível: faltavam-lhe o cartão e a coragem. Entregou a passagem ao motorista que olhou para ele e para a foto na carteira de estudante e, bruscamente, devolveu-lhe a passagem. Subiu. Sua poltrona era a 16. Detestava quando ficava no corredor. Preferia sempre as poltronas na janela, assim evitava ser tocado por passageiros ou pelo vendedor de comida (Olha o lanche, cachorro-quente e refrigerante – detestava aquele pregão de barítono desafinado), e, assim, distraía-se olhando, através do vidro da janela, a mesma paisagem que, de semana a semana, não sofria nenhuma alteração: em umas partes, havia cenários para quadros à Di Cavalcanti; em outros, Monet ou Picasso poderiam pintar lindos girassóis ou crepúsculos em plantio de trigo. Mas não havia trigo ali, apenas canas-de-açúcar que deveriam ficar muito bem num Monet. Apesar disso, ele não sentia nada diante deste cenário, preferia manter o olhar lançado ao acaso. Assim, não percebia o tempo passar e, quando se dava conta, já estava chegando à rodoviária de sua cidade. Sentia um alívio ao pisar em solo conhecido.
        – Parece que vamos ficar juntos. “Ficar ou sentar?” Não entendeu qual dos dois verbos ouviu, mas aquela voz cortou-lhe os pensamentos. Assustou-se: era o rapaz que vira lá embaixo na plataforma. Ia se levantando quando foi interrompido: – Desculpe-me, a minha poltrona não é a 17. É a 20. Aquela sensação de euforia evolou-se. E ele, que, naquele ínterim, já tinha imaginado duas mãos se encontrando no escuro do ônibus, teve de voltar à sua fria poltrona. Mas sentia que aquela aproximação não havia sido aleatória. Lembrou-se do seu celular, mas estava sem crédito. Não importava, fingiu que estava ligando para uma amiga: – Olá, Nicole, tudo bem? Exato, sou eu mesmo. Sei. Sei. Mas é que me levaram o meu antigo aparelho. Sim, fui roubado. Não, não, estou bem. Não se preocupe. Estou ligando para lhe passar o meu novo número. Anote aí: 468954. Foi dizendo cada algarismo pausadamente. Será que o Outro tinha se interessado e anotado? Acho que não. Fora tudo fruto de sua imaginação?!. Um solitário é sempre um quixote sem seu sancho pança. Mas era preciso esperar e foi o caminho todo pensando nisso. Dessa vez, parece que o ônibus chegara mais rápido. Preferiu descer logo e não quis olhar para o Outro. Queria acreditar que aquela não teria sido a última vez, que haveria uma outra em que não apenas olhares se encontrariam. Eram oito da noite, pegou um táxi. Queria chegar logo em casa. Amanhã, quem sabe, poderia ser um outro dia, e sua história poderia ter um novo personagem. Ou esta seria mais uma página no seu grande livro de coisas passadas e fechadas pelo álgido cadeado do esquecimento? Ah, Drummond, as coisas findas, muito mais que lindas, ficarão mesmo? Percebeu que o taxista baixou o som do carro e pegou o celular, mas não era o dele que tocava. Era o seu. Pensou que fosse Nicole, mas a voz do outro lado não era a dela.

Nenhum comentário: