terça-feira, 16 de março de 2010

O ÚLTIMO PÔR-DO-SOL

Para Diego Mentor de Andrade Galvão



        Saíra apressado de casa. Brigara com a filha. Como não pensara em um lugar qualquer onde pudesse passar o tempo e pensar um pouco sobre o que acontecera, havia resolvido ir até o parque. Lá refletiria melhor na vida e talvez resolvesse voltar a sua casa. Enquanto caminhava para aquele lugar onde, apesar de toda a poluição e do barulho de carros, a vida na cidade com todas as suas seduções ficava em suspenso; ele ia, no meio do caminho, sentindo saudade do tempo em que era jovem, mas o que lhe vinha à mente eram, sobretudo, as lembranças dos finais da tarde dos sábados e domingos, quando vinha com os amigos jogar naquele parque. Depois da partida de futebol, todos iam tomar um refresco na barraquinha de seu Manuel que ficava na esquina onde hoje está um suntuoso prédio comercial.
        Não entendia como aquele parque conseguira resistir às sanhas dos empresários, mas se sentia feliz por poder tê-lo ali. Mesmo depois de passado muito tempo e das raras visitas, o parque mantinha-se semelhante ao de sua juventude: a mesma pista onde, entre uma volta e outra, ele conheceu a sua esposa; as mesmas árvores, o antigo gramado verde sobre o qual foram tecidas muitas juras de amor e muitos planos feitos sem saber que seriam esgarçados pelo destino. Parou um pouco. A lembrança da esposa, morta recentemente, trouxe uma dor aguda ao peito. Respirou fundo. A imagem da esposa, embora muito amada, estava se tornando meio embaçada, como uma fotografia que, evitando sucumbir às investidas do tempo, procurava resistir, deixar-se presente na folha amarelada do papel da memória. Apesar de o passado servir-lhe de alento, precisava pensar no presente. Restavam-lhe apenas a filha e os dois netos: “Essa é a minha família”, pensou amargamente enquanto se sentava em um daqueles bancos donde podia ter uma ampla visão de todo o parque. Isso apertou mais ainda o seu velho coração saudoso. Permaneceu observando as velhas árvores que, imponentes, olhavam indiferentes para as pessoas que ali estavam sentadas, correndo ou simplesmente vendo a vida passar como um suave e rápido aceno de Zéfiro.
        Sentado ao lado da fonte (que bom que ela está ainda aqui!), ele viu um pai levando a filha para jogar comida aos pássaros que, servilmente, vinham atrás do que as débeis mãos infantis espalhavam, entre risos, pelo ar e contemplavam cair no chão. Essa cena (por que, meu Deus, velho só lembra do que se passou?) trouxe-lhe lembranças do tempo em que a pequena Marta o esperava chegar do trabalho para cobri-lo de beijos e abraços, provocando ciúmes na mãe. Ah, a menina de ouro havia crescido e ele envelhecido! Com o tempo, os afetos foram minando até não deixarem mais rastro nenhum. Sentiu mais ainda aquela dor lhe apertar o peito cansado, saudoso.Era uma dor lancinante diante da certeza de que o passado só podia retornar como lembrança. Essa era uma tecido cujos fios, esgarçados pelo tempo, eram difíceis de reunir.     Lembrar era como estar dentro de um oráculo inativo. Não havia mais esperanças de futuro, só o medo de que aquilo que tanto significou não signifique mais nada. Por isso, embora lhe doesse o peito, ele não queria deixar de pensar nas sobras do que não fica, naquilo que fica do que não sobra. Olhou para o relógio e viu que já era tarde. Mas resolveu ficar mais um pouco. Talvez o seu atraso deixasse a filha preocupada e isso seria a demonstração de que a sua menina ainda se importava com ele. Mesmo assim, estava decidido a não mais morar com ela. Daria um tempo. Os netos estavam na fase em que era preciso tomar às redes. Os meninos eram arredios, assim como sua filha se tornara. Procurava entender a situação dela. Não era fácil para ela se desdobrar horas a fio para manter a casa depois que o marido a havia deixado. Diante desse golpe, sua filha se fechara mais, embrutecera seu coração, devotara-se ao trabalho como se este fosse uma religião. Ele sabia que não estava sendo fácil para ela o divórcio. Os risos da vizinhança, os cochichos dos colegas de trabalho.
        As horas iam-se passando, mas ele não estava apressado para sair daquele lugar. Queria adiar mais um pouco a chegada à casa da filha. Era com muita mágoa, não sabe ao certo se por ter de ter aquela conversa com a filha ou se por estar vendo o que ela se tornara, uma mulher seca, amarga, que ele iria comunicar a ela que estaria indo morar em uma dessas casas de apoio a idosos. Conhecia alguns amigos de infância que preferiram esses lugares para passarem o resto de vida que lhes sobrava. Mas antes queria ver o pôr-do-sol. Dali onde estava, era tão bonito ver o sol morrer para logo mais dar lugar à noite. Além do mais, o vento ali era tão suave que lhe lembrava os ventos do tempo de criança. Preferiu demorar-se mais um pouco naquele banco.
        – Alô, dona Marta, é do Hospital do Coração. Estamos ligando para avisar que seu pai sofreu um enfarto e está sendo encaminhado para a mesa de cirurgia.

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