O navio estava zarpando, embora fossem mudos os barulhos da partida. Aos poucos, o cais onde ela deixou a sua vida ia ficando, cada vez mais, invisível, distante. “O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio...”. Intuía que, de agora em diante, tudo seria diferente. Sabia que essa sua outra vida deveria ser esquecida, qual retrato esgarçado pela ação do tempo. Se pudesse, talvez, fizesse o caminho de volta a nado; mas não queria, não sabia nadar e preferia deixar-se ser guiada pelo navio. Ali, encontrara a segurança que não havia em terra, embora rumasse para o ignoto. Estava inebriada com aquela sensação de se sentir perdida. “Perder-se é um achar-se perigoso”, pensou. Arrepiou-se... ao tocar no navio. Era frio. Pôs a mão no peito, aliviou-se ao sentir o seu coração batendo.
Ela, cuja vida fora sempre na vertical, podia vislumbrar na noite esvaecendo um horizonte que lhe apontava novas esperanças. Sentia-se feliz. Pela primeira vez, era ela que tinha escolhido o seu roteiro. Pela primeira vez, estava viajando sozinha. Havia deixado a casa, o marido, os filhos, as empregadas. Ela precisava daquela viagem que lhe provocaria uma desorganização profunda. Se sua mãe fosse viva, ela a chamaria de louca. “Como você pode largar tudo, viajar sozinha? Isso é um disparate”. “Estou à procura. Estou tentando entender”, responderia. “Mas procurando o que, tentando entender o quê?”, retrucaria a mãe morta. “Eu não sei, por isso estou partindo, dizendo adeus. Preciso saber. Apenas sei que não quero ficar com o que vivi até agora”, argumentaria ela entre confusa e desejosa de entregar-se ao que sequer lhe fora esboçado ainda.
Sentia-se atraída pelo que lhe se afigurava como novo e que ela mesma não entendia. A sensação de permanecer perdida não lhe provocava medo, impulsionava para adiante, mesmo que esse adiante fosse a beira de um abismo. Sentir-se livre desse cenário e longe daqueles personagens era a seiva de que ela naquele momento precisava. Ela estava só, como sempre fora. Abandonada, perdida e feliz. Sentia-se perto do selvagem coração da vida. E isso era o bálsamo que lhe refrescava a alma.
As nuvens iam tornando-se menos carregadas à medida que iam sendo dissipadas pelos raios do sol que despontava mais à frente. Em breve chegaria ao porto. Ouviu o apito do navio que, ao contrário da partida, não era mais inaudível. Estridente, o barulho a assustou.
– Que foi, querida? Não se espante. Coloquei o café no fogo, falou-lhe o esposo enquanto ajeitava o nó da gravata olhando-se no espelho. Hoje, você dormiu demais. Estou atrasado para o trabalho e não tomei meu café porque não há nada pronto. Veja se amanhã não dorme tanto, disse o marido beijando a testa da esposa, sem perceber que ela, com a ponta do lençol, enxugava uma lágrima que, em seu rosto, anunciava o seu destino de mulher. Ela revirou-se na cama, deu as costas ao marido e fechou os olhos. Não havia chegado ao porto. Estava ainda no cais. Sua viagem ainda teria de esperar.
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