terça-feira, 16 de março de 2010

PAI, UM CACETE

Para Marcelo Medeiros




        Se a senhora... Já deve saber o que aconteceu. Não se preocupe comigo. A senhora sabe que eu já aprendi a me virar. Desejo que de agora em diante possa viver mais feliz. Se é que, depois de tantos anos de sofrimento, a senhora ainda sabe o que é felicidade. Mas ainda há tempo para tentar arriscar-se. Pena que eu não poderei mais estar ao seu lado, mas sempre que puder escreverei. Claro que não posso enviar o endereço. Vai que uma de minhas cartas caia nas mãos ... Não se preocupem que eu não deixei rastros. Sei como me esquivar e não vão me pegar, a menos que eu me canse e queira me entregar. 
        Não me arrependo do que fiz. Não se espante! Queria poder lhe dizer a satisfação com que eu dei cabo dele. Era como se eu estivesse provando por algo há muito esperado. “O pai que não tive/ hoje ainda seria moço? /O que dele em mim sobrevive/ Guarda a forma de um esboço?”. Queria poupar-lhe dos detalhes, mas sinto uma necessidade de dizer como foi que fiz este que considero um ato heróico. Sei que desrespeitei um dos mandamentos divinos, mas não sou Jesus Cristo para apanhar e dar a outra face. “O pai que nunca vi/ Será que o encontro? /Severo, louco, fora de si/ ou apoiado em meu ombro?” Sou humano, e paciência tem limites. Não dava mais para agüentar tantas humilhações, além dos hematomas deixados em mim e na senhora. Nunca agradeci tanto por ter crescido rápido. “Do pai que não tive,/ dizem, herdei o rosto. /O que dele em mim vive/ é signo póstumo ou oposto?”. Meus braços que antes se uniam para protegerem o meu rosto dos afagos do cinto dele haviam se tornado fortes, e eu pude partir em posição de ataque e não ficar apenas na retaguarda, sem defesa. “O pai que desejei/ num colóquio abstrato/ respondeu-me: ‘Nada sei’/ Exilou-se em seu retrato”.
        Como lhe disse, queria poupar-lhe dos detalhes daquela noite, mas não consigo. Sim, era de noite. Aproveitei que a senhora tinha ido à igreja. Depois de tantos anos de sofrimento, humilhação, entendo por que a senhora foi buscar na igreja conforto para um corpo já cansado, marcado pelo tempo e pelas mãos dele. Aproveitei também que ele, como sempre, estava bêbado. Eu estava na sala, a televisão ligada, quando ele chegou gritando e batendo no portão. Espantei-me e fui depressa abrir. Ele vinha trazendo consigo aquele cheiro nauseabundo de cachaça que nos queimava as narinas. A voz dele, quase inaudível e que só emitia grunhidos, despertou-me um ódio há muito alimentado. Se pudesse, daria cabo dele ali mesmo. Acalmei-me e o segui. 
        Como sempre, ele seguiu para o fogão buscando comida. Sentou-se à mesa e, como um animal, começou a devorar o que havia colocado no prato. Não se preocupava se eu tinha deixado de comprar os passes escolares para poder comprar o que ele estava mais desperdiçando, ao espalhar a comida na mesa e derramá-la no chão, do que propriamente comendo. Ele também não queria saber quantas peças de roupa era preciso a senhora lavar para ele vir desfrutar daquela comida que ele dizia estar insossa ou com gosto de azedo. Ele não sabia agradecer, apenas exigir. Queria roupas limpas, lavadas, as brancas, com anil e imersas em goma, passadas a ferro sem um vinco sequer. Ainda queria mais, carne de sol e feijão verde todo domingo. Ele que nem sequer comprava um ovo para dentro de casa, mas devorava a comida que encontrava sobre o fogão, ainda que eu ou a senhora não tivéssemos comido. 
        Pois bem, aproveitei aquela noite e esperei que, depois de comer como Pantagruel, ele fosse dormir. Para apressar esse momento, fui à geladeira e peguei uma garrafa e perguntei-lhe se queria água. Ele bebeu e foi para o quarto. Esperei. Confesso que não estava nervoso, estava eu ansioso. Acho que se passou meia hora. Procurei certificar-me de que ele estava dormindo de verdade. Roncava como um porco. Pensei: “É agora”. Fui à cozinha, peguei a faca que estava em cima da pia e dirigi-me ao quarto. Não precisei abrir a porta porque ele a havia deixado aberta. 
        Aproximei-me da cama, olhei para ele e me lembrei do dia em que ele, bêbado, havia me encurralado no banheiro e, com a faca na minha garganta, olhou para mim e disse: “Fale alguma coisa pra mim sangrar você agora mesmo”. A senhora recorda-se desse dia em que nós somos obrigados a dormir fora de casa porque ele estava embriagado e havia nos expulsado? Por isso, naquela noite, observando-o dormir ali, impotente, senti o mesmo prazer que deveria ter sentido Perseu ao cortar a cabeça da Medusa. Aproximei-me, peguei-lhe nos cabelos, encostei, afavelmente, a faca no pescoço dele e, como um violinista, fui deslizando-a em seu pescoço enquanto sorria para ele: “Fale alguma coisa para eu cortar a sua garganta”.
– Pedro, acorda. Que foi? Você teve mais um pesadelo? Vamos, acorde.
– Não, não é nada. Foi apenas um sonho ruim que eu tive. Vá dormir que amanhã você precisa ir à escola, disse Pedro ao irmão que dormia no mesmo quarto, enquanto ele, suado, tentava dormir novamente. Realmente, aquilo não fora um pesadelo. Fora apenas um sonho ruim. Pesadelo era acordar amanhã e saber que ele continuava vivo, que estaria ali em carne e osso a ocupar o lugar do pai que ele nunca conhecera, de quem nunca precisara, mas que sempre lhe fizera falta.

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