terça-feira, 16 de março de 2010

DOCE NOVEMBRO

                                                 
Para Leucio de Farias Guilherme 
                                       
Há pessoas que nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.
                                                                                      Cecília Meireles


     Depois de uma desilusão somada a mais uma, enfim a dezenas de tantas outras desilusões, Marcos, como lhe aconselhara uma velha amiga, resolvera cair na real. Apostava que, daquele momento para frente, tudo seria diferente. Aquele por quem se apaixonara deveria cair no esquecimento há muito necessário, como aquelas coisas que é preciso que perder pela vida. Prometia isso a si mesmo. Era preciso acreditar nisso, ainda que pudesse vir a ser mais uma de suas vãs ilusões.
     Na junção de suas carências, amalgamando ausências e ansiando por afetos há muito negados, deixara, sem perceber a dubiedade dos gestos e a ambigüidade dos olhares, deslumbrar-se por aquele a quem, como ele mesmo lhe dissera, devia ter visto como apenas um amigo. Fora condenado pelo simples fato de que, à revelia de sua vontade, se apaixonara por aquele de quem se aproximara sem nada esperar, esperando, depois, tudo. De tanta convivência, esperava que brotasse mais intimidade; viera-lhe a recusa a pôr em ruínas todo o seu inventário de ilusões.
     Colecionador de corpos, o Outro que ele quis dividia o coração com outros e também lhes ofertava o seu corpo, exceto com ele a quem sequer as migalhas eram oferecidas. Sofrera, principalmente porque não havia aprendido (ou não queria?) esquecer. “O amor é uma grande ilusão e nós não temos razão...”, dizia para si mesmo, deixando o pensamento incompleto, buscando consolo nas horas em que sentia o peito apertado.
Mas já estava se encerrando o tempo de chorar, sofrer e lamentar. Havia aprendido a tirar proveito de sua dor e ela já estava a dar sinais de cansaço. Pouco a pouco, pararia de sofrer com aquela ausência e não mais viveria à base de tristezas, morrendo de saudades. Começava a esboçar-se para ele um novo tempo em que deveria deixar para trás o que precisava ficar para trás: era hora de fugir do inferno, em busca de seus girassóis. Do coração despedaçado, estava aprendendo a fazer, a partir dos cacos, um mosaico. Saíra fortalecido: amalgamara na dor a alegria.
     Estava esperançoso de que chegasse o momento em que poderia dizer ao Outro de sua dor: “houve um tempo em que eu disse ser você importante para mim, ainda o é, embora não mais com a mesma intensidade tanto que, hoje, noto a sua ausência, mas não mais sinto a sua falta”. Vivia na esperança desse dia em que, enfim, poderia perceber-se cansado do Outro, não necessariamente do Outro, mas, como disse a poeta, cansado de si através do Outro.
     E de tanto esperar, eis que ela, não dura, mas caroável, há muito ausente, se fez presente. As coisas que a vida faz. Há horas em que ela destece qualquer possibilidade de esperança; outras vezes, reúne todos os fios e voltamos a acreditar naquilo que, antes, era só uma possibilidade remota. Entre esses mistérios que a mão do acaso nos oferece como alento, vamos, com fios que muitas vezes desconhecemos, seja porque invisíveis, seja porque, mesmo visíveis, não os percebemos, tecendo uma esperança aqui, outra ali, deixando mais uma outra acolá e, no traçado das quase sempre nem bem traçadas linhas, um ponto une-se a outro que, por sua vez, liga-se a mais outro e, assim, vão dando contornos àquilo que, muitas vezes, se nos afigura como mistério e que, entretanto, nos revela, nos desvela, nos esconde, nos expõe. A vida e seus sortilégios.
    Para Marcos, a esperança não veio verde, não tinha a forma de um ortópdero. Veio de carne e osso: estudante, vinte anos, magro, alto, lisos cabelos castanhos alourados, cicatriz no braço direito. Lúcio era o seu nome. Ele chegara quando, retalhado, o coração de Marcos, depois de tantas vezes enganado e sem mais nenhum marco, apenas marcas, ensimesmara-se. Estando Marcos à deriva, Lúcio lhe aparecera como um farol, renovando-lhe as esperanças de guarida em meio às tormentas contra as quais ainda lutava contabilizando perdas e caçando ausências.
     Era novembro. Subia pela Rua Treze de Maio quando lhe deu vontade de entrar numa lan house. Mais do que ler emails, Marcos precisava distrair-se enquanto não chegava a hora de embarcar para a cidade onde estava morando. Campina agora lhe era só um porto de passagem, mas ele sentia saudades do tempo em que aqui vivera. Percorrer as ruas daquela que ainda era a sua cidade, ouvir o barulho da buzina dos carros e das motos, desviar-se deles ou sentir-lhes a fumaça a rasgar as narinas era encontrar-se com velhos hábitos com os quais, desde que se mudara, não tivera mais contato.
     A nova cidade tinha aspecto de uma cidadezinha qualquer parada no tempo e marcada por uma vida cotidiana e tributável. Toda vez que viajava de lá, Marcos procurava, antes do retorno, reter a passagem das horas. Por isso, andava a esmo enquanto o tempo lhe resolvera presentear arrastando-se lentamente. Como não sabia o que fazer e lhe sobrava muito tempo antes da viagem, veio-lhe a vontade de acessar qualquer coisa na internet que lhe pudesse servir de distração. Pensou em ir à velha lan house a que sempre ia quando morava por aqui. Entretanto, de súbito, resolvera entrar numa outra a que não costuma ir. De todas as existentes ali, ele havia sido impulsionado, sabe-se lá por quem ou por que, a entrar naquela.
     Havia sentado numa das cabines da lan quando seu olhar cruzou-se como o do jovem rapaz na cabine da frente. Sentiu aquele frenesi. Com vergonha, desviou a vista, mas o jovem rapaz, aqui e acolá, lançava-lhe furtivos olhares. Naquele hora, o desejo de um passara a ser o desejo do outro. Passada mais de meia hora, entre um flerte e outro, Marcos criara coragem e, com as mãos, fizera-lhe gestos a indicar que queria encontrar-se com ele. Lúcio não entendera. Por isso, Marcos pegou o celular e apontou-lhe, como índice de que queria o seu número. Lúcio, agora, entendera. Pouco a pouco, foi lhe dizendo os números. Anotados, Marcos cuidou de passar-lhe uma mensagem: “Pode encontrar-se comigo, agora?”. Lúcio respondeu afirmativamente com um meneio da cabeça. Dali a pouco, saiam, ambos. Subiram a Rua Treze de Maio a conversarem como se fossem velhos amigos. Convite feito; convite aceito. Almoçaram. Nomes revelados, telefones trocados, desejos em confluência. O tempo que, antes, se arrastava, agora, aligeirava-se. Era preciso partir, mas não se via nota de despedida: havia a promessa de um novo encontro. Deram-se as mãos. Olhos nos olhos: luminescências.No ônibus, de volta para a cidadezinha qualquer, Marcos pegou o celular e passou a escrever uma mensagem: “Gostei de tê-lo conhecido. Ainda que não seja nada sério, espero que não tenha sido apenas um encontro casual. Aguardarei a sua visita. Beijo, o mesmo que eu senti vontade de dar, mas não tive coragem”.
     E o doce daquele novembro estendeu-se por todo o dezembro, depois o janeiro próximo e todos os outros meses que vieram em seguida.

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