terça-feira, 16 de março de 2010

O EXÍMIO


Para Augusto Rafael Carvalho de Sousa


        Quando criança, e isso faz tanto tempo, eu gostava de ouvir várias histórias de trancoso que eram contadas pelo Exímio, um velho que fora meu vizinho na época em que meu pai era juiz numa dessas cidades do interior do sertão, lugar quente sobre o qual, em tom bastante jocoso, dizia papai:
– O povo daqui, quando morrer e se não for para o céu, quando chegar no inferno, se este for realmente quente como dizem, não vai sentir diferença alguma”.
Ríamos com essas suas comparações meio desatinadas que, no entanto, não tinham nenhuma tinta de galhofa. Eram apenas irrupções de sua veia humorística, pois ele era daqueles que podiam perder até um amigo, mas nunca perdia a chance de provocar risos.
        Se eu ria das brincadeiras de papai, com as histórias do Exímio (chamo-o assim porque nunca soube seu nome ou porque faz tanto tempo que não me recordo mais), eu ficava alumbrado, como se fosse um dos personagens das Mil e uma Noites ou estivesse perdido num daqueles mundos de uma história sem fim. Eram muitas as histórias. Reis, fadas, monstros, mares bravios, índios, povos de países distantes faziam parte de um cenário que hoje se encontra esgarçado pelo tempo e do qual só restam fragmentos em minhas retinas fatigas.
Antes de contar-me qualquer história, o Exímio sempre perguntava se ele já havia contado a da cachoeira do espelho. Quando não havia ninguém perto que afirmava que sim, eu mentia e balançava negativamente a cabeça. Embora já tivesse ouvido essa história muitas vezes, eu sabia que contá-la propiciava uma grande alegria para aquele velho mago que conseguia extrair das palavras o que elas tinham de mais encantador e, assim, me enredar em tramas mais inverossímeis possíveis. A cada história que contava ou recontava, ele se tornava mais moço, alegre, seu fôlego aumentava, enfim, narrando-as ele remoçava-se. Era como se por meio daquelas histórias, em especial a da cachoeira do espelho, ele pudesse reatar as pontas de sua vida, unir os laços soltos e ter certeza de que os nós dados estavam firmes, frouxos ou até mesmo precisavam ser cortados, como fizera Alexandre, o grande.
        Neste caso, narrar era viver e, se ele não contasse tais histórias, poderia morrer. Elas eram, então, como aquela dose de remédio que um paciente em estado terminal precisa administrar não para que a morte não chegue, mas para que a sua chegada seja adiada por mais um dia, se torne, embora inevitável, mais distante e, assim, nos dê tempo para arrumar a mesa, a casa, enfim, deixar tudo pronto para podermos partir quando o expresso do iniludível chegar à plataforma.
        O Exímio dizia ser descendente de uma família de nobres dentre os quais havia um que fora alquimista e possuía um belo espelho. Este passou de geração a geração até ser entregue a ele por seu pai. Este espelho possuía uma moldura dourada, diziam que era toda de ouro, e era de um azul que reluzia como cristal. O Exímio, que o guardava em segredo, disse, uma vez, que esse azul era reflexo das águas de uma cachoeira existente no espelho, as quais nunca paravam de se movimentar. Eu não acreditava nessa história, achava que aquilo era invenção dele, mas sempre ficava atento quando ele com sua voz rouca e cansada falava meio que arfante:
        – Ao fechar os olhos, por um segundo, sentia uma brisa leve e suave em torno do meu corpo. Eram zéfiro e eólios que vinham me dar permissão para que eu pudesse iniciar a passagem. E, num instante, eu já havia atravessado o espelho e estava mergulhando nas águas cristalinas da cachoeira. Eu podia, depois do banho, correr pelas enormes colinas verdes que nem Atalanta ou Ártemis me pegariam. Gostava também de provar as belas frutas que havia naquelas campinas. Eram tão deliciosas quanto a fruta que Eva provou, tanto que Deus, se tivesse provado uma delas, não teria expulso Adão e Eva do paraíso. Ali, eu me tornava uma criança que se sente segura nos braços da mãe. Lá, Gaya me afagava com todo o seu amor enquanto Cronos dormia esquecido de nós, mas, quando ele se acordava, era preciso que eu voltasse para aqui onde estamos. E assim, eu retornava com o coração de quem arruma o quarto de um filho que já morreu. Mas trazia em mim a esperança dos namorados que juraram se reencontrar e, assim, eu voltava feliz.
        – Augusto, venha para casa, já está na hora de dormir. Amanhã é segunda, você tem aula. Papai gritava e eu era obrigado, como era o Exímio por Cronos, a voltar à realidade. Despedia-me dele e ia, à revelia, para casa. Afinal, estávamos no final do ano e eu não podia ser reprovado para que pudesse passar as férias na casa de uns parentes de mamãe no Recife. Sentiria saudades das histórias do Exímio, mas era apenas um mês sem vê-lo. Logo, logo, estaria de volta e poderíamos sentar no alpendre de sua casa e rirmos, purgarmos nossas emoções com aquelas histórias. Isso pensava eu, não com essas mesmas palavras, enquanto, já de pijama, ia para o meu quarto.
        O mês de férias, como já imaginara, passou tão rápido que logo eu estava de volta à casa de meus pais. Quando cheguei, notei que, em vez de alegria, pairava uma sombra de tristeza sobre o rosto deles. Papai pegou na minha mão, fez algumas perguntas evasivas sobre como foram as minhas férias enquanto mamãe perguntava pela saúde de tia Maria. Estranhei aquele comportamento e eles perceberam. Papai pediu que eu sentasse e foi me dizendo que eu não ficasse triste, mas o meu velho amigo contador de histórias havia morrido na noite anterior. Uma das nossas empregadas fora levar um pedaço de bolo de fuba que mamãe fizera e o encontrara caído no chão ao lado de um espelho todo espedaçado. De manhã bem cedo, apareceram algumas pessoas, papai nem mamãe souberam me explicar quem eram ou de onde vieram, dizendo que eram parentes do morto para fazerem o enterro:
        – Mentira!!!!!!!!!, sai gritando, ele não tinha família. Sua família eram as suas histórias e a sua alegria eram os meus ouvidos desatentos. Corri para a casa de meu amigo e lá onde ele fora encontrado morto não havia nem um pedaço do espelho, apenas um pequeno olho d’água. Fixei bem o olhar e pude perceber que a água que minava da sala ia, pouco a pouco, sumindo. Parei de chorar e compreendi que aquele era o seu último adeus para mim.

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