terça-feira, 16 de março de 2010

DESPEDIDA

Para Marlos Régis Araújo


        Olhou ao redor de si e viu que aumentara o maço de papéis amassados. Horas a fio escrevendo e não conseguira ainda terminar aquela carta. Findado o primeiro período, o segundo sumia de tal forma que ele ou se irritava e rasgava o papel; ou ficava dispondo palavras soltas que, logo depois, formavam um amontoado que era amassado e jogado fora. Mande notícias do mundo de lá, diz quem fica. Escrever, riscar, amassar, essa era uma seqüência que ele já estava executando mecanicamente. Me dê uma abraço, venha me apertar, tô chegando (ou será indo de vez?). Poderia parar e dar por vencida a questão. Para que escrever aquela carta, pedindo desculpas, se o seu pedido, certamente, seria indeferido? Coisa que gosto é poder partir sem ter planos. Também não iria escrever sobre os seus erros. Temia que, à lembrança do que fizera, o Outro, de quem dependia o seu perdão, ressentisse-se e, reacendida a ferida da mágoa, recusasse-se a perdoar-lhe. Melhor ainda é poder voltar quando quero.
         Errara. Disso tinha certeza. Por isso, mesmo sendo perdoado, o perdão, para si, teria um modo carinhoso de inacabado, de malfeito, daquilo que desajeitadamente cai, antes mesmo de alçar o primeiro vôo. Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação. Agira como alguém que temia perder o objeto que lhe é mais caro, mas cujas ações, tal qual Édipo infeliz, o levavam em direção ao abismo, à perda, à dor de que em vão tentara fugir. Tem gente que vai pra nunca mais. Não tinha coragem de encarar mais o Outro. Olhos nos olhos o que mais posso lhe dizer? Tem gente que vem e quer voltar. Errei, sim; mas não manchei o seu nome. Sabia disso e se arrependia. Todo dia, agora, viver com a sua indiferença é aumentar o cálice da angústia que bebo toda noite. Mas você queria que eu agisse como? Cansei de viver à sombra de suas migalhas de afeto. Em meio a sobras, eu procurava uma amplidão. Tem gente que vai e quer ficar. Você havia me dito que era meu... . Eu, que sempre fui de poucas amizades, que fiz de mim o verso e o reverso de mim mesmo, acreditei. Tem gente que veio só olhar. 
        Mas, eis que de repente, não mais que de repente, uma sombra negra o envolveu: você tornou-se-me indiferente. Tem gente a sorrir e a chorar. E eu, não menos que de repente, pensei que havia aprendido com a sua indiferença, hóspede novo, embora não exclusivo, que entrou em minha alma e pôs em perigo a nossa amizade. E assim chegar e partir. Vesti o dominó e você conheceu-me logo por quem eu não era. São os dois lados da mesma viagem. Não desmenti. Perdi-me, Perdi-lhe. A hora do encontro é também despedida. Desde então, o amanhã se me apresenta como a única possibilidade de que tudo volte ao normal. É a vida desse meu lugar, é a vida. Eu queria poder pedir que não procurasse me entender, saber por que agi daquela maneira. Perdoa-me, faz-me companhia. Eu, embriagado de uma tristeza profunda, fui possuído por uma angústia que me corrói o corpo e a alma. Ajude-me, perdoando-me.
        Cansou-se mais uma vez, levantou-se da cadeira, afastou os papéis da mesa, deixando uns caírem no chão. Não conseguia entender por que ainda não tinha escrito aquela carta. Devia ser o som do rádio que estava a lhe atrapalhar a concentração. Seria melhor desligá-lo de vez. Assim, no silêncio da noite, ouvindo apenas o assovio do vento, talvez ele pudesse escrever aquilo por que tanto ansiava naquele momento e que se lhe apresentava como um décimo terceiro trabalho de Hércules, fadado, no entanto, ao insucesso. Por isso, não adiantava calar o rádio. 
        O problema era com ele mesmo que não conseguia soltar a sua voz, que não sabia como trazer para o branco do papel aquele sentimento retesado há certo tempo juntamente com outros também inauditos. Essa sensação de impotência diante da miríade de palavras que ele dispersara entre as muitas folhas que cobriam o piso do seu apartamento estava a lhe inquietar o espírito. Esse sentimento, espécie de áporo perfurando a terra sem achar escape, foi, palavra por palavra, risco por risco no bordado de cada papel a cobrir o chão, crescendo, de tal forma que de pronto desatou-se numa única frase, que ele anotou para enviar no dia seguinte pelos correios: “E o seu silêncio esgarçou a minha alma suave e leve como o roçar de uma navalha”.

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