Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Federal da Paraíba – PPGL
Nascida no século XIX, Júlia Lopes de Almeida, assim como muitas de suas coetâneas oitocentistas, escreveu obras que versam, sobretudo, a respeito da esfera doméstica onde muitas mulheres permaneceram fechadas dentro de casas e sobrados, mocambos e senzalas, construídos por seus pais, maridos, senhores. O privado foi, então, o cenário escolhido por essas autoras para fazer desfilarem, na ficção, mulheres que, igualmente como as da realidade, eram confinadas no mundo interior da família e mantidas sob o jugo patriarcal. Sendo assim, voltadas para o espaço doméstico, o privado, as mulheres, ao construírem o seu universo ficcional ou poético, deram prioridades aos laços familiares:
Estes laços, protetores e constritivos, são, freqüentemente, elementos estruturantes dos conflitos narrados. A família é, de fato, um tema que se impõe àqueles(as) que se interessam pela problemática feminina, seja ela abordada pelos mais diferentes campos do saber (XAVIER, 1998, p. 13).
A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”, daí serem recorrentes na produção delas temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordassem nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública, isto é, assuntos de homem. Assim, não nos causa estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e planejados pela arquitetura masculina, as mulheres escolhessem justamente esses espaços para falarem, dizerem quem eram, são e foram.
Esses escritos, ainda que tenham tomado a esfera privada como cenário, são registros de “modos específicos de dramatização do crescimento urbano, da expansão industrial e da modernização dos costumes, nas primeiras décadas do século 20” (RAGO, 2005, p. 196). Por outro lado, esses mesmo escritos revelam também os efeitos individualizadores da crença nas tradicionais divisões entre os papéis sexuais e entre as esferas pública e privada, já que os assuntos mais recorrentes eram vistos, sob a óptica masculina, como simples coisas de mulher e, portanto, desprovidos de qualquer valor. Entretanto, “essas simples coisas de mulher” são uma preciosa fonte de informações sobre a família, a vida doméstica, a visão dos oprimidos e trouxeram para o espaço público assuntos ligados ao campo da moral, do cotidiano e dos costumes, mas também ao campo da sexualidade, do amor, do casamento e da prostituição.
A isca de Júlia Lopes de Almeida é um bom exemplo de como assuntos da esfera do privado vieram para o espaço público sob a ótica de um olhar feminino. Apresentada como livro de contos pelo Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (2002), A isca (1911) é, no entanto, classificada, conforme edição da Livraria Leite Ribeiro, publicada em 1922, como um conjunto de novelas que, além da que dá título ao livro, é composto por mais três: O homem que olha para dentro, O laço azul e O dedo do velho. Deter-nos-emos apenas na primeira dessas quatro novelas.
A isca é uma novela cuja trama gira em torno de duas forças igualmente poderosas: o amor e o dinheiro. Nesse caso, parece que Júlia Lopes dá continuidade ao que José de Alencar fizera em Senhora (1875). Ratificam essa nossa impressão o fato de o personagem criado por Júlia Lopes trazer o mesmo sobrenome do personagem criado por Alencar e o fato de o enredo de A isca ser muito semelhante ao de Senhora, romance em que se narra o processo de compra de um marido. Lembremos que o romance é estruturado em quatro partes que representam as etapas dessa compra: “O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”.
Na primeira, Alencar fala do dote oferecido por Aurélia para casar-se com Seixas. Como ela “precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas”, Seixas estava disponível no mercado e ela podia pagar por ele. O casamento seria, então, a forma mediante a qual Seixas, rapaz casadoiro e possuidor de economias corroídas e de posses escassas, poderia inserir-se noutra classe social e elevar-se. No dizer de Antonio Candido, “Fernando Seixas é um intelectual elegante e pobre, que, incapaz da ascese comercial de Jorge da Silva, [personagem de A Viuvinha], resolve o problema da posição social trocando por cem contos a liberdade de solteiro numa transação escusa” (CANDIDO, 2000, p. 205).
Na segunda parte do romance, estabelecida a realidade de mulher traída e a de homem vendido, o narrador mostra como Aurélia despertava “a fome de ouro nos cavalheiros do lansquenete matrimonial” até que veio a comprar um marido. Adquirido o esposo, Aurélia, entretanto, fugia do mercenário, “como se receasse o contágio do homem a quem unira” e que se lhe apresentava “reduzido à mercadoria ou traste” cuja cotação era feita no mercado, assim como “se usava outrora com os lotes de escravos”.
Na terceira parte, feita a transação matrimonial, não acontece a tão esperada consumação carnal do dito “santo amor conjugal”, pois Seixas, transformado de sujeito a objeto, e Aurélia vivem separados por um divórcio moral. Por fim, na última parte, expiada a culpa de Seixas, ele é restituído à sua natureza generosa e, regenerado, está pronto para tornar-se livre mais uma vez, só que, agora, ao lado da esposa que, em nome do amor, foi também redimida de seu orgulho.
Em A isca, Antônio Seixas, tal qual Fernando de Senhora, é uma espécie de arrivista social. Entretanto, Alencar narra a história da compra de um marido, Júlia Lopes de Almeida em sua novela nos narra os fatos acontecidos depois de o negócio firmado. Guardadas as devidas diferenças, ambos os autores procuram enfatizar o aspecto comercial do casamento, como se fosse mais um negócio a ser realizado. Se Alencar fala da compra de um marido, Júlia Lopes fala da caça a uma esposa rica. Neste caso, o título da novela é bastante sintomático, pois, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo isca significa “chamariz que se põe no anzol para atrair e capturar peixes”. Lida a novela, perceberemos que a personagem Isabel de Mendonça será a isca de que se valerá Antonio Seixas para conseguir a sua ascensão social. Dessa forma Isabel de Mendonça e Antonio Seixas constituem os vértices de um triângulo cuja outra ponta é composta por Vera Landim.
Quando a narrativa inicia-se, Isabel e Antonio já estão de casamento marcado. Vera nos é apresentada como a noiva abandonada por Antonio, já que este preterira Isabel a ela. Isabel tinha sido, na opinião de Dionísio, personagem que tenha consolar Vera, o objeto que Antônio ambicionara:
– Deixe-os dançar e pensar que são felizes. Para eles a vida está toda dentro daquele ritmo vagaroso. Viverão sempre assim, para trás e para diante, para diante e para trás, sem vôos de imaginação e nem poesia ... Até aqui o Antonio ainda tinha uma certa expressão interessante, porque era ambicioso. Casando rico tornar-se ha um apático (AI, p. 6-7).
Assim como Aurélia, Vera é abandonada porque o dote de Isabel Mendonça é muito maior. Entretanto, ao contrário da personagem de Alencar, Vera resigna-se e resolve ir morar na fazenda dos avós, embora seja cortejada por Dionísio cujas investidas ela descarta, uma vez que ele é casado:
– Ainda não chegou a hora. Repare que estamos sós. E sós estaremos toda a vida um em face do outro. O senhor é casado. Eu sou honesta. A nossa comédia seria, além de um crime, uma vergonha. Procure amar a sua esposa. eu procurarei resignar-me ao meu sofrimento (AI, p.11).
.
O dote, durante muito tempo, foi um costume entre as famílias proprietárias que consistia em dotar as filhas, oferecendo-lhes, na maioria das vezes, casa, gado e escravos (índios) para que assim, com esses bens, elas pudessem estabelecer família própria. Com o dote, a mulher não só contribuía para o sustento do casal, como também deixava o marido em situação de devedor, ainda que a administração dos bens do casal ficasse sob a responsabilidade do marido. O dote era, portanto, elemento bastante significativo para o sustento do novo casal, além de ser um atrativo a mais das moças de família rica desejosas por casar. Quanto maior fosse o dote, mais pretendentes a moça poderia ter na bolsa de valores do mercado matrimonial. Esse era o caso de Maria Isabel, personagem de A isca, conhecida por ser muito rica. Por isso, seu pai um homem sensato e pacato, a advertia: “– Os pretendentes a dotes gordos surgem de todos os cantos, são os cogumelos da humanidade. Sê prudente e não te deixes cair no anzol sem mais nem menos ... ”(AI, p. 15-16).
Apesar dos conselhos do pai e da vigilância da tia Milu, Isabel Maria não ficou muito tempo longe do anzol do caçador de dotes Antonio Seixas. Eles se conheceram de relance durante uma temporada de verão em Petrópolis. Tornaram-se a encontrar em um dos saraus musicais realizados na casa da Silveirinha, nome de um personagem que dá título a um romance homônimo de Júlia Lopes. Nesse segundo encontro, a indiferença que marcara o primeiro cedera lugar a uma certa contemplação muito expressiva. Por essa época, Isabel estava comprometida com André Sales, de quem só sabemos essa informação, e Antonio Seixas era noivo de Vera Landim, boa pianista e bastante exímia em ciências naturais. A união de Isabel e Antonio parece demonstrar que o amor como estímulo para o casamento ocupou lugar de menor importância. O enlace deles representa bem os moldes das relações amorosas entre final dos oitocentos e limiar dos novecentos: do noivado, curto e que nem sempre sucedia ao namoro, seguia-se o casamento.
Antonio é-nos apresentado como um homem que se acostumara a hábitos de rico. Por isso, “uma preocupação qualquer, mais forte do que todos os deleites espirituais, lhe distraía o pensamento” (AI, p. 20). Antonio, inserido num grupo de pessoas cuja maior qualidade eram “os mesmos gostos dispersivos”, estava absorto “em duas coisas: o amor e o dinheiro”. Para manter os hábitos que criara e que lhe custavam caro, Antonio precisava fazer uma grande fortuna. Alternativa que lhe aparece mais vantajosa é casar-se “com uma mulher muito mais rica do que a Vera Landim” (AI, p. 21) e, assim, não fazer figura triste entre os amigos. Antonio, então, decide que a solução para aumentar os seus exíguos rendimentos estava no casamento com Isabel. Ressentia-se por não se casar com Vera; mas Isabel podia concretizar muito mais rápido os sonhos dele de luxo e ascensão social. Casando-se com ela, Antonio poderia desfrutar da influência política e econômica do sogro.
Homem para quem o amor é apenas um dos produtos de uma transação mercantil, Aas procura capturar a sua isca Lamdimma fazer uma grande fortuna.certa contemplaçmatromonial.ntonio Seixas procura capturar a sua isca. E, assim, aproveitando que era época de carnaval, num dos passeios a que foram, “Antonio sentou-se ao lado de Isabel e tocava de vez em quando com a dela a sua taça de Champagne. Depois ofereceu-lhe um cigarrinho. Ela fez uma careta, mas aceitou. Ele ria-se e ela já o tratava, embaralhadamente, por tu e por você... Dias depois estavam noivos” (AI, p. ). O que une Antonio a Isabel é, portanto, o interesse material e econômico dele. O interesse sentimental e afetivo mal começara a brotar, eles estavam de casamento marcado. O enlace matrimonial com a filha do rico industrial se afigura a Antonio como substancialmente vantajoso, como um negócio da China.
Como dote, ser-lhe-iam oferecidos duzentos contos (o dobro do que recebera Fernando Seixas, de Senhora) e uma casa, além de sociedade na fábrica do futuro sogro. Decepcionado, Antonio alegrou-se, entretanto, ao lembrar que Vera Landim não possuía dote sequer a oferecer a ele. Embora não fosse o esperado, Antonio ainda saíra lucrando: Isabel lhe traria, de uma só vez, fortuna e importância. Assim, mais para alimentar os seus hábitos de rico do que para comemorar o seu casamento, “Antonio julgou-se um príncipe e atirou-se para a ourivesaria a comprar a crédito diamantes e perolas para a noiva. Pagaria depois, com o dinheiro que ela trouxesse, mas teria desde logo o prazer de se mostrar generoso e de a ver lisonjeada...” (AI, p. 32).
Todavia, se rápida foi a fisgada de Antonio, mais rápida ainda foi a sua decepção com o casamento. Do que ele sonhara ao contrair compromisso com Isabel, restaram-lhe apenas os duzentos contos e a casa da rua Marquês de Abrantes. Tudo o mais fora dilapidado pelo sogro antes de morrer. O dote recebido era insuficiente, depois de tantos gastos, para cobrir as despesas que Antonio fizera, uma vez que ia ser genro de um grande industrial. Até mesmo tia Milu, que vivera sob a proteção do pai de Isabel e que devotara a sua vida à família dela, foi dispensada e se viu “como uma mosca numa teia, sem saber para que lado mover-se, para não cair de todo nas garras da miséria” (AI, p. 55).
Tia Milu representa o papel de mulher desprestigiada por ser solteira. Como o casamento se apresentava para as mulheres, na maioria das vezes, como a única possibilidade de carreira, “permanecer solteira, além de pouco atraente e financeiramente inviável na maioria das vezes, implicava um desprestígio para a mulher” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 83). Devido à situação de dependência econômica absoluta, Tia Milu era a criatura mais obediente e explorada da casa onde prestava os mais muito relevantes: consideração, respeitabilidade, comodidade, economia, vigilância de mãe, noites mal dormidas, os quais não eram suficientes para modificarem a sua condição de parente pobre que vive à custa de favores. Aliás, como bem notara Schwarz (2000), a prática do favor foi uma das marcas de nosso Brasil oitocentista foi a prática do favor, a qual condicionava a ascensão social e “, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais”. Apesar disso, a prática do favor era uma estratégia mediante a qual se alimentava a ilusão de que nenhuma das partes envolvidas era escrava da outra. Como afirma Schwarz (2000, p. 20), “Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecido nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma”. Isso se aplica muito bem à Tia Milu, cuja situação dentro da casa dos Mendonça se modificou após a morte do cunhado:
Milu sentia-se desconsiderada e arrependida. O seu luto, feito com tecidos baratos e cosido pelas suas próprias mãos, dava-lhe a impressão de atestar aos olhos de todo mundo a sua decadência. Do que se arrependia era de ter passado a maior parte da sua vida no período da grande energia, como parasita de uma casa rica, a gastar a sua atividade em vigilâncias que não lhe tinham deixado nenhuma compensação pessoal... (AI, p. 43).
Ainda assim, tia Milu não deixou de visitar Isabel em cujo comportamento ela começava a perceber algumas mudanças. Com a morte do pai, sem o dinheiro esperado que viria como herança, Isabel se inquietava com as dívidas vultosas que foram contraídas por Antonio e por ela. Entretanto, tia Milu percebia que as preocupações de Isabel não eram as contas a pagar, e, sim, Antonio. Ela sabia que ele se casara pensando no dote de Isabel. Por isso, soam irônicas as seguintes frases da tia dita à sobrinha::
– E o amor? Perguntou então tia Milu, com tão encoberta ironia, que a outra não compreendeu.
– Ele ama-me muito.
– Pois isso é tudo. Quando há amor, que importa o resto?
– Quem ama não come?
– Apenas para sustentar-se, se não tem para mais, e com isso se deve sentir satisfeito. Que melhor dote para um homem que ama, que possuir a escolhida do seu coração e vê-la assim tão perfeita, tão boazinha como tu és? O Antonio não se casou com o teu dinheiro; casou-se contigo, e deve considerar-se o homem mais feliz do mundo, porque tu és uma mulher encantadora. Deves dizer-lhe isto mesmo, quando ele desesperar (AI, p.47).
O leitor, pelo que já vem acompanhando ao alo da narrativa, perceberá que tudo o que Tia Milu está dizendo soa como irônico porque o que moveu o casamento de Antonio e de Isabel foi exatamente o fato de ele ver a futura esposa como capital simbólico imprescindível à ascensão social dele. Se no imaginário da época, o corpo feminino era o mercado por onde circulavam os bens da família, Isabel era esse corpo de que Antonio queria tornar posse. Para ele, o matrimônio era visto como um contrato de natureza político-sócio-econômica. Aliás, essa foi a forma sob a qual o casamento foi concebido anterior à ascensão burguesa. Só com o advento da burguesia, emerge, dentre outras coisas, o conceito de amor conjugal e, neste caso, casa-se não mais por interesses políticos, econômicos e sociais, mas por interesses do coração.
Entretanto, como o casamento não evitou o fantasma de uma demonstração pública de penúria, era preciso a Antonio vislumbrar outras saídas a fim de que não se pudesse chegar a esse tipo de humilhação. Por isso, a ele só restava usar o que de mais caro lhe havia: sua esposa Isabel. Esta deveria, usando das artimanhas femininas, conseguir, sob as orientações do próprio marido, um emprego para ele com o Sr. Ministro Dr. Jordão. Assim como muitas outras mulheres, além das atividades estritamente ligadas à casa, a Isabel foi delegada uma outra função: estimular e ajudar, com sua simples presença e demonstração de dotes físicos, o seu marido na conquista de êxitos. Isabel é, portanto, utilizada como instrumento para favorecer os interesses do marido, ou seja, como capital e como expressão do êxito comercial de Antonio a fim de conquistar uma boa posição social e econômica para ele. Isabel, assim como muitas outras mulheres, passou a ser a responsável pelo sucesso e bom êxito de Antonio, que se valeu da habilidade e da demonstração dos dotes femininos da esposa como elementos decisivos na sua elevação social. Dessa forma, assim como muitas outras personagens da ficção oitocentista, Isabel tem seu papel social redefinido. A ela não bastava a atuação apenas no seio da família. Era preciso atuar também em sociedade:
– O Dionísio pediu-me para entrar com eles numa grande negociata com uma empresa americana. Aceitei. Estamos só à espera de umas instruções de Nova York. Entretanto, não seria mau que eu fosse ocupar o tal lugar no ministério... Convém-me mesmo estar do lado de dentro, o que me facilitará depois qualquer manobra. Isto são minúcias que não vêm ao caso: o principal agora é conseguir que o Vasco me dê o lugar, e para isso preciso de ti.
– De mim?!
– Pois então? Que melhor advogado poderei ter do que a minha mulherzinha? (AI, p. 63).
Assim, para contribuir no projeto familiar de mobilidade social, Isabel precisa convencer o ministro a dar o cargo que interessava a Antonio, que manteria o seu prestígio social e que empurraria o status de sua família mais e mais para cima. Para tanto, Isabel é instruída pelo próprio marido. Ela precisa se vestir bem, fingir que partiu dela mesma a idéia de ter uma conversa com o ministro. Ardiloso, Antônio precisava dirigir muito bem a mulher para representar o papel que ele mesmo escrevera para ela. Para Isabel, “era a primeira vez que ela entrava em cena para representar um papel estudado: devia procurar modelo para as sua atitudes. E aquele parecia-lhe excelente”.
Dias depois, a nomeação de Antonio foi recebida com espanto pelos amigos que ficaram curiosos para saberem como ele conseguira um dos cargos mais importantes da secretaria do ministro Vasco cuja assiduidade à casa de Antonio e de Isabel deram por desconfiar, fazer suposições. De Isabel, só quem olhasse bem para os seus olhos é que “teria a impressão de que atrás deles flutuava a sombra de um segredo íntimo, muito pessoal. Esse mistério, esse não sei quê de intátil e sutil, como que a tornava mais mulher e mais interessante” (AI, p.76). Antonio, por sua vez, estava bastante “excitado pela onda grossa dos bons negócios, que se avolumavam diante de si, mal percebia o traço de fel que se ia pouco a pouco acentuando nos lábios, antes sempre doces, da sua Isabel” (AI, p. 76).
Passado o embevecimento da fortuna conquistada, Antonio se via em uma situação delicada: livra-se do Vasco, “de quem já não precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado” (AI, p.77
()precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado pouco a pouco acentuando nos l). Com receio de ter o seu nome arrastado na lama, Antonio repreende Isabel pelo excesso de confiança que ela estava dando ao Vasco:
– Bem sabes que esse [o Vasco] vem todos os dias.
– Bem sei, bem sei! Todos, todos os dias! A mim isso me parece demais. Bastou! apre, bastou! Já não o posso tolerar nem quero tornar a vê-lo em minha casa!
– Agora . . .?! Retorquiu-lhe a mulher com ironia.
– Agora e sempre!
– Mas por quê?
– Porque não quero que arrastem o meu nome pela lama das ruas, entendeste? Tu bem sabes por quê! As suas assiduidades nesta casa estão tomando um caráter de intimidade que me desagrada imensamente e podem ser comentadas lá fora de modo desairoso para ambos nós. Eu não admito que isso suceda; eu não admito, ouviste? E a culpa tem sido tua, que lhe dás confiança. (AI, p. 82).
E Isabel, numa das cenas mais interessantes e de maior força dramática da novela, exaspera-se com Antonio:
– Minha?
– Sim, tua.
[...]
– Não me faças perder a cabeça, não me faças perder a cabeça, repetiu ele, de punhos cerrados, apoplético e terrível. Supus ter casado com uma mulher honesta e afinal...
[...]
– E afinal, acaba!
– Que és tu? . . . dize!
– Ah! pois ignoravas? Eu sou a isca. Eu fui a isca ... e não tenho sido outra cousa desde que me conheceste, e deves saber disso muito melhor do que eu mesma, que não compreendi as cousas senão depois delas passadas e irremediáveis.
– Cala-te.
– Agora está dito. Serviu-te o meu dote; serviu-te a minha beleza. Estás rico, estás farto, não precisas de mais nada, podes zangar-te e defender a tua honra; mas a ingênua morreu e a outra mulher que existe dentro de mim, melhor é que a não provoques, para que te não diga verdades desagradáveis.
Antonio levantou as mãos e cresceu para a mulher, lívido de raiva.
– Bate, concluiu Isabel, sem se mover do lugar em que estava. (AI, p. 84).
Arrefecidos os ânimos, Antonio e Isabel foram passar um tempo no interior. Quando regressaram, o Vasco já não mais assistia no Rio. Ele, que já estava se aborrecendo com a “insaciável avidez de negócios lucrativos, de que [Antonio] andava sempre à caça”, havia casado com uma viúva e fora morar nos estados Unidos. Para Antonio, a distância do antigo “amigo” alimentou-lhe a esperança de um novo horizonte. As relações com Vasco eram coisas do passado e lá deviam ficar enterradas lá como ficaram os ressentimentos de Isabel e pelo esposo. O coração dela arrefecera e estava unido ao do esposo pela ternura que ambos estavam sentindo pelo filho que estava por nascer:
O bebê esperado enlaçara o coração arrefecido dos pais numa corrente de ternura. Tinham-se perdoado tudo; viviam dele, por ele, na esperança de sua graça, da sua perfeição, da sua beleza. Tudo o que ficara no passado estava bem enterrado; agora só olhavam para frente, onde o vulto do filhinho lhes aparecia de diversos modos, em diversas idades . . .
Foi quando a criancinha veio ao mundo e que lhe deram o nome de Antonia Isabel, para que no próprio nome eles estivessem nela reunidos [...] (AI, p. 87).
Com esse adorável epílogo, podemos tecer algumas considerações últimas.Assim como muitas outras obras escritas anteriormente à sua publicação, A isca trata do casamento como um contrato social e coloca o dinheiro no cerne da trama. Essas mesmas obras, em sua maioria, representam o amor como um bálsamo capaz de restaurar o caráter moral perdido e de vencer os interesses econômicos no casamento. Ao contrário dessas obras, A isca, entretanto, vem apresentar um outro lenitivo: a família. Ou melhor, A isca vem reforçar a importância do amor familiar.
Em nome dos laços familiares, e não mais dos sagrados laços do matrimônio, Antonio e Isabel deixam de lado as rusgas e os dissabores do passado. Essa nova família, alicerçada nos moldes burgueses, vem reconfigurar os papéis do homem e da mulher no ambiente privado. Instaura-se, a partir daí, uma outra reorganização das vivências familiares e domésticas: um sólido ambiente familiar, um lar acolhedor. Dentro desse novo molde familiar, se a mulher possuía instintivamente o amor aos filhos e estava naturalmente preparada para se dedicar a eles, o homem não era mais apenas o provedor do lar. Tornara-se o pai, o chefe da família cuja incumbência maior era zelar pela felicidade e bem-estar da esposa e dos filhos. Revestidos dessa nova função, Antonio e Isabel parecem ter encontrado a sua mais alta realização humana. E assim, com essa cena familiar, a narrativa encerra-se com sabor de happy end.
[1] A primeira parte do título do presente trabalho é retirada de um texto da prof. Dra. Elódia Xavier, o qual se encontra no livro Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino, de autoria da referida professora. Além disso, este texto foi escrito para uma aula ministrada durante o meu estágio docência. Por isso, ainda precisa passar por algumas alteraçoes que serão feitas posteriormente.
Universidade Federal da Paraíba – PPGL
Nascida no século XIX, Júlia Lopes de Almeida, assim como muitas de suas coetâneas oitocentistas, escreveu obras que versam, sobretudo, a respeito da esfera doméstica onde muitas mulheres permaneceram fechadas dentro de casas e sobrados, mocambos e senzalas, construídos por seus pais, maridos, senhores. O privado foi, então, o cenário escolhido por essas autoras para fazer desfilarem, na ficção, mulheres que, igualmente como as da realidade, eram confinadas no mundo interior da família e mantidas sob o jugo patriarcal. Sendo assim, voltadas para o espaço doméstico, o privado, as mulheres, ao construírem o seu universo ficcional ou poético, deram prioridades aos laços familiares:
Estes laços, protetores e constritivos, são, freqüentemente, elementos estruturantes dos conflitos narrados. A família é, de fato, um tema que se impõe àqueles(as) que se interessam pela problemática feminina, seja ela abordada pelos mais diferentes campos do saber (XAVIER, 1998, p. 13).
A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”, daí serem recorrentes na produção delas temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordassem nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública, isto é, assuntos de homem. Assim, não nos causa estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e planejados pela arquitetura masculina, as mulheres escolhessem justamente esses espaços para falarem, dizerem quem eram, são e foram.
Esses escritos, ainda que tenham tomado a esfera privada como cenário, são registros de “modos específicos de dramatização do crescimento urbano, da expansão industrial e da modernização dos costumes, nas primeiras décadas do século 20” (RAGO, 2005, p. 196). Por outro lado, esses mesmo escritos revelam também os efeitos individualizadores da crença nas tradicionais divisões entre os papéis sexuais e entre as esferas pública e privada, já que os assuntos mais recorrentes eram vistos, sob a óptica masculina, como simples coisas de mulher e, portanto, desprovidos de qualquer valor. Entretanto, “essas simples coisas de mulher” são uma preciosa fonte de informações sobre a família, a vida doméstica, a visão dos oprimidos e trouxeram para o espaço público assuntos ligados ao campo da moral, do cotidiano e dos costumes, mas também ao campo da sexualidade, do amor, do casamento e da prostituição.
A isca de Júlia Lopes de Almeida é um bom exemplo de como assuntos da esfera do privado vieram para o espaço público sob a ótica de um olhar feminino. Apresentada como livro de contos pelo Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (2002), A isca (1911) é, no entanto, classificada, conforme edição da Livraria Leite Ribeiro, publicada em 1922, como um conjunto de novelas que, além da que dá título ao livro, é composto por mais três: O homem que olha para dentro, O laço azul e O dedo do velho. Deter-nos-emos apenas na primeira dessas quatro novelas.
A isca é uma novela cuja trama gira em torno de duas forças igualmente poderosas: o amor e o dinheiro. Nesse caso, parece que Júlia Lopes dá continuidade ao que José de Alencar fizera em Senhora (1875). Ratificam essa nossa impressão o fato de o personagem criado por Júlia Lopes trazer o mesmo sobrenome do personagem criado por Alencar e o fato de o enredo de A isca ser muito semelhante ao de Senhora, romance em que se narra o processo de compra de um marido. Lembremos que o romance é estruturado em quatro partes que representam as etapas dessa compra: “O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”.
Na primeira, Alencar fala do dote oferecido por Aurélia para casar-se com Seixas. Como ela “precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas”, Seixas estava disponível no mercado e ela podia pagar por ele. O casamento seria, então, a forma mediante a qual Seixas, rapaz casadoiro e possuidor de economias corroídas e de posses escassas, poderia inserir-se noutra classe social e elevar-se. No dizer de Antonio Candido, “Fernando Seixas é um intelectual elegante e pobre, que, incapaz da ascese comercial de Jorge da Silva, [personagem de A Viuvinha], resolve o problema da posição social trocando por cem contos a liberdade de solteiro numa transação escusa” (CANDIDO, 2000, p. 205).
Na segunda parte do romance, estabelecida a realidade de mulher traída e a de homem vendido, o narrador mostra como Aurélia despertava “a fome de ouro nos cavalheiros do lansquenete matrimonial” até que veio a comprar um marido. Adquirido o esposo, Aurélia, entretanto, fugia do mercenário, “como se receasse o contágio do homem a quem unira” e que se lhe apresentava “reduzido à mercadoria ou traste” cuja cotação era feita no mercado, assim como “se usava outrora com os lotes de escravos”.
Na terceira parte, feita a transação matrimonial, não acontece a tão esperada consumação carnal do dito “santo amor conjugal”, pois Seixas, transformado de sujeito a objeto, e Aurélia vivem separados por um divórcio moral. Por fim, na última parte, expiada a culpa de Seixas, ele é restituído à sua natureza generosa e, regenerado, está pronto para tornar-se livre mais uma vez, só que, agora, ao lado da esposa que, em nome do amor, foi também redimida de seu orgulho.
Em A isca, Antônio Seixas, tal qual Fernando de Senhora, é uma espécie de arrivista social. Entretanto, Alencar narra a história da compra de um marido, Júlia Lopes de Almeida em sua novela nos narra os fatos acontecidos depois de o negócio firmado. Guardadas as devidas diferenças, ambos os autores procuram enfatizar o aspecto comercial do casamento, como se fosse mais um negócio a ser realizado. Se Alencar fala da compra de um marido, Júlia Lopes fala da caça a uma esposa rica. Neste caso, o título da novela é bastante sintomático, pois, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo isca significa “chamariz que se põe no anzol para atrair e capturar peixes”. Lida a novela, perceberemos que a personagem Isabel de Mendonça será a isca de que se valerá Antonio Seixas para conseguir a sua ascensão social. Dessa forma Isabel de Mendonça e Antonio Seixas constituem os vértices de um triângulo cuja outra ponta é composta por Vera Landim.
Quando a narrativa inicia-se, Isabel e Antonio já estão de casamento marcado. Vera nos é apresentada como a noiva abandonada por Antonio, já que este preterira Isabel a ela. Isabel tinha sido, na opinião de Dionísio, personagem que tenha consolar Vera, o objeto que Antônio ambicionara:
– Deixe-os dançar e pensar que são felizes. Para eles a vida está toda dentro daquele ritmo vagaroso. Viverão sempre assim, para trás e para diante, para diante e para trás, sem vôos de imaginação e nem poesia ... Até aqui o Antonio ainda tinha uma certa expressão interessante, porque era ambicioso. Casando rico tornar-se ha um apático (AI, p. 6-7).
Assim como Aurélia, Vera é abandonada porque o dote de Isabel Mendonça é muito maior. Entretanto, ao contrário da personagem de Alencar, Vera resigna-se e resolve ir morar na fazenda dos avós, embora seja cortejada por Dionísio cujas investidas ela descarta, uma vez que ele é casado:
– Ainda não chegou a hora. Repare que estamos sós. E sós estaremos toda a vida um em face do outro. O senhor é casado. Eu sou honesta. A nossa comédia seria, além de um crime, uma vergonha. Procure amar a sua esposa. eu procurarei resignar-me ao meu sofrimento (AI, p.11).
.
O dote, durante muito tempo, foi um costume entre as famílias proprietárias que consistia em dotar as filhas, oferecendo-lhes, na maioria das vezes, casa, gado e escravos (índios) para que assim, com esses bens, elas pudessem estabelecer família própria. Com o dote, a mulher não só contribuía para o sustento do casal, como também deixava o marido em situação de devedor, ainda que a administração dos bens do casal ficasse sob a responsabilidade do marido. O dote era, portanto, elemento bastante significativo para o sustento do novo casal, além de ser um atrativo a mais das moças de família rica desejosas por casar. Quanto maior fosse o dote, mais pretendentes a moça poderia ter na bolsa de valores do mercado matrimonial. Esse era o caso de Maria Isabel, personagem de A isca, conhecida por ser muito rica. Por isso, seu pai um homem sensato e pacato, a advertia: “– Os pretendentes a dotes gordos surgem de todos os cantos, são os cogumelos da humanidade. Sê prudente e não te deixes cair no anzol sem mais nem menos ... ”(AI, p. 15-16).
Apesar dos conselhos do pai e da vigilância da tia Milu, Isabel Maria não ficou muito tempo longe do anzol do caçador de dotes Antonio Seixas. Eles se conheceram de relance durante uma temporada de verão em Petrópolis. Tornaram-se a encontrar em um dos saraus musicais realizados na casa da Silveirinha, nome de um personagem que dá título a um romance homônimo de Júlia Lopes. Nesse segundo encontro, a indiferença que marcara o primeiro cedera lugar a uma certa contemplação muito expressiva. Por essa época, Isabel estava comprometida com André Sales, de quem só sabemos essa informação, e Antonio Seixas era noivo de Vera Landim, boa pianista e bastante exímia em ciências naturais. A união de Isabel e Antonio parece demonstrar que o amor como estímulo para o casamento ocupou lugar de menor importância. O enlace deles representa bem os moldes das relações amorosas entre final dos oitocentos e limiar dos novecentos: do noivado, curto e que nem sempre sucedia ao namoro, seguia-se o casamento.
Antonio é-nos apresentado como um homem que se acostumara a hábitos de rico. Por isso, “uma preocupação qualquer, mais forte do que todos os deleites espirituais, lhe distraía o pensamento” (AI, p. 20). Antonio, inserido num grupo de pessoas cuja maior qualidade eram “os mesmos gostos dispersivos”, estava absorto “em duas coisas: o amor e o dinheiro”. Para manter os hábitos que criara e que lhe custavam caro, Antonio precisava fazer uma grande fortuna. Alternativa que lhe aparece mais vantajosa é casar-se “com uma mulher muito mais rica do que a Vera Landim” (AI, p. 21) e, assim, não fazer figura triste entre os amigos. Antonio, então, decide que a solução para aumentar os seus exíguos rendimentos estava no casamento com Isabel. Ressentia-se por não se casar com Vera; mas Isabel podia concretizar muito mais rápido os sonhos dele de luxo e ascensão social. Casando-se com ela, Antonio poderia desfrutar da influência política e econômica do sogro.
Homem para quem o amor é apenas um dos produtos de uma transação mercantil, Aas procura capturar a sua isca Lamdimma fazer uma grande fortuna.certa contemplaçmatromonial.ntonio Seixas procura capturar a sua isca. E, assim, aproveitando que era época de carnaval, num dos passeios a que foram, “Antonio sentou-se ao lado de Isabel e tocava de vez em quando com a dela a sua taça de Champagne. Depois ofereceu-lhe um cigarrinho. Ela fez uma careta, mas aceitou. Ele ria-se e ela já o tratava, embaralhadamente, por tu e por você... Dias depois estavam noivos” (AI, p. ). O que une Antonio a Isabel é, portanto, o interesse material e econômico dele. O interesse sentimental e afetivo mal começara a brotar, eles estavam de casamento marcado. O enlace matrimonial com a filha do rico industrial se afigura a Antonio como substancialmente vantajoso, como um negócio da China.
Como dote, ser-lhe-iam oferecidos duzentos contos (o dobro do que recebera Fernando Seixas, de Senhora) e uma casa, além de sociedade na fábrica do futuro sogro. Decepcionado, Antonio alegrou-se, entretanto, ao lembrar que Vera Landim não possuía dote sequer a oferecer a ele. Embora não fosse o esperado, Antonio ainda saíra lucrando: Isabel lhe traria, de uma só vez, fortuna e importância. Assim, mais para alimentar os seus hábitos de rico do que para comemorar o seu casamento, “Antonio julgou-se um príncipe e atirou-se para a ourivesaria a comprar a crédito diamantes e perolas para a noiva. Pagaria depois, com o dinheiro que ela trouxesse, mas teria desde logo o prazer de se mostrar generoso e de a ver lisonjeada...” (AI, p. 32).
Todavia, se rápida foi a fisgada de Antonio, mais rápida ainda foi a sua decepção com o casamento. Do que ele sonhara ao contrair compromisso com Isabel, restaram-lhe apenas os duzentos contos e a casa da rua Marquês de Abrantes. Tudo o mais fora dilapidado pelo sogro antes de morrer. O dote recebido era insuficiente, depois de tantos gastos, para cobrir as despesas que Antonio fizera, uma vez que ia ser genro de um grande industrial. Até mesmo tia Milu, que vivera sob a proteção do pai de Isabel e que devotara a sua vida à família dela, foi dispensada e se viu “como uma mosca numa teia, sem saber para que lado mover-se, para não cair de todo nas garras da miséria” (AI, p. 55).
Tia Milu representa o papel de mulher desprestigiada por ser solteira. Como o casamento se apresentava para as mulheres, na maioria das vezes, como a única possibilidade de carreira, “permanecer solteira, além de pouco atraente e financeiramente inviável na maioria das vezes, implicava um desprestígio para a mulher” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 83). Devido à situação de dependência econômica absoluta, Tia Milu era a criatura mais obediente e explorada da casa onde prestava os mais muito relevantes: consideração, respeitabilidade, comodidade, economia, vigilância de mãe, noites mal dormidas, os quais não eram suficientes para modificarem a sua condição de parente pobre que vive à custa de favores. Aliás, como bem notara Schwarz (2000), a prática do favor foi uma das marcas de nosso Brasil oitocentista foi a prática do favor, a qual condicionava a ascensão social e “, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais”. Apesar disso, a prática do favor era uma estratégia mediante a qual se alimentava a ilusão de que nenhuma das partes envolvidas era escrava da outra. Como afirma Schwarz (2000, p. 20), “Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecido nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma”. Isso se aplica muito bem à Tia Milu, cuja situação dentro da casa dos Mendonça se modificou após a morte do cunhado:
Milu sentia-se desconsiderada e arrependida. O seu luto, feito com tecidos baratos e cosido pelas suas próprias mãos, dava-lhe a impressão de atestar aos olhos de todo mundo a sua decadência. Do que se arrependia era de ter passado a maior parte da sua vida no período da grande energia, como parasita de uma casa rica, a gastar a sua atividade em vigilâncias que não lhe tinham deixado nenhuma compensação pessoal... (AI, p. 43).
Ainda assim, tia Milu não deixou de visitar Isabel em cujo comportamento ela começava a perceber algumas mudanças. Com a morte do pai, sem o dinheiro esperado que viria como herança, Isabel se inquietava com as dívidas vultosas que foram contraídas por Antonio e por ela. Entretanto, tia Milu percebia que as preocupações de Isabel não eram as contas a pagar, e, sim, Antonio. Ela sabia que ele se casara pensando no dote de Isabel. Por isso, soam irônicas as seguintes frases da tia dita à sobrinha::
– E o amor? Perguntou então tia Milu, com tão encoberta ironia, que a outra não compreendeu.
– Ele ama-me muito.
– Pois isso é tudo. Quando há amor, que importa o resto?
– Quem ama não come?
– Apenas para sustentar-se, se não tem para mais, e com isso se deve sentir satisfeito. Que melhor dote para um homem que ama, que possuir a escolhida do seu coração e vê-la assim tão perfeita, tão boazinha como tu és? O Antonio não se casou com o teu dinheiro; casou-se contigo, e deve considerar-se o homem mais feliz do mundo, porque tu és uma mulher encantadora. Deves dizer-lhe isto mesmo, quando ele desesperar (AI, p.47).
O leitor, pelo que já vem acompanhando ao alo da narrativa, perceberá que tudo o que Tia Milu está dizendo soa como irônico porque o que moveu o casamento de Antonio e de Isabel foi exatamente o fato de ele ver a futura esposa como capital simbólico imprescindível à ascensão social dele. Se no imaginário da época, o corpo feminino era o mercado por onde circulavam os bens da família, Isabel era esse corpo de que Antonio queria tornar posse. Para ele, o matrimônio era visto como um contrato de natureza político-sócio-econômica. Aliás, essa foi a forma sob a qual o casamento foi concebido anterior à ascensão burguesa. Só com o advento da burguesia, emerge, dentre outras coisas, o conceito de amor conjugal e, neste caso, casa-se não mais por interesses políticos, econômicos e sociais, mas por interesses do coração.
Entretanto, como o casamento não evitou o fantasma de uma demonstração pública de penúria, era preciso a Antonio vislumbrar outras saídas a fim de que não se pudesse chegar a esse tipo de humilhação. Por isso, a ele só restava usar o que de mais caro lhe havia: sua esposa Isabel. Esta deveria, usando das artimanhas femininas, conseguir, sob as orientações do próprio marido, um emprego para ele com o Sr. Ministro Dr. Jordão. Assim como muitas outras mulheres, além das atividades estritamente ligadas à casa, a Isabel foi delegada uma outra função: estimular e ajudar, com sua simples presença e demonstração de dotes físicos, o seu marido na conquista de êxitos. Isabel é, portanto, utilizada como instrumento para favorecer os interesses do marido, ou seja, como capital e como expressão do êxito comercial de Antonio a fim de conquistar uma boa posição social e econômica para ele. Isabel, assim como muitas outras mulheres, passou a ser a responsável pelo sucesso e bom êxito de Antonio, que se valeu da habilidade e da demonstração dos dotes femininos da esposa como elementos decisivos na sua elevação social. Dessa forma, assim como muitas outras personagens da ficção oitocentista, Isabel tem seu papel social redefinido. A ela não bastava a atuação apenas no seio da família. Era preciso atuar também em sociedade:
– O Dionísio pediu-me para entrar com eles numa grande negociata com uma empresa americana. Aceitei. Estamos só à espera de umas instruções de Nova York. Entretanto, não seria mau que eu fosse ocupar o tal lugar no ministério... Convém-me mesmo estar do lado de dentro, o que me facilitará depois qualquer manobra. Isto são minúcias que não vêm ao caso: o principal agora é conseguir que o Vasco me dê o lugar, e para isso preciso de ti.
– De mim?!
– Pois então? Que melhor advogado poderei ter do que a minha mulherzinha? (AI, p. 63).
Assim, para contribuir no projeto familiar de mobilidade social, Isabel precisa convencer o ministro a dar o cargo que interessava a Antonio, que manteria o seu prestígio social e que empurraria o status de sua família mais e mais para cima. Para tanto, Isabel é instruída pelo próprio marido. Ela precisa se vestir bem, fingir que partiu dela mesma a idéia de ter uma conversa com o ministro. Ardiloso, Antônio precisava dirigir muito bem a mulher para representar o papel que ele mesmo escrevera para ela. Para Isabel, “era a primeira vez que ela entrava em cena para representar um papel estudado: devia procurar modelo para as sua atitudes. E aquele parecia-lhe excelente”.
Dias depois, a nomeação de Antonio foi recebida com espanto pelos amigos que ficaram curiosos para saberem como ele conseguira um dos cargos mais importantes da secretaria do ministro Vasco cuja assiduidade à casa de Antonio e de Isabel deram por desconfiar, fazer suposições. De Isabel, só quem olhasse bem para os seus olhos é que “teria a impressão de que atrás deles flutuava a sombra de um segredo íntimo, muito pessoal. Esse mistério, esse não sei quê de intátil e sutil, como que a tornava mais mulher e mais interessante” (AI, p.76). Antonio, por sua vez, estava bastante “excitado pela onda grossa dos bons negócios, que se avolumavam diante de si, mal percebia o traço de fel que se ia pouco a pouco acentuando nos lábios, antes sempre doces, da sua Isabel” (AI, p. 76).
Passado o embevecimento da fortuna conquistada, Antonio se via em uma situação delicada: livra-se do Vasco, “de quem já não precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado” (AI, p.77
()precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado pouco a pouco acentuando nos l). Com receio de ter o seu nome arrastado na lama, Antonio repreende Isabel pelo excesso de confiança que ela estava dando ao Vasco:
– Bem sabes que esse [o Vasco] vem todos os dias.
– Bem sei, bem sei! Todos, todos os dias! A mim isso me parece demais. Bastou! apre, bastou! Já não o posso tolerar nem quero tornar a vê-lo em minha casa!
– Agora . . .?! Retorquiu-lhe a mulher com ironia.
– Agora e sempre!
– Mas por quê?
– Porque não quero que arrastem o meu nome pela lama das ruas, entendeste? Tu bem sabes por quê! As suas assiduidades nesta casa estão tomando um caráter de intimidade que me desagrada imensamente e podem ser comentadas lá fora de modo desairoso para ambos nós. Eu não admito que isso suceda; eu não admito, ouviste? E a culpa tem sido tua, que lhe dás confiança. (AI, p. 82).
E Isabel, numa das cenas mais interessantes e de maior força dramática da novela, exaspera-se com Antonio:
– Minha?
– Sim, tua.
[...]
– Não me faças perder a cabeça, não me faças perder a cabeça, repetiu ele, de punhos cerrados, apoplético e terrível. Supus ter casado com uma mulher honesta e afinal...
[...]
– E afinal, acaba!
– Que és tu? . . . dize!
– Ah! pois ignoravas? Eu sou a isca. Eu fui a isca ... e não tenho sido outra cousa desde que me conheceste, e deves saber disso muito melhor do que eu mesma, que não compreendi as cousas senão depois delas passadas e irremediáveis.
– Cala-te.
– Agora está dito. Serviu-te o meu dote; serviu-te a minha beleza. Estás rico, estás farto, não precisas de mais nada, podes zangar-te e defender a tua honra; mas a ingênua morreu e a outra mulher que existe dentro de mim, melhor é que a não provoques, para que te não diga verdades desagradáveis.
Antonio levantou as mãos e cresceu para a mulher, lívido de raiva.
– Bate, concluiu Isabel, sem se mover do lugar em que estava. (AI, p. 84).
Arrefecidos os ânimos, Antonio e Isabel foram passar um tempo no interior. Quando regressaram, o Vasco já não mais assistia no Rio. Ele, que já estava se aborrecendo com a “insaciável avidez de negócios lucrativos, de que [Antonio] andava sempre à caça”, havia casado com uma viúva e fora morar nos estados Unidos. Para Antonio, a distância do antigo “amigo” alimentou-lhe a esperança de um novo horizonte. As relações com Vasco eram coisas do passado e lá deviam ficar enterradas lá como ficaram os ressentimentos de Isabel e pelo esposo. O coração dela arrefecera e estava unido ao do esposo pela ternura que ambos estavam sentindo pelo filho que estava por nascer:
O bebê esperado enlaçara o coração arrefecido dos pais numa corrente de ternura. Tinham-se perdoado tudo; viviam dele, por ele, na esperança de sua graça, da sua perfeição, da sua beleza. Tudo o que ficara no passado estava bem enterrado; agora só olhavam para frente, onde o vulto do filhinho lhes aparecia de diversos modos, em diversas idades . . .
Foi quando a criancinha veio ao mundo e que lhe deram o nome de Antonia Isabel, para que no próprio nome eles estivessem nela reunidos [...] (AI, p. 87).
Com esse adorável epílogo, podemos tecer algumas considerações últimas.Assim como muitas outras obras escritas anteriormente à sua publicação, A isca trata do casamento como um contrato social e coloca o dinheiro no cerne da trama. Essas mesmas obras, em sua maioria, representam o amor como um bálsamo capaz de restaurar o caráter moral perdido e de vencer os interesses econômicos no casamento. Ao contrário dessas obras, A isca, entretanto, vem apresentar um outro lenitivo: a família. Ou melhor, A isca vem reforçar a importância do amor familiar.
Em nome dos laços familiares, e não mais dos sagrados laços do matrimônio, Antonio e Isabel deixam de lado as rusgas e os dissabores do passado. Essa nova família, alicerçada nos moldes burgueses, vem reconfigurar os papéis do homem e da mulher no ambiente privado. Instaura-se, a partir daí, uma outra reorganização das vivências familiares e domésticas: um sólido ambiente familiar, um lar acolhedor. Dentro desse novo molde familiar, se a mulher possuía instintivamente o amor aos filhos e estava naturalmente preparada para se dedicar a eles, o homem não era mais apenas o provedor do lar. Tornara-se o pai, o chefe da família cuja incumbência maior era zelar pela felicidade e bem-estar da esposa e dos filhos. Revestidos dessa nova função, Antonio e Isabel parecem ter encontrado a sua mais alta realização humana. E assim, com essa cena familiar, a narrativa encerra-se com sabor de happy end.
[1] A primeira parte do título do presente trabalho é retirada de um texto da prof. Dra. Elódia Xavier, o qual se encontra no livro Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino, de autoria da referida professora. Além disso, este texto foi escrito para uma aula ministrada durante o meu estágio docência. Por isso, ainda precisa passar por algumas alteraçoes que serão feitas posteriormente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário