Poesia e resistência no Brasil:
o caso das poetisas oitocentistas
o caso das poetisas oitocentistas
Imbuído de um compromisso político de trazer à tona vozes femininas, há muito silenciadas ao longo de nossa historiografia literária, e de contribuir com a nossa memória cultural, o presente texto tem, explicitamente, dois objetivos. O primeiro é reiterar a relevância dos estudos voltados para a escrita de autoria feminina do passado. Aliás, contrariando a opinião de alguns, o estudo de um corpus deslegitimado de obras do século XIX e primeiras décadas do século XX não se configura como algo ultrapassado, anacrônico, fora de moda e constitui-se como uma das fortes linhas de pesquisa do GT Mulher e Literatura da ANPOLL. Partindo da análise de alguns textos literários, coligidos da Antologia de Escritoras Brasileiras do Século XIX (cf. MUZART, 2000 e 2009), o segundo objetivo consiste em refletir sobre a consciência que tinham as escritoras de tempos idos a respeito do difícil exercício de fazer literatura em um universo gestado por homens e para homens. Nesse caso, interessa-nos pensar em como a poesia serviu a tais mulheres-escritoras como exercício de resistência às investidas de uma sociedade falocêntrica dentro da qual, sendo o masculino o ponto de referência em torno do qual tudo o mais gravita(va), os valores femininos eram, inevitavelmente, a subordinação social, a afetividade, a fragilidade, além de outras marcas, como: a escuta, a espera, o guardar as palavras no fundo de si mesmas, aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se, calar-se (PERROT, 2005).
Na
consecução do primeiro objetivo, lembremos que a inserção da mulher, como
sujeito do discurso, no universo literário foi uma trajetória marcada por
lutas, receios e impedimentos, percurso semelhante nas demais esferas sociais
onde o feminino era obrigado a ficar sempre à margem. No caso da produção
literária feminina oitocentista ou bem anterior aos oitocentos, a avaliação
feita sobre ela por críticos da época revela a emissão de julgamentos calcados mais
em componentes ideológicos do que propriamente literários, de forma que,
enquanto se avaliavam como positivos os escritos masculinos, eram negativamente
avaliados os escritos femininos, designando-os de inferiores, de menores,
pueris, piegas. Sendo a produção literária feminina depreciada, ela reflete
também a condição social de quem a produz e que igualmente é desvalorizada.
Se
a mulher não desfrutava de prestígio social, se ela sempre foi apresentada como
submissa ao homem, não se poderia esperar que os escritos femininos obtivessem
a atenção e o valor que, de fato, mereciam. Por isso, como “falar sobre mulher
que escreve, criticar e analisar a sua produção é também uma forma de romper
com os preconceitos sociais, pois destaca a presença feminina num meio dominado
apenas pelo homem” (PAIXÃO, 1991: 175), acreditamos que a descoberta de um novo nome de
mulher-escritora, de um novo texto deve ser sempre recebida como uma
celebração, como um pai ou uma mãe que recebe de volta a casa o filho querido
há muito tempo distante.
Sobre esse aspecto,
recordemos, aqui, as seguintes palavras de uma poetisa pernambucana do século
XIX – Úrsula Garcia: “Quando depois de muitos anos o nosso olhar se demora nas
linhas de um manuscrito antigo, é sempre com um sentimento de melancolia e de
saudade. De saudade, sim, ainda mesmo que essas linhas tenham sido traçadas por
estranha e desconhecida mão” (FERREIRA, 1991: 09). Se há melancolia e saudade
ante um texto resgatado, existe também a alegria do retorno, da (re)descoberta,
da releitura ou da primeira leitura – lembremos que muitas de nossas escritoras
oitocentistas morreram e os escritos delas permaneceram nas gavetas de
guardados para sempre.
Enfim, ante um desses
textos escritos por mulheres de outrora, a sensação que temos quando os descobrimos
é a de deparar-se com um objeto que conseguiu vencer as barreiras do
esquecimento e sair da campa do álgido silenciamento, ainda que as mãos que o
escreveram permaneçam desconhecidas e posto que haja “perdas no passado que
nenhum presente mais recupera ou compensa. O que em certos momentos foi
desperdiçado, pelo silêncio ou por assertivas mal formuladas, perde-se para
sempre” (KOTHE, 1997: 59).
Por esse aspecto, o de que
há no passado perdas irreparáveis e irremediáveis, o resgate de autoras e obras
constitui uma alegria, uma celebração não aleatória, mas à memória de um país
conhecido justamente pelo epíteto de construir-se “sem memória”. Além disso, a
descoberta, muitas vezes entre poeiras de arquivos, de textos de autoria
feminina não deve ser tomada como positiva apenas porque esses foram escritos por
uma mulher. Devemos tomá-la como fonte que nos possibilita
“chegar a novas conclusões sobre a tradição literária das mulheres, saber mais
sobre como as mulheres desde sempre enfrentaram seus temores, desejos e
fantasias e também as estratégias que adotaram para se expressarem
publicamente, apesar de seu confinamento ao pessoal e ao privado” (WEIGEL apud MUZART, 2006: 76).
Celebrar a descoberta de
mulheres-escritoras, voltar-se para a leitura e para o estudo de seus textos é assumir
um compromisso com a nossa memória literária e exercer uma postura política de dar-lhes
visibilidade, mostrando a importância delas para a cultura e para a literatura
de nosso país. O estudo de escritoras de tempos pretéritos revela-se, pois, um
compromisso da crítica e do pensamento feministas contemporâneos com o nosso passado,
o qual serve como espécie de âncora para que não percamos o nosso endereço no
tempo, conforme afirmara Ezra Pound (cf. PERRONE-MOISÉS, 1998: 31).
Esse
empenho e esse interesse redundaram na revisão de alguns paradigmas que serviam
de esteio para certos valores e para determinadas instituições. Nesse sentido,
podemos destacar, ligeiramente, as reflexões e as críticas a uma instituição
como o cânone literário. Contemporaneamente, muito mais do que um conjunto de
autores e obras representantes de determinada cultura, ele passou a ser visto
como uma arena ideológica onde lutas são travadas em prol da obtenção e da
perpetuação de visibilidade em nossas vitrines literárias. Como tal, revela-se
uma instituição que atende a interesses de determinado grupo, mantendo-se
incólume, ante a exclusão de autores, autoras, obras e pensamentos que não
compactuam com a sua diretriz ideológica hegemônica. Dessa forma, entendemos
por que o nosso cânone é branco, misógino, racista e eurocêntrico. Perceber as
manhas e as artimanhas ideológicas em que ele se sustenta parece ser condição sine
qua non quando nos voltamos para o estudo de autoras e obras do passado, as
quais passaram a passos largos de nossas histórias literárias, caindo, quase
sempre, no limbo do esquecimento. Talvez seja isso o que faz dos estudos de
resgaste da autoria feminina uma luta ideológica que vem sendo travada, no
Brasil, desde o início da década de 70 do século passado.
Atualmente, podemos dizer
que vivemos uma nova etapa nos estudos de resgate de textos de autoria feminina
de tempos pretéritos. Se, inicialmente, o objetivo maior que arregimentava
estudiosos e estudiosas era o anseio por trazer à estampa obras e autoras
esquecidas; hodiernamente, embora esse objetivo ainda não tenha se arrefecido,
os estudiosos e estudiosas estão preocupados em fazer com que os textos e as
autoras, silenciados durante muito tempo, sejam lidos, analisados, comparados,
isto é, voltem a circular entre os leitores ou circulem pela primeira vez a fim
de fazê-los “emergir do limbo em que se encontram, inserindo-se, portanto, no
palco do debate vivo das ideias, ao mesmo tempo em que devemos ajustá-los, em
sua significação, aos limites do processo histórico” (BARBOSA FILHO, 2001: 15).
Em outras palavras, o processo de compreensão da sociedade brasileira não pode
deixar de lado a reflexão sobre o papel das mulheres (e de outros grupos
postos, secularmente, à margem) e as reais contribuições delas, sobretudo, à
cultura de nosso país. O esforço em compreender a contribuição artística e
intelectual de sujeitos que não fazem parte das estruturas hegemônicas de
poder, antes de tudo, é um dever da universidade brasileira, como bem apontou
Gilberto Mendonça Teles, há certo tempo, com as seguintes palavras que,
enunciadas em outro tempo, em outra situação discursiva, continuam, porém, bastante
atuais:
(...) Ora, no momento em que a Universidade brasileira
se encontra inteiramente dedicada à verticalização do seu ensino, promovendo a
expansão dos seus cursos de Aperfeiçoamento, de Especialização, de Metrado e de
Doutorado, não resta dúvida de que o lugar de produção de uma História Literária
que responda às exigências científicas da atualidade está forçosamente ocupado
pelo saber universitário. Compete às universidades brasileiras o levantamento
do material regional, a sua interpretação e o seu relacionamento com o corpus
já consagrado do que se denomina Literatura Brasileira. Mas esse estudo deve
ser feito à luz das teorias mais recentes, se não, o lugar da história acaba se
transformando na estória do lugar, regionalizando-se e perdendo o seu lugar de
ligação com a universalidade dos fenômenos da cultura nacional (TELES, 1980: 41).
Fazendo os devidos
ajustes, a fala acima pode, certamente, justificar e reforçar a razão de ser
dos estudos voltados ao resgate de textos de autoria feminina, empreendimento
esse que visa tirar do esquecimento não só as
obras e as autoras, mas também propiciar a reescritura de novos capítulos de
nossa história literária até então escrita com as tintas e os dizeres dos donos
do poder – homens, brancos, representantes de uma sociedade patriarcal. E aqui
chegamos ao segundo objetivo de nosso artigo: ler alguns textos de poetisas dos oitocentos com o intuito de
proceder a uma análise crítica de tais poemas, evidenciando, sobretudo, a
consciência dessas poetisas sobre a importância que o ato de escrever
desempenhou para elas, mulheres, geralmente, trancafiadas entre casas grandes,
sobrados e mocambos, todos esses espaços
orquestrados pela arquitetura masculina. A literatura, mais especificamente, a
poesia, locus de enunciação e de
resistência, foi, para as mulheres dos oitocentos, o lugar da fala possível:
Pois escrever poemas era, na maioria dos
casos, a única ocasião possível de dizer a si própria, de se construir sujeito
de uma fala. É o espaço onde cada uma se oculta ou se desvela, onde uma voz
antes silenciosa e silenciada pode dizer Eu, minha, meu, falando da impressão
que lhe causa uma paisagem, uma flor, o homem amado. É o espaço onde um Eu se
vê escrevendo, consciente de que sua voz ultrapassará os muros espessos do lar,
alcançará outras pessoas. Uma fala subversiva.
[…] Esta palavra feminina é uma
afirmação, a recusa da solidão, a instituição de um diálogo com o interlocutor
possível. Ela diz um ser feminino em seu desejo de ver claro em si, de se
relacionar com o próximo. A poesia é ao mesmo tempo espaço de evasão, de fuga a
um real esmagador e lugar onde outro real é criado, e um Eu se estrutura: no
desvelar os atributos ao seu ser, no descrever um fazer feminino, na entrega do
pensamento do sujeito lírico diante do Outro, seja ele o amado, uma amiga, o
Pai, a Mãe, Deus, o Leitor (FERREIRA, 1991: 13-14).
O imaginário poético das
escritoras oitocentistas era marcado pela reiteração de temas pré-determinados
socialmente, os quais, devendo ser sempre amenos e suaves, eram diferentes do temário masculino e não
deveriam ferir a moral e os bons costumes. Dentre a miríade de temas que a lírica
feminina oitocentista nos oferece, Siqueira e Dantas (1992: 136-137),
detendo-se em um corpus de poetisas
pernambucanas, elencam, como os mais constantes, os seguintes: “engajamento
político, religiosidade, tempo, infância, fé, dúvida, vida, sonhos/desejos,
felicidade, tristeza/dor/mágoa, natureza, amor, saudade, esperança, a poesia e
poemas dedicatórios – poliantéias”.
Dessa variedade temática,
a fim de atender ao segundo objetivo a que fizemos menção no início do presente
artigo, o que nos interessa são os poemas que fazem da poesia o seu escopo e a
partir dos quais ensejamos mostrar o grau de consciência revelado, de forma
sutil, mas bastante habilidosa, pelas poetisas ante as dificuldades que emergiram
quando ousaram fazer da escrita um espaço por onde as mulheres pudessem
circular, ainda que o discurso engendrado por elas estivesse pautado em um
aparente pedido de concessão.
Atrelado a esse aspecto,
os poemas aqui analisados, como poderemos constatar, fornecem um mosaico do
destino da mulher escritora no século XIX ou anterior a ele: “uma bela vocação
sufocada, o medo do ridículo, da crítica impiedosa dos que não admitiam para a
mulher outro espaço senão o lar” (FERREIRA, 1991: 13). Esses aspectos, por
exemplo, estão presentes no seguinte poema de Beatriz Francisca de Assis
Brandão, nascida, em Vila Rica, a 29 de julho de 1779, e falecida, a 5 de
fevereiro de 1868, no Rio de Janeiro:
Soneto
Estas,
que o meu Amor vos oferece,
Não
tardas produções de fraco engenho,
Amadas
Nacionais, sirvam de empenho
A
talentos, que o vulgo desconhece.
Um
exemplo talvez vos aparece
Em
que brilheis nos traços, que desenho:
De
excessivo louvor glória não tenho,
E
se algum merecer de vós comece.
Raros
dotes talvez vivem ocultos,
Que
o receio de expor faz ignorados;
Sirvam
de guias meus humildes cultos.
Mandei
ao Pindo os voos elevados,
E
tantos sejam vossos versos cultos,
Que
os meus nas trevas fiquem sepultados.
O primeiro verso do
soneto acima serve de apresentação aos versos que se vão ler, o que é
sinalizado pela presença do pronome dêitico catafórico “estas”. Todavia, ao invés
de tecer louvor aos seus escritos, a poetisa os deprecia, rotulando-os de
“produções de fraco engenho”, as quais, todavia, devem servir “de empenho a
talentos que o vulgo desconhece”. Neste
poema, o que vamos ter presente é a engenhosidade de uma mulher que sabe
transitar por um campo minado: a inserção no hermético e masculino mundo
oitocentista das Letras. Aparentemente, ela traz à tona o discurso de
desvalorização a partir do qual a produção feminina, quase sempre
depreciativamente, foi avaliada. Entretanto, a poetisa deixa claro que o
julgamento final sobre os méritos de sua obra será apresentado pelo leitor. O
problema nessa estratégia bastante engenhosa, a qual vai ser uma das marcas da
autoria feminina no século XIX, é que os leitores eram, em sua maioria, homens
e muitos deles, avessos à presença feminina nas letras, desqualificavam,
caluniavam ou simplesmente ignoravam tanto as mulheres-escritoras quanto os
escritos produzidos por elas.
Todavia,
nas fímbrias desse discurso em que notamos ter sido necessário às mulheres
mostrar certa modéstia (“de excessivo louvor glória não tenho”), a poetisa vai,
perspicazmente, mostrando os valores de seus versos de mulher: “Amadas
Nacionais, sirvam de empenho/ A talentos, que o vulgo desconhece” e “Raros dotes
talvez vivem ocultos,/Que o receio de expor faz ignorados;/ Sirvam de guias
meus humildes cultos”. O valor de tais versos está presente não só como uma
elaboração estética, mas, sim, como elaboração discursiva “engajada
politicamente” em pensar o lugar da mulher como escritora. Considerando-se o
primeiro aspecto, a poetisa não desconsidera os códigos estéticos vigentes à
época, elaborando sua poesia tomando como modelo uma forma já clássica: o
soneto, o qual será muito recorrente na produção de muitas mulheres do período
e que ainda hoje é a forma poética mais associada por nós ocidentais à ideia de
poesia. Sob o ponto de vista do segundo aspecto, “o do engajamento político”,
vejamos que o poema estabelece um oposição entre os vossos versos (do leitor,
homem, branco, ilustrado) e os meus (da poetisa, possuidora de fraco engenho).
A consciência de que estava transgredindo é tamanha que o soneto se fecha com
um verso como: “Que os meus nas trevas fiquem sepultados”, no qual se nota uma
das marcas mais indeléveis da escrita de autoria feminina nos oitocentos: o
ocultamento, o silenciamento, a impossibilidade de vir a lume.
E,
aqui, notamos uma aparente contradição: se a chave de ouro com que se encerra o
soneto referenda a ideia de apagamento dos escritos femininos, destinando-os ao
sepultamento nas trevas, isto é, se no que está posto notamos o cerceamento da
voz autoral feminina, a escritura do poema revela-se um ato contrário ao
socialmente estabelecido, configurando-se, assim, em uma postura subversiva que
sinalizava para a possibilidade de abertura da república das letras ao sexo
feminino. Ao imiscuir em seus textos a humildade ou a modéstia, meio que
forjadas, fórmulas utilizadas desde a Antiguidade, as mulheres-escritoras
estavam estrategicamente dialogando com a sociedade patriarcal e, pouco a
pouco, valendo-se desses artifícios, estavam dando corpo a uma luta que visava
a estender às mulheres o direito a obter visibilidade no fechado mundo
literário, dai por que é de desconfiarmos a recorrência com que o discurso
pautado, às vezes excessivamente, na modéstia e na humildade é reiterado nas
obras desses primeiras bandeirantes de nossas letras.
Muito mais do que um
pedido de concessão, de desculpas, esse discurso é o reconhecimento,
(in)consciente, do impedimento de as mulheres se assumirem como escritoras e,
portanto, configura-se, a nosso ver, como uma estratégia ideológica de resistência
ao obscurantismo a que muitas mulheres-escritoras eram relegadas. Atitude
semelhante à presente no poema que acabamos de comentar, encontramos neste
outro intitulado de soneto e escrito por Delfina Benigna da Cunha, que,
conhecida pelo epíteto de a musa cega, nasceu no dia 17 de junho de 1791, na
Estância do Pontal, município de São José do Norte, Rio Grande do Sul, e veio a
falecer no Rio de Janeiro, a 13 de abril de 1857:
Em
versos não cadentes, ó leitores,
Vereis
os males meus, vereis meus danos:
Da
Primavera as galas e os verdores
Nem
foram para os meus primeiros anos
Mesmo
n'infância exp'rimentei rigores
De
meus fados crueis sempre inumanos,
Que
só me destinaram dissabores
Mil
males revolvendo em seus Arcanos.
Sem
auxílio da luz, qu'Apolo envia,
Versos
dignos de vós tecer não posso;
Desculpai
minha ousada fantasia.
Com
estes cantos meus, mortais, adoço
A
mágoa que o meu estro só resfria:
Se
mérito lhe dás, é todo vosso.
Valendo-se
da moldura dos quatorze versos, a poetisa, mais do que a expressão de um drama
pessoal, a cegueira de que foi acometida desde menina, que a privou “da
primavera as galas e os verdores” e que a expôs ante “fados cruéis sempre
inumanos”, está falando de sua própria obra, isto é, “versos não candentes”,
não abençoados pela luz que Apolo, símbolo da inspiração artística, envia, ou
simplesmente frutos de uma “ousada fantasia”. A experiência pessoal de privação
da visão serve como subterfúgio para falar de outra experiência: a da mulher
como escritora. Acreditamos que, consciente do quão ousada estava sendo, pois
estava escrevendo quando o esperado era que ela assim não procedesse, é que a
poetisa estabelece uma negociação com o seu leitor, intensificando a
importância dele.
Assim como Beatriz
Francisca de Assis Brandão, autora do soneto anteriormente analisado, Delfina
Benigna da Cunha atribui aos leitores o poder de avaliar a obra dela, de
maneira que o mérito ou o demérito que porventura ela possa ter não é da
escritora, mas, sim, do leitor a quem a poetisa afirma não ter podido tecer
versos dignos. Esse discurso, mais do que uma queixa, revela uma constatação: a
desvalorização da mulher como sujeito capaz de contribuir para a sociedade, o
país, a cultura, desvalorização essa (eis aqui a engenhosidade da poetisa) que
era oriunda não de senões estéticos, mas, certamente, de posturas ideológicas
que reiteravam ser a cena literária espaço onde a mulher não podia figurar como
sujeito autoral, apenas como objeto de representação.
Já
que pesava sobre a mulher o peso da discriminação, da segregação, do
confinamento ao privado, era esperado que situação semelhante fosse a de seus
escritos. Para nós, que lemos esses textos com as lentes de hoje, muito mais do
que prestar uma condescendência desmedida, achando que, por terem sido escritos
por uma mulher, este ou aquele texto merece ser estudado, louvado, esses
escritos são um excelente registro de como se deu a atuação das mulheres
oitocentistas em uma sociedade patriarcal. Pelo que conseguimos encontrar
registrado, uma vez que as fontes são um problema nos estudos sobre mulher,
porque são quase inexistentes ou completamente apagadas, problema esse com o
qual se deparam os estudiosos e estudiosas ligados/as à linha de resgate, e
pelo que os poemas até agora analisados sinalizam, percebemos que as escritoras
oitocentistas, ao invés de afrontarem os valores patriarcais, valeram-se do
diálogo como estratégia possível de negociação. Elas não criticavam abertamente
os discursos que eram elaborados sobre a produção delas, mas também não os referendavam,
uma vez que, mesmo diante das dificuldades de se firmarem como escritoras, elas
escreveram e, mais do que isso, são conscientes do centro de onde emanam os juízos,
em negativo, de valor sobre a produção feminina: o leitor que era, geralmente,
homem, branco, ilustrado, típico representante de uma sociedade patriarcal e
mantenedor do sermo paternus.
Ante a avaliação
masculina e o peso de seu julgamento, a produção literária feminina vinha
sempre precedida de ressalvas: fraca, produzida por mulher, pueril, delicada,
amena, cor de rosa. Apesar de tais designativos, o que os donos do poder não
conseguiam entender era que a produção literária feminina constituía-se em uma
maneira diferente de representar formas outras de ser e de existir, como
podemos perceber neste poema que foi escrito por Cora Coralina, pseudônimo de
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nascida no dia 20 de agosto de 1889, na
cidade de Vila boa de Goiás, e falecida em 10 de abril de 1985. Curiosamente
intitulado de ressalva, o poema serve como uma espécie de introito não a um
livro, mas a um modo de conceber, sob a óptica feminina, o fazer literário:
Este
livro foi escrito
por
uma mulher
que
na tarde da Vida
recria
e poetisa sua própria
Vida.
Este
livro
foi
escrito por uma mulher
que
fez a escalada da
Montanha
da Vida
removendo
pedras
e
plantando flores.
Este
livro:
Versos...
Não
Poesia...
Não.
um
modo diferente de contar velhas histórias.
O
interessante no discurso presente no poema acima é que o sujeito lírico demarca,
claramente, a sua identidade, colocando-se como “uma mulher/que na tarde da
vida/ recria e poetisa a sua própria/Vida”. É o sujeito que escreve deixando
nitidamente a sua marca como autor, aliás, autora. Outro ponto a destacar é que
a fonte de onde ela retira o alimento de sua poesia é a própria vida. Então a
experiência vivida serve como substrato para a experiência lírica, de maneira
que a realização estética, muito mais do que ser enquadrada como versos ou
poesia, isto é, dentro de uma tradição e conforme preceitos já estabelecidos, é
apresentada como “um modo diferente de contar velhas histórias”. Para finalizar,
gostaríamos de tecer algumas considerações sobre o seguinte poema de Carolina
Wanderley, que nasceu em Açu, interior do Rio Grande do Sul, a 4 de janeiro de
1891, e veio a morrer, em Natal, Rio Grande do Norte, no dia 25 de agosto de
1975:
Meus versos
Guardo
com zelo e com carinho terno,
Como
se guarda a imagem de algum sonho,
Num
desfolhado, mísero caderno
Todos
os pobres versos que componho.
Neles,
as mágoas de minha alma externo,
Em
tudo há um tom nostálgico, tristonho.
Lembram
manhãs friíssimas de inverno,
Onde
não brilham um sol belo e risonho.
Algum
dia, mais tarde irei relê-los,
quando
cair-me neve nos cabelos
e
a vida me sorrir em doce paz.
E
então perguntarei cheia de espanto:
–
que dor foi essa que feriu-me tanto,
E
que não sinto nem lembro mais?
Assim
como os poemas das outras poetisas aqui comentados, Carolina Wanderley, ao
utilizar o adjetivo pobre como qualificativo para o substantivo versos,
também desmerece a sua produção poética, o que ocorre talvez em virtude do tema
abordado: “as mágoas da alma” que em tudo impregna com “um tom nostálgico,
tristonho”. Entretanto, o desmerecimento dos seus versos não é a tônica do
poema, mas, sim, o encontrá-los, tempos depois (“Algum dia, mais tarde irei
relê-los, /quando cair-me neve nos cabelos/ e a vida me sorrir em doce paz.”),
registros de sensações, emoções e dores que foram apagados com os anos: “E
então perguntarei cheia de espanto:/ – que dor foi essa que feriu-me tanto,/ E
que não sinto nem lembro mais?”. A seleção dos tempos verbais neste poema é
bastante interessante para a sua interpretação. No primeiro quarteto, no qual o
eu lírico fala do carinho que sente por seus versos, os verbos (guardar,
compor) estão no presente do indicativo a sugerir algo que quer permanecer ou
perpetuar-se como presente. No segundo quarteto, embora permaneçam flexionados
no presente, alguns verbos, como lembrar e brilhar, dão a ideia
de passado ou de algo (as mágoas, tom nostálgico, manhãs friíssimas de inverno)
que, intemporalmente, se presentifica. No primeiro terceto, os verbos passam,
agora, a ser todos flexionados no futuro, tempo este que, ao lado do pretérito
perfeito (em uma única ocorrência) e do presente do indicativo, que aparece
duas vezes, permanece no último terceto. A manipulação dos tempos verbais neste
poema é um recurso estilístico de que se vale a poetisa para falar de um tempo
que não mais existirá a não ser como uma ausência: o da adolescência. Além dos
verbos, a presença de certos adjetivos, como os que aparecem na primeira
estrofe (desfolhado, mísero, pobres), reforçam a ideia de ser a adolescência ou juventude algo
passado, esgarçado, acentuando ainda mais o seu caráter como um evento
pretérito que, no entanto, dada a sua importância como um evento significativo
para o sujeito lírico, se presentifica mesmo que seja em um mísero caderno.
Notemos
que a poetisa não fala de eventos, lembranças desse tempo que não volta mais,
até porque eles ainda não aconteceram ou estão por acontecer, como deixam
entrever os verbos no presente do indicativo. Todavia, de uma coisa tais
eventos não poderão escapar: o olvido, destino este que a poetisa antevê nos
versos que compõem os dois tercetos do poema. O conteúdo posto nestes tercetos
é interessante se lembrarmos que a escrita feminina do passado, de fato, era
algo que para algumas mulheres precisou ser esquecido, soterrado. Estamos aqui
pensando em certos textos confessionais, como as cartas ou diários, gêneros,
possivelmente, bastante cultivados pelas mulheres. Estas, geralmente quando se
casavam, tinham que se desfazer desses registros de um tempo em que sonhos eram
alimentados, esperanças tecidas, tempo esse que, com o advento da vida de
mulher casada, dona de casa, esposa e mãe de família, precisou ser deixado de
lado. Não lhes era condizente lembrarem-se dos arroubos da juventude.
Os poemas aqui
analisados, se, por um lado, versam sobre o silenciamento a que os textos de
autoria feminina foram submetidos, por outro lado, são materializações
concretas de que as mulheres fizeram da escrita um exercício
de resistência a toda uma política de cerceamento que, durante séculos, lhes
havia sido imposta. Como o vocábulo resistência
é-nos caro, detenhamo-nos nele um pouco. De acordo com Bosi (2002), tal
conceito que é de origem ética e não estética, em sentido mais profundo, “apela
para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito.
Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir” (BOSI, 2002: 118).
Mais
uma vez as poetisas e os poemas escolhidos podem servir como exemplos do que
vem a ser resistência, na concepção apresentada no parágrafo anterior. Para as
poetisas em epígrafe, assim como, sem temermos as generalizações apressadas,
para todas as nossas primeiras bandeirantes das Letras, escrever representou
uma força da vontade que resistiu à pressão ideológica de outra força que lhes
era adversa: não escrever. Essa última era exterior às mulheres-escritoras
porque advinha de um conjunto de discursos que reiteravam ser o ato de escrever
não pertencente ao universo feminino e, portanto, proibido a toda e qualquer
mulher. A força externa procurava tragar tais mulheres-escritoras para o campo
da desistência, mas a força da vontade as compelia à insistência, tanto que
elas, na tensão que marca a resistência, isto é, insistir, mas estar na
iminência de desistir, foram, de certa forma, alterando as relações de poder; e
a resistência delas pode ser lida pelo viés da “oposição, divergência,
transgressão, ruptura, insatisfação que implica relação de poder” (OLIVEIRA,
2008: p.35)”, mas também do diálogo e da
negociação com os valores e as estruturas hegemônicas de poder.
Embora,
segundo afirma Oliveira (2008), a oposição, a divergência, a transgressão, a
ruptura e a insatisfação sejam marcas da resistência, devemos frisar que, a
nosso ver, em se tratando de escrita de autoria feminina no Brasil
oitocentista, considerando-se o discurso materializado nos poemas até agora analisados,
a resistência foi desenvolvida pelas mulheres-escritoras não no embate direto. Se
“cada um resiste à pressão ideológica que lhe parece mais adversa” (BOSI, 2002:
122), as escritoras oitocentistas, a nosso ver, negociaram com as estruturas do
poder e com os valores do patriarcado, trazendo-os, sobretudo, para o interior
de seus escritos, o que pode ser tomado como estratégias de resistência e de
inserção. Estabelecendo tais negociações, elas puderam, paulatinamente,
adentrar no domínio masculino e experienciar, pela escrita, novas formas de ser
e de existir que resistiram, por sua vez, ao apagamento cultural.
Em
outros termos, ao
contrário de partirem para o embate direto contra os preceitos da sociedade em
que elas estavam inseridas, dialogaram com os valores dessa sociedade assumindo
o discurso da concessão, do pedido de permissão, como estratégia política de
resistência ao silenciamento e ao ocultamento ao mesmo tempo em que, pouco a
pouco, iam inserindo-se em terras até então estranhas: a do universo masculino
da escrita, a do reconhecimento e aceitação pública dos próprios pares e do
público. Exposta a cara, devia-se ter cuidado com o tapa que inevitavelmente
não deixou de atingi-las.
Por fim, finalizemos
reiterando que o nosso objetivo foi, portanto, mostrar que a poesia feminina
oitocentista revela um veio de consciência crítica a respeito da recepção do
exercício poético realizado por mulheres. Essa foi, portanto, uma das
estratégias de resistência a partir da qual as mulheres obtiveram um lugar
possível de enunciação em meio a todo um ambiente que clamava pelo
silenciamento da voz feminina, embargando, sem obter muito sucesso, as
tentativas empreendidas pelas mulheres em prol do direito de se fazerem
partícipes em nossa República das Letras. Nesse trajeto, para lembrarmos o
poema que nos serve como epígrafe, a poesia, ao mesmo tempo em que era arma de
resistência, foi guia que, não sucumbindo aos discursos de opressão e de
cerceamento, permitiu que muitas das mulheres, por vias apócrifas, uma das
quais a própria poesia, salvassem a si próprias falando quando a ordem era
calar-se, nomeando-se e doando um sentido a si e a toda uma existência tecida
por detrás dos panos.
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