QUANDO O AMOR É LEVADO A NÃO DAR CERTO:
DESEJO E INTERDIÇÃO NA LITERATURA
Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Estadual da Paraíba – Campus VI
I. INTRODUÇÃO
Concebida como uma forma de investigação literária que confronta duas ou
mais literaturas, a literatura comparada não apresenta, a priori, nenhum problema. Entretanto, a prática do comparativismo
literário revela uma miríade de perspectivas de investigação, com uma
diversidade de metodologias e de objetos de análise, dando à literatura
comparada um campo de atuação muito vasto. Dentro desse cenário, como aponta
Carvalhal (2000), encontramos trabalhos que visam examinar a migração de temas,
motivos e mitos nas diversas literaturas, outros que buscam estabelecer as
influências de fontes e sinais, além dos que se voltam para a comparação entre
obras pertencentes a um mesmo sistema literário ou para os processos de
estruturação das obras.
Apesar das dificuldades em precisar o
que vem a ser literatura comparada, parece que existe um consenso: o de que a
literatura comparada não pode ser tomada apenas como sinônimo de comparação.
Esta está para a literatura comparada como um procedimento metodológico que
permite ao comparatista, no confronto entre duas ou mais obras, não só
estabelecer as semelhanças, mas, sobretudo, evidenciar as diferenças. Por isso,
a comparação, nos estudos de literatura comparada, deve ser vista como um meio
e não como um fim. Como procedimento metodológico, a literatura comparada
permite-nos enveredar por várias trilhas do pensamento humano.
Nesse caminho, as fronteiras existentes,
antes de impedirem o exercício do comparativismo, servem como estímulo ao
conhecimento do Outro, são um convite a navegar por territórios estranhos, a
descobrir que aquele que vemos como estrangeiro pode ser nós mesmos. Enfim,
como afirma Allegro (s/d), pela literatura comparada somos levados a “descobrir
que o ‘’Outro’’ pode ser o ‘’Mesmo’’ ou que o ‘’Outro’’ pode ser ‘’Eumesmo’’,
ou simplesmente o “Outro’’; é valer-se da oportunidade de olhar longe para ver
de perto como o Outro fala, do que o Outro fala, o que o Outro pensa, onde o
Outro vive, como vive;”.
Ainda segundo Allegro (s/d), várias são,
portanto, as trilhas de que o comparatista pode, usando a literatura comparada
como método, servir-se para obter o entendimento do Outro. Ele pode, então,
recorrer à tradução literária, à estética da recepção, à intertextualidade, aos
polissistemas literários, dentre outras. Para o presente trabalho, a fim de
pensarmos em alguns aspectos concernentes ao exercício da literatura comparada,
ater-nos-emos às relações intertextuais que marcam o diálogo entre os seguintes
contos: “O segredo de Brokeback Mountain”, escrito em 1997 pela norte-americana
Annie Proulx, em que se baseou o cineasta Ang Lee para produzir, em 2005, o
filme homônimo, que chegou a ganhar três oscars, e “Do outro lado do lago da
aldeia também é proibido”, retirado do livro Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão (2007),
reunião de contos homoeróticos escritos pelo paraibano Antonio de Pádua Dias da
Silva.
II. Do espaço do
desejo homoerótico: o silêncio urdido nas relações intertextuais
O termo intertextualidade, cunhado por Júlia Kristeva, a partir de estudos
da obra de Bakthin, diz respeito à capacidade que um texto tem de remeter a
outro texto, de forma que, no dizer de Kristeva, um texto se constitui em um
verdadeiro mosaico. As obras, aqui escolhidas como corpus, mantêm entre si relações intertextuais que podem ser
perceptíveis a partir da temática. Em ambas, temos representadas, com suas
alegrias e tristezas, as relações amorosas entre sujeitos que amam outros do
mesmo sexo, ou melhor, sujeitos que são marcados pela impossibilidade de amar,
porque o outro do seu afeto pertence ao mesmo sexo. Aqui, cumpre esclarecermos
que não nos interessa discutir o que entendemos por “mesmo sexo”. Para isso,
remetemos o leitor a Costa (2000). A intenção do presente artigo é, dentro de
uma intenção comparatista, analisar tais obras a partir da representação das
relações homoafetivas. Acreditamos que, ao colocarem no cerne da narrativa
essas relações, tais obras visam contribuir para uma “visão mais sutil das
relações afetivas entre homens”, de forma que elas, rotuladas de esquivas,
sejam vistas a partir de uma perspectiva destituída de preconceitos, de
mal-estar de que foram acometidas, e ainda são, as relações entre iguais.
No estudo das obras em pauta, o espaço
diegético desempenha um papel importante, sobretudo, porque esse marcador
textual funcionará não apenas como lugar físico por onde desfilam as
personagens da diegese narrativa, mas, simbolicamente, como metáfora para a
interdição contra a expressão do desejo de sujeitos pertencentes ao mesmo sexo.
Nas obras em apreço, o espaço emerge como um elemento estrutural que, para além
dos lugares sociais representados e das configurações dos cenários íntimos das
personagens, problematiza as relações de gênero e de sexualidades, sendo,
portanto, o locus de enunciação de
sujeitos cujos desejos só podem se expressos em espaços restritos onde aquele amor,
gestado em silêncio e, talvez, para o silêncio, pode ser vivido longe dos
interditos sociais. Aliás, o silêncio parece ser o signo que “abençoa” essas
relações que fogem à heterossexualidade normativa e que, desde o início, como
apontaremos depois, parecem ser marcadas pelo trágico.
Em O
segredo de Brokeback Moutain, o sintagma silêncio, embora não apareça explicitamente, já está implícito na
palavra segredo, uma vez que, dentre
as acepções em torno dessa palavra, está aquela segundo a qual o vocábulo segredo significa “o que não deve ser
revelado”. Por extensão, podemos dizer que se pede segredo para aqueles fatos
ou ações que devem ser mantidos em silêncio. No conto de Annie Proulx, ao
leitor é revelado aquilo que, dentro da diegese narrativa do conto, é preciso
segredar: a relação entre dois jovens cowboys: Ennis del Mar e Jack Twist,
“ambos garotos do interior sem o ensino médio completo e sem perspectivas,
preparados para dar duro e passar necessidades, ambos de modos e fala rudes,
acostumados à vida estóica” (PROULX, 2006, p. 07). Esses sujeitos, protagonistas
da história, marcados pelas agruras da vida e por carências afetivas,
encontraram-se na primavera de 1963, quando ambos foram trabalhar um como
“ovelheiro e [o outro como] coordenador de pasto para a mesma operação de
ovelhas a norte de Signal. O pasto de verão ficava acima da alameda em terras
do Serviço Florestal na montanha Brokeback” (PROULX, 2006, p. 08). Ennis del
Mar e Jack Twist, a princípio, são representações dos típicos cowboys americanos.
Vejamos como o narrador no-los apresenta:
À primeira vista, Jack
parecia bastante bonito com aquele cabelo cacheado e aquele riso fácil, mas,
para um homem baixo, era meio cadeirudo e seu sorriso revelava que era dentuço,
não a ponto de poder comer pipoca no gargalo de uma garrafa, mas ainda assim
chamava atenção. Era apaixonado pela vida de rodeio e apertava o cinto com uma
fivela pequena com um boiadeiro em cima de um touro, mas suas botas eram
surradas demais, tão furadas que não tinham mais consertos, e ele estava louco
para se ver em qualquer lugar que não fosse Lightning Flat.
Ennis, de nariz aquilo e cara
estreita, era desgrenhado e tinha o peito meio encovado, equilibrava um tronco
pequeno em pernas compridas e finas, possuía um corpo musculoso e ágil feito
para andar a cavalo e brigar. Seus reflexos eram extraordinariamente rápidos e
ele era perspicaz o suficiente para não gostar de ler senão o catálogo de selas
Hamley’s (PROULX, 2006, p. 10-11).
Pela descrição feita dos personagens,
não somos levados a pensar que esses sujeitos “machos” possam sentir afeto,
atração por outro do mesmo sexo. Entretanto, devemos ter cuidado com o fato de
incorrermos em erros devido a determinadas cristalizações instaladas
“inconscientemente” em nosso imaginário, como se apenas sujeitos que não se
enquadram no ideal de masculinidade pudessem ser susceptíveis de desejarem
outros iguais, de relacionarem-se afetivo-sexualmente e de diversas formas com
outros do mesmo sexo biológico. A acreditar-se nisso, é como se defendêssemos a
existência de um conjunto de traços que condicionariam a expressão da
sexualidade homoerótica em quem quer que a possua (COSTA, 2000).
Os contos, aqui analisados, vêm mostrar,
a partir da construção/representação dos personagens protagonistas, que a
expressão do desejo homoerótico não está atrelada a traços físicos e/ou
psíquicos, como erroneamente somos levados a pensar quando associamos
homoerotismo à pusilanimidade, à efeminamento e não à virilidade, à
masculinidade (COSTA, 2000). Pelo contrário, os contos em pautam sinalizam que
as pulsões homoeróticas podem ser vistas como uma expressão de uma
subjetividade que não é aprovada pelo ideal sexual da maioria que quer ver
homogeneidade onde há heterogeneidade, pluralidade, de forma que a privação da
expressão do desejo entre iguais, segundo Costa (2000), chega a constituir um
paradoxo sob o qual se assenta a nossa sociedade, a qual incita, por um lado, a
ideia de realização afetiva e sexual e, por outro lado, nega essa realização
quando ela se dá entre sujeitos do mesmo sexo.
Esses “dois diabos rumo a lugar nenhum”
terão suas vidas mudadas profundamente, depois da curta convivência em
Brokeback. A montanha será o palco onde eles, impelidos pela solidão a que os
expunha o árduo trabalho, irão vivenciar novas potencialidades de suas
sexualidades. Nesse aflorar do lado homoerótico dos personagens, o ambiente em
que eles foram trabalhar desempenha papel preponderante. Longe da visão
determinista que marcou a prosa naturalista, segundo a qual o homem é produto
do meio, o espaço na obra em apreço, em certo sentido, propicia, entretanto, as
condições para que os personagens, diante da solidão, possam, no começo, ajudar
um ao outro na superação das adversidades do trabalho e, depois, como fruto dessa
convivência, venham a ver no companheiro de trabalho o objeto de seu desejo,
sentimento esse que ambos lutam secretamente para entender e manter: “Felizes
de ter um companheiro onde não esperavam encontrar nenhum” (PROULX, 2006, p.
17), Ennis e Jack, de tanta convivência, vão ter uma relação mais íntima que
transcenderá o campo de trabalho e que possibilitará o cultivo de um amor no
masculino e para o masculino:
– Caramba, pára de martelar e vem cá. O colchão é
grande – disse Jack com uma voz irritadiça e sonolenta. Era grande e quente o
suficiente, e em pouco tempo eles aprofundaram consideravelmente a intimidade.
Ennis andava a toda em todas as estradas, estivesse consertando uma cerca ou
gastando dinheiro, e não queria nada disso quando Jack pegou a mão esquerda
dele e levou-a até o próprio pau enrijecido. Ennis retirou a mão depressa como
se estivesse tocado em fogo, ajoelhou-se, desafivelou o cinto, abaixou as
calças, pôs Jack de quatro e, com a ajuda da superfície escorregadia e de um
pouco de cuspe, penetrou-o, nada que tivesse feito antes, mas não havia
necessidade de manual de instruções. Fizeram tudo em silêncio, a não ser por
algumas tomadas de fôlego bruscas e o anúncio – o canhão vai disparar – abafado
de Jack, depois tirar, deitar e dormir (PROULX, 2006, p. 19).
O interessante no excerto acima não é a
descrição da relação sexual entre dois iguais, mas a ênfase do narrador em
mostrar o quão era nova para os personagens essa experiência. Por ser nova,
essa experiência, em certo sentido, tem um caráter desconcertante para os
personagens: “[...] Ennis disse: ‘Não sou bicha’, e Jack interveio com ‘Nem eu.
Primeira e última vez. Não é da conta de ninguém a não ser da gente’” (PROULX,
2006, p. 20). Entretanto, o fato de terem cedido aos seus desejos não fará dos
protagonistas do conto em tela sujeitos marcados pela culpa. Pelo contrário, a
impossibilidade da vivência amorosa entre esses personagens advirá das coerções
sociais que criaram uma miríade de interditos que visam à não concretização do
desejo entre iguais. A impossibilidade da vivência amorosa que marca sujeitos
do mesmo sexo pode ser vista no momento em que, terminado o serviço para o qual
foram contratados, o narrador descreve a separação entre Ennis e Jack:
[...] eles se apertaram as
mãos, cada um deu um tapinha no ombro do outro, depois havia doze metros de
distância entre eles e nada a fazer senão ir cada um para um lado. Menos de um
quilometro e meio depois, Ennis sentiu como se estivessem lhe arrancando as
tripas, puxando de metro em metro. Parou na beira da estrada e, na neve fresca
que caía em turbilhão, tentou vomitar mas nada saiu. Nunca se sentiu tão mal e
a sensação custou a passar (PROULX, 2006, p. 24).
Passado algum tempo, Ennis e Jack voltam
a se encontrar, e parece que a distância que os separou só fez tornar mais
intenso o desejo de que eles foram acometidos durante o período em que
trabalharam na montanha Brokeback. O excerto abaixo mostra como o encontro
entre Jack e Ennis é marcado por desejo, o calor que uniu os corpos em meio ao
frio intenso do inverno na montanha Brokeback ainda mantinha-se aceso, tanto
que a descrição que o narrador faz do reencontro entre os amigos vaqueiros não
só nos dá a justa medida do quanto foi intensa a relação entre os dois como
também nos passa a impressão de que os dois personagens estão tendo, de fato,
uma relação:
[...] Eles se agarram pelos
ombros, abraçaram-se com força, cada um espremendo o ar de dentro do outro,
dizendo: filho-da-puta, filho-da-puta, depois, e com a facilidade com que a
chave certa gira as lingüetas da fechadura, suas bocas se encontraram, e com
força, os dentões de Jack tirado sangue, seu chapéu caindo no chão, a barba
arranhando, a salivação aumentando [...] e eles ainda agarrados, peito e
virilhas e coxas e pernas coladas, pisando nos pés um do outro até se separarem
para respirar e Ennis, desajeitado para palavras de carinho, disse o que dizia
a seus cavalos e suas filhinhas, benzinho.
[...]
Seu peito palpitava. Ele
sentia o cheiro de jack – o cheiro intensamente familiar de cigarro, suor
almiscarado e uma leve doçura de relva, e, com isso, o frio agressivo da
montanha (PROULX, 2006, p. 27-28).
Se antes era a montanha o lugar em que
eles podiam se amar, agora Ennis e Jack têm de procurar outros espaços onde é
possível que o desejo de um pelo outro possa ser concretizado. Sobre esse
aspecto, é interessante a observação de Ennis, quando este diz o seguinte a
Jack: “Não vamos pode estar perto um do outro de forma decente se o que aconteceu
lá – virou a cabeça na direção do apartamento – nos pegar assim. Se fizermos
isso no lugar errado estamos mortos. Nesse não tem rédea. Me mijo de medo”.
(PROULX, 2006, p. 35). O receio de Ennis é interessante porque aponta para o
fato de que, como afirma Costa (2000, p. 20-21), “viver sendo considerado dia a
dia como ‘homossexual’ é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para
muitos homens”. Em virtude disso, como a relação dele com Jack é algo que
transgride o que é socialmente aceito, afastando-se dos ideais sexuais da
maioria, ela não pode ser vivida em todo e qualquer espaço, daí por que a
escolha por espaços isolados como a montanha ou mais reservados como os motéis.
Enfim, lugares que segredam aquele amor que não pode dizer o nome. Por isso, os
encontros entre eles eram sempre bastante furtivos, embora possuíssem, sempre,
uma coisa que nunca mudou: “o brilho de suas cópulas bissextas era obscurecido
pela sensação de que o tempo voava, nunca era suficiente, nunca bastava”
(PROULX, 2006, p. 49).
Apesar disso, Jack chega a aventar a
possibilidade de ele e Ennis viverem juntos em que eles teriam “uma fazendinha
juntos, um negocinho de criação de gado, seus cavalos, seria uma vida gostosa”
(PROULX, 2006, p. 35-36). Entretanto, as amarras sociais e os interditos são
bem maiores do que o desejo de união, de forma que a relação de Ennis e Jack
parece, desde o surgimento dela, marcada pela impossibilidade de duração: “A
gente não pode. Estou atolado com o que tenho, preso no meu próprio laço. Não
dá para sair. Jack, não quero ser como esses caras que às vezes a gente vê por
aí. E não quero morrer” (PROULX, 2006, p. 37). A
referência ao termo “laço” não é aleatória, porque aponta para o fato do quão
presos estão os personagens aos ditames sociais, de forma que se torna quase
impossível desvencilhar-se deles. Qualquer tentativa é vista como uma
transgressão ao socialmente estabelecido, de maneira que os sujeitos que rompem
com a ordem do discurso social, o laço, símbolo de aprisionamento, portanto, devem
ser punidos. Ennis e Jack não sairão incólumes: um será punido com a morte; o
outro, com a vida solitária sem a presença do outro de seu afeto.
Ennis e Jack são, devido aos ditames
sociais, obrigados, portanto, a viverem de forma esquiva, quando, se não fossem
esses ditames, eles poderiam ter vivido uma vida juntos, que não chega a, de
fato, se concretizar porque ambos os personagens sendo compelidos a se
assujeitarem “à heterossexualidade compulsória, à matriz heterossexual que
designa a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, os
gêneros e desejos são naturalizados” (MUNIZ, 2008, p. 131). Dessa possibilidade
de união que sempre existiu apenas como um devir nunca concretizado, restou
apenas a montanha Brokeback, já que “Tudo foi construído lá”, a qual ficou
gravada na memória afetiva de ambos os personagens por lá ter sido o lugar em
que eles, livres das amarras sociais e dos interditos, puderam viver o desejo
de terem um ao outro:
A coisa de que Jack se
lembrava e com que sonhava de uma forma que não conseguia evitar nem entender
era a vez, naquele verão distante de Brokeback, em que Ennis chegara por trás e
o puxara para junto dele, o abraço mudo satisfazendo alguma fome compartilhada
e assexuada (PROULX, 2006, p. 54).
A montanha Brokeback tornar-se-á mais significativa ainda depois da
misteriosa morte de Jack, uma vez que não sabemos ao certo se ele morreu em um
acidente ao consertar o pneu do carro ou se foi morto a mando de sua mulher que
descobriu ser o marido gay. Descoberta a morte de Jack, Ennis, agora solitário,
vai à procura dos pais dele e, em um dos momentos mais tocantes do conto,
adentra no quarto que fora de Jack:
No lado norte do armário, um discreto desvio na parede
criava um pequeno esconderijo, e ali, dura depois de muito tempo pendurada num
prego, estava uma camisa. Ele tirou-a do prego. A velha camisa de Jack da época
da Brokeback. O sangue seco na manga era seu próprio sangue, um sangramento
nasal violento na última tarde na montanha quando Jack, naquele agarramento
contorcionista deles, dera uma joelhada violenta no nariz de Ennis. [...].
A camisa parecia pesada até ele ver que havia outra
dentro dela, as mangas cuidadosamente vestidas nas mangas da de Jack. Era a sua
camisa xadrez, perdida, achava ele, muito tempo atrás em alguma lavanderia, o
bolso rasgado, faltando botões, roubada por Jack e escondida ali dentro da
camisa dele, o par igual a duas peles, uma dentro da outra, duas em uma. Ele
colou o rosto no tecido e inspirou devagar pela boca e pelo nariz, esperando
sentir algum leve vestígio do cheiro de Jack, ranço salgado e doce de cigarro e
sálvia da montanha, mas não havia propriamente cheiro, só a lembrança de um, a
força imaginada da montanha Brokeback da qual nada restava senão o que ele
tinha nas mãos (PROULX, 2006, p. 63-64).
No dizer de Muniz (2008, p. 132), “a morte de Jack e a sobrevivência
solitária de Ennis remetem à clássica associação entre crime e castigo, pecado
e punição, desvio e exclusão, estabelecida pelo sistema normativo e controlada
pelo poder disciplinador”. Com esse desfecho, é como se o exercício da
sexualidade não pudesse ocorrer para além da heterossexualidade normativa que
“fixa papéis/comportamentos e materialidades corporais masculinas e femininas”
(idem). Da união que precisou ficar no armário, aprisionada, restaram apenas
aquelas camisas. Metonímia interessante da união entre dois iguais que tiveram
de permanecer separados: devido aos interditos sociais e devido à morte de um
deles. Das dificuldades dessa relação, ficaram as nódoas de sangue, símbolo da
dor, mas também da alegria. Por isso, as camisas são preservadas por Ennis ao
lado de um cartão-postal cuja paisagem é a de Brokeback. Espaço da realização
amorosa proibida, a montanha também é o local onde Jack queria ser enterrado.
Se tudo começou lá, é nela que tudo deve findar ou permanecer, ainda que como
uma vaga lembrança. É uma lembrança como dói!
No conto “Do outro lado do lago da
aldeia também é proibido”, temos, assim como no texto de Annie Proulx, uma
história entre dois iguais que se deixam levar por suas pulsões homoeróticas,
transgredindo as rígidas normas sociais da velha aldeia de Narayma. Os
personagens envolvidos são A-Lang e Lee. Não sabemos até que ponto a nossa
impressão pode estar certa, mas o nome de ambos os personagens lembram,
anagramaticamente, o nome do diretor do filme O segredo de Brokeback moutain: Ang Lee. Coincidência ou diálogo
intertextual? Além dessa possível intertextualidade, o conto de Antonio de
Pádua Dias da Silva remete-se ao texto de Annie Proulx, por fazer do
aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo de iguais o tema principal.
Aliás, desde a epígrafe do conto (Com
homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação), retirada de
Levítico, vamos percebendo que a grande isotopia que marca o conto do começo ao
fim é a do aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo entre iguais.
O espaço em que se desenvolve o efêmero caso de amor entre A-Lang e Lee é
bastante semelhante ao do conto de Annie Proulx: “Do lado da montanha, muito
gelo, poucas folhas, bastante frio. [...] Narayama era o nome da aldeia. Nada
acontecia de extraordinário naquele lugar. Era inverno.” (SILVA, 2007, p. 59).
A aparente calmaria desse lugar, marcado pelo frio do inverno a determinar
também álgidas relações entre os seus habitantes (a comunicação entre as
pessoas era praticamente impossível, não fosse a astúcia dos velhos provedores
dos lares), será alterada sensivelmente, desde que A-Lang “havia visto, antes
de o inverno chegar, o olhar do filho do seu cunhado, que acabara de chegar de
terras muito longes para ajudar a família a enfrentar o inverno rigoroso
daquele ano” (SILVA, 2007, p. 60).
No espaço ocupado pela aldeia de Narayma e marcado por pessoas de
“expressões tristes, corpos retesados”, A-Lang e Lee ousarão quebrar a aparente
harmonia, ao darem vazão às suas pulsões homoeróticas. Assim como Ennis del Mar
e Jack Twist, A-Lang e Lee sentem-se, a priori, perturbados com essa
descoberta:
Era inverno e os corpos estavam retesados. Havia neve
e nada de nuvens de poucos balões a soprar uma tranqüila brisa nas cabanas de
Narayma. A-Lang estava pensativo e queria uma palavra. Lee não sabia como
esconder o fato e não sabia compreender. Em torno da neve e do fogo, dois
corações sem nenhuma história. Envoltos em pensamentos apaixonados e uma gama
de valores a serem considerados” (SILVA, 2007, p. 60).
Na descrição da paixão entre A-Lang e Lee, é interessante notar que os
signos usados para representar o cálido sentimento entre esses personagens
(trêmulo de desejo, corpo febril) se opõem aos signos usados para representar o
espaço físico onde habitam as personagens e pertencentes todos ao campo
semântico da frieza, representando a rigidez dos códigos sociais que regem a
aldeia de Narayama e a imutabilidade das coisas lá estabelecidas. Desafiando os
códigos estabelecidos em Narayama, A-Lang e Lee resolvem concretizar aquilo que
era apenas sentindo, desejado, mas não consumado. Se antes o inverno era a
estação que vira nascer aquele desejo e, de certa forma, contribuíra para
coagir a sua realização, agora a primavera parece vir a ser cúmplice na
aproximação dos amantes. A mudança de estação aponta a mudança de estado entre
A-Lang e Lee. Antes a interdição no inverno; agora, a realização na primavera:
Era uma outra a estação a que cruzaram. As flores
tinham aspecto de alegria. O cheiro do campo e da fumaça lembrava que não havia
lembrança. Era outra estação naquela estação. Como antigos conhecidos que eram,
correram em busca um do outro. E no centro da margem do lago, lado esquerdo,
próximo a um partido de bambu, os dois se encontraram (SILVA, 2007, p.
62).
Desse excerto, gostaríamos de destacar a ênfase que o narrador dá ao
local do encontro entre A-Lang e Lee: no centro da margem do lago, lado
esquerdo. Se formos pensar nas conotações atribuídas ao vocábulo “esquerdo”,
visto como o proibido, o negativo, o que precisa ser corrigido em relação ao
que é considerado o direito, essa ênfase do narrador está só ratificando o peso
da interdição contra a relação entre A-Lang e Lee, que violaram “o código da
natureza, instaurando em pleno inverno a estação das flores”. Cúmplice, a
natureza aproxima aqueles que, pelos ditames sociais, deveriam permanecer
separados, com seus corpos que, embora ardentes de desejo, deveriam ser e estar
retesados. Não é à toa que o vocábulo “retesado” é bastante reiterado ao longo
do conto:
As regras não importariam. Teriam que ali estar e ser.
Calmamente desce o corpo apoiado no tronco da sequóia. Enquanto desce num ritmo
anestesiado, Lee acompanha aquele comportar-se e ajuda o companheiro.
Invade-lhe os cabelos, lança-lhe dedos de forma a sentir os flocos de neve, os
cabelos, a pele. [...] Sente o ofegar do companheiro. Dá-lhe um cheiro no
cabelo, cumprimenta-o com um cheiro no rosto, encosta-se no corpo do outro,
sente a pulsação, o ofegar, o membro. [...] Fazem as bocas encontrarem um
beijo. [...]. Corados e envergonhados, sabiam o que sentiam. Os braços de Lee
forçavam sem violência o corpo de A-Lang a encontrar resposta. Não havia dúvida
nem crime. Apenas o que não era entendido ali. [...]. Boca na boca e o beijo
primeiro. Lágrimas descendo e hosanas subindo. Rostos colados, braços
apertados. [...]. Nu da cintura para cima, o corpo querendo. Frio às margens do
lago, fogos de amor. Casaco no chão, corpos sobre ele. No íntimo mais dele, o
dele ali furando. Nas partes mais íntimas, o homem ali sussurrando. No
movimento desconhecido, a invasão permitida (SILVA, 2007, p. 63).
Na descrição da cena anterior, é pertinente notar que o narrador no-la
apresenta de forma “natural”, sem julgamentos de valor. A realização amorosa
entre os dois iguais é decorrente não de taras, mas do impulso desejante que um
sente pelo outro, desejo esse representado metaforicamente pela expressão “fogos
de amor”. Por isso, o narrador afirma que não havia dúvida nem crime. Os dois
se permitiam vivenciar o que sentiam um pelo outro, daí por que as invasões que
um poderia exercer sobre o outro eram permitidas, concessões de quem ama e
permite-se ser amado na plenitude, ainda que efêmera, de sua sexualidade.
Entretanto, por terem transgredido com o socialmente permitido, lembremos
agora da epígrafe do conto, A-Lang e Lee são punidos. Como forma de pagarem
pela vergonha que cometeram às suas famílias, eles são condenados a trabalhos
forçados. Aqui, o espaço adquire uma projeção interessante porque ele amalgama,
ao menos, a permissão e a proibição, ou como diz o narrador, “no mesmo lado da
cidade, o proibido”.
Parece-nos que, além das visíveis semelhanças, existe uma sutil diferença
entre as obras em apreço: se Ennis e Jacks deixam-se guiar pelo modelo
heterossexual normativo, casando-se, constituindo família e alimentando o
desejo de eles mesmos formarem uma família, unindo-se e vivendo juntos, Ang e Lee,
de certa forma, fogem ao modelo heterossexual normativo, já que ambos, ao
contrário dos dois cowboys, não se deixam guiar pelo modelo heterossexual,
embora suas ações sejam vistas como transgressão à luz desse modelo e sejam,
todavia, punidas.
As obras em apreço, pertencentes a culturas diferentes, propiciam o
contato com formas de afeto entre iguais, quando as relações afetivas
hegemônicas são aquelas pautadas, exclusivamente, a partir de experiências e
representações heterossexuais, modelo único de referência que “homogeneíza a
pluralidade com suas concepções totalizadoras, sexistas e hierarquizadoras”
(120). São obras que, ao invés de ratificarem preconceitos que estão na base de
uma sociedade patriarcal, mostram como tais preconceitos nos impedem de
conviver com a(s) diferença(s), com o respeito ao Outro, além de cercear a
possibilidade de vivenciarmos novas identidades e formas de subjetivação de
realidades igualmente novas.
Ao problematizarem as relações entre iguais numa sociedade de base patriarcal,
as obras em apreço apontam que tais relações representam uma outra forma de
vivência da sexualidade humana, daí por que a importância do respeito à
diferença, fazendo com que sujeitos ex-cêntricos, como os personagens das obras
analisadas, adquiram, como afirma Linda Hutcheon, “uma nova importância à luz
do reconhecimento implícito de que, na verdade, nossa cultura não é o monolito
homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental)
que podemos ter presumido”.
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