domingo, 26 de março de 2017

QUANDO O AMOR É LEVADO A NÃO DAR CERTO:
DESEJO E INTERDIÇÃO NA LITERATURA
Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Estadual da Paraíba – Campus VI


I. INTRODUÇÃO


Concebida como uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas, a literatura comparada não apresenta, a priori, nenhum problema. Entretanto, a prática do comparativismo literário revela uma miríade de perspectivas de investigação, com uma diversidade de metodologias e de objetos de análise, dando à literatura comparada um campo de atuação muito vasto. Dentro desse cenário, como aponta Carvalhal (2000), encontramos trabalhos que visam examinar a migração de temas, motivos e mitos nas diversas literaturas, outros que buscam estabelecer as influências de fontes e sinais, além dos que se voltam para a comparação entre obras pertencentes a um mesmo sistema literário ou para os processos de estruturação das obras.
Apesar das dificuldades em precisar o que vem a ser literatura comparada, parece que existe um consenso: o de que a literatura comparada não pode ser tomada apenas como sinônimo de comparação. Esta está para a literatura comparada como um procedimento metodológico que permite ao comparatista, no confronto entre duas ou mais obras, não só estabelecer as semelhanças, mas, sobretudo, evidenciar as diferenças. Por isso, a comparação, nos estudos de literatura comparada, deve ser vista como um meio e não como um fim. Como procedimento metodológico, a literatura comparada permite-nos enveredar por várias trilhas do pensamento humano.
Nesse caminho, as fronteiras existentes, antes de impedirem o exercício do comparativismo, servem como estímulo ao conhecimento do Outro, são um convite a navegar por territórios estranhos, a descobrir que aquele que vemos como estrangeiro pode ser nós mesmos. Enfim, como afirma Allegro (s/d), pela literatura comparada somos levados a “descobrir que o ‘’Outro’’ pode ser o ‘’Mesmo’’ ou que o ‘’Outro’’ pode ser ‘’Eumesmo’’, ou simplesmente o “Outro’’; é valer-se da oportunidade de olhar longe para ver de perto como o Outro fala, do que o Outro fala, o que o Outro pensa, onde o Outro vive, como vive;”.
Ainda segundo Allegro (s/d), várias são, portanto, as trilhas de que o comparatista pode, usando a literatura comparada como método, servir-se para obter o entendimento do Outro. Ele pode, então, recorrer à tradução literária, à estética da recepção, à intertextualidade, aos polissistemas literários, dentre outras. Para o presente trabalho, a fim de pensarmos em alguns aspectos concernentes ao exercício da literatura comparada, ater-nos-emos às relações intertextuais que marcam o diálogo entre os seguintes contos: “O segredo de Brokeback Mountain”, escrito em 1997 pela norte-americana Annie Proulx, em que se baseou o cineasta Ang Lee para produzir, em 2005, o filme homônimo, que chegou a ganhar três oscars, e “Do outro lado do lago da aldeia também é proibido”, retirado do livro Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão (2007), reunião de contos homoeróticos escritos pelo paraibano Antonio de Pádua Dias da Silva.


II. Do espaço do desejo homoerótico: o silêncio urdido nas relações intertextuais
 

O termo intertextualidade, cunhado por Júlia Kristeva, a partir de estudos da obra de Bakthin, diz respeito à capacidade que um texto tem de remeter a outro texto, de forma que, no dizer de Kristeva, um texto se constitui em um verdadeiro mosaico. As obras, aqui escolhidas como corpus, mantêm entre si relações intertextuais que podem ser perceptíveis a partir da temática. Em ambas, temos representadas, com suas alegrias e tristezas, as relações amorosas entre sujeitos que amam outros do mesmo sexo, ou melhor, sujeitos que são marcados pela impossibilidade de amar, porque o outro do seu afeto pertence ao mesmo sexo. Aqui, cumpre esclarecermos que não nos interessa discutir o que entendemos por “mesmo sexo”. Para isso, remetemos o leitor a Costa (2000). A intenção do presente artigo é, dentro de uma intenção comparatista, analisar tais obras a partir da representação das relações homoafetivas. Acreditamos que, ao colocarem no cerne da narrativa essas relações, tais obras visam contribuir para uma “visão mais sutil das relações afetivas entre homens”, de forma que elas, rotuladas de esquivas, sejam vistas a partir de uma perspectiva destituída de preconceitos, de mal-estar de que foram acometidas, e ainda são, as relações entre iguais.
No estudo das obras em pauta, o espaço diegético desempenha um papel importante, sobretudo, porque esse marcador textual funcionará não apenas como lugar físico por onde desfilam as personagens da diegese narrativa, mas, simbolicamente, como metáfora para a interdição contra a expressão do desejo de sujeitos pertencentes ao mesmo sexo. Nas obras em apreço, o espaço emerge como um elemento estrutural que, para além dos lugares sociais representados e das configurações dos cenários íntimos das personagens, problematiza as relações de gênero e de sexualidades, sendo, portanto, o locus de enunciação de sujeitos cujos desejos só podem se expressos em espaços restritos onde aquele amor, gestado em silêncio e, talvez, para o silêncio, pode ser vivido longe dos interditos sociais. Aliás, o silêncio parece ser o signo que “abençoa” essas relações que fogem à heterossexualidade normativa e que, desde o início, como apontaremos depois, parecem ser marcadas pelo trágico.
Em O segredo de Brokeback Moutain, o sintagma silêncio, embora não apareça explicitamente, já está implícito na palavra segredo, uma vez que, dentre as acepções em torno dessa palavra, está aquela segundo a qual o vocábulo segredo significa “o que não deve ser revelado”. Por extensão, podemos dizer que se pede segredo para aqueles fatos ou ações que devem ser mantidos em silêncio. No conto de Annie Proulx, ao leitor é revelado aquilo que, dentro da diegese narrativa do conto, é preciso segredar: a relação entre dois jovens cowboys: Ennis del Mar e Jack Twist, “ambos garotos do interior sem o ensino médio completo e sem perspectivas, preparados para dar duro e passar necessidades, ambos de modos e fala rudes, acostumados à vida estóica” (PROULX, 2006, p. 07). Esses sujeitos, protagonistas da história, marcados pelas agruras da vida e por carências afetivas, encontraram-se na primavera de 1963, quando ambos foram trabalhar um como “ovelheiro e [o outro como] coordenador de pasto para a mesma operação de ovelhas a norte de Signal. O pasto de verão ficava acima da alameda em terras do Serviço Florestal na montanha Brokeback” (PROULX, 2006, p. 08). Ennis del Mar e Jack Twist, a princípio, são representações dos típicos cowboys americanos. Vejamos como o narrador no-los apresenta:

À primeira vista, Jack parecia bastante bonito com aquele cabelo cacheado e aquele riso fácil, mas, para um homem baixo, era meio cadeirudo e seu sorriso revelava que era dentuço, não a ponto de poder comer pipoca no gargalo de uma garrafa, mas ainda assim chamava atenção. Era apaixonado pela vida de rodeio e apertava o cinto com uma fivela pequena com um boiadeiro em cima de um touro, mas suas botas eram surradas demais, tão furadas que não tinham mais consertos, e ele estava louco para se ver em qualquer lugar que não fosse Lightning Flat.
Ennis, de nariz aquilo e cara estreita, era desgrenhado e tinha o peito meio encovado, equilibrava um tronco pequeno em pernas compridas e finas, possuía um corpo musculoso e ágil feito para andar a cavalo e brigar. Seus reflexos eram extraordinariamente rápidos e ele era perspicaz o suficiente para não gostar de ler senão o catálogo de selas Hamley’s (PROULX, 2006, p. 10-11).

Pela descrição feita dos personagens, não somos levados a pensar que esses sujeitos “machos” possam sentir afeto, atração por outro do mesmo sexo. Entretanto, devemos ter cuidado com o fato de incorrermos em erros devido a determinadas cristalizações instaladas “inconscientemente” em nosso imaginário, como se apenas sujeitos que não se enquadram no ideal de masculinidade pudessem ser susceptíveis de desejarem outros iguais, de relacionarem-se afetivo-sexualmente e de diversas formas com outros do mesmo sexo biológico. A acreditar-se nisso, é como se defendêssemos a existência de um conjunto de traços que condicionariam a expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que a possua (COSTA, 2000).
Os contos, aqui analisados, vêm mostrar, a partir da construção/representação dos personagens protagonistas, que a expressão do desejo homoerótico não está atrelada a traços físicos e/ou psíquicos, como erroneamente somos levados a pensar quando associamos homoerotismo à pusilanimidade, à efeminamento e não à virilidade, à masculinidade (COSTA, 2000). Pelo contrário, os contos em pautam sinalizam que as pulsões homoeróticas podem ser vistas como uma expressão de uma subjetividade que não é aprovada pelo ideal sexual da maioria que quer ver homogeneidade onde há heterogeneidade, pluralidade, de forma que a privação da expressão do desejo entre iguais, segundo Costa (2000), chega a constituir um paradoxo sob o qual se assenta a nossa sociedade, a qual incita, por um lado, a ideia de realização afetiva e sexual e, por outro lado, nega essa realização quando ela se dá entre sujeitos do mesmo sexo.    
Esses “dois diabos rumo a lugar nenhum” terão suas vidas mudadas profundamente, depois da curta convivência em Brokeback. A montanha será o palco onde eles, impelidos pela solidão a que os expunha o árduo trabalho, irão vivenciar novas potencialidades de suas sexualidades. Nesse aflorar do lado homoerótico dos personagens, o ambiente em que eles foram trabalhar desempenha papel preponderante. Longe da visão determinista que marcou a prosa naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio, o espaço na obra em apreço, em certo sentido, propicia, entretanto, as condições para que os personagens, diante da solidão, possam, no começo, ajudar um ao outro na superação das adversidades do trabalho e, depois, como fruto dessa convivência, venham a ver no companheiro de trabalho o objeto de seu desejo, sentimento esse que ambos lutam secretamente para entender e manter: “Felizes de ter um companheiro onde não esperavam encontrar nenhum” (PROULX, 2006, p. 17), Ennis e Jack, de tanta convivência, vão ter uma relação mais íntima que transcenderá o campo de trabalho e que possibilitará o cultivo de um amor no masculino e para o masculino:

– Caramba, pára de martelar e vem cá. O colchão é grande – disse Jack com uma voz irritadiça e sonolenta. Era grande e quente o suficiente, e em pouco tempo eles aprofundaram consideravelmente a intimidade. Ennis andava a toda em todas as estradas, estivesse consertando uma cerca ou gastando dinheiro, e não queria nada disso quando Jack pegou a mão esquerda dele e levou-a até o próprio pau enrijecido. Ennis retirou a mão depressa como se estivesse tocado em fogo, ajoelhou-se, desafivelou o cinto, abaixou as calças, pôs Jack de quatro e, com a ajuda da superfície escorregadia e de um pouco de cuspe, penetrou-o, nada que tivesse feito antes, mas não havia necessidade de manual de instruções. Fizeram tudo em silêncio, a não ser por algumas tomadas de fôlego bruscas e o anúncio – o canhão vai disparar – abafado de Jack, depois tirar, deitar e dormir (PROULX, 2006, p. 19).  
                            

O interessante no excerto acima não é a descrição da relação sexual entre dois iguais, mas a ênfase do narrador em mostrar o quão era nova para os personagens essa experiência. Por ser nova, essa experiência, em certo sentido, tem um caráter desconcertante para os personagens: “[...] Ennis disse: ‘Não sou bicha’, e Jack interveio com ‘Nem eu. Primeira e última vez. Não é da conta de ninguém a não ser da gente’” (PROULX, 2006, p. 20). Entretanto, o fato de terem cedido aos seus desejos não fará dos protagonistas do conto em tela sujeitos marcados pela culpa. Pelo contrário, a impossibilidade da vivência amorosa entre esses personagens advirá das coerções sociais que criaram uma miríade de interditos que visam à não concretização do desejo entre iguais. A impossibilidade da vivência amorosa que marca sujeitos do mesmo sexo pode ser vista no momento em que, terminado o serviço para o qual foram contratados, o narrador descreve a separação entre Ennis e Jack:

[...] eles se apertaram as mãos, cada um deu um tapinha no ombro do outro, depois havia doze metros de distância entre eles e nada a fazer senão ir cada um para um lado. Menos de um quilometro e meio depois, Ennis sentiu como se estivessem lhe arrancando as tripas, puxando de metro em metro. Parou na beira da estrada e, na neve fresca que caía em turbilhão, tentou vomitar mas nada saiu. Nunca se sentiu tão mal e a sensação custou a passar (PROULX, 2006, p. 24). 

Passado algum tempo, Ennis e Jack voltam a se encontrar, e parece que a distância que os separou só fez tornar mais intenso o desejo de que eles foram acometidos durante o período em que trabalharam na montanha Brokeback. O excerto abaixo mostra como o encontro entre Jack e Ennis é marcado por desejo, o calor que uniu os corpos em meio ao frio intenso do inverno na montanha Brokeback ainda mantinha-se aceso, tanto que a descrição que o narrador faz do reencontro entre os amigos vaqueiros não só nos dá a justa medida do quanto foi intensa a relação entre os dois como também nos passa a impressão de que os dois personagens estão tendo, de fato, uma relação:

[...] Eles se agarram pelos ombros, abraçaram-se com força, cada um espremendo o ar de dentro do outro, dizendo: filho-da-puta, filho-da-puta, depois, e com a facilidade com que a chave certa gira as lingüetas da fechadura, suas bocas se encontraram, e com força, os dentões de Jack tirado sangue, seu chapéu caindo no chão, a barba arranhando, a salivação aumentando [...] e eles ainda agarrados, peito e virilhas e coxas e pernas coladas, pisando nos pés um do outro até se separarem para respirar e Ennis, desajeitado para palavras de carinho, disse o que dizia a seus cavalos e suas filhinhas, benzinho.
[...]
Seu peito palpitava. Ele sentia o cheiro de jack – o cheiro intensamente familiar de cigarro, suor almiscarado e uma leve doçura de relva, e, com isso, o frio agressivo da montanha (PROULX, 2006, p. 27-28). 


Se antes era a montanha o lugar em que eles podiam se amar, agora Ennis e Jack têm de procurar outros espaços onde é possível que o desejo de um pelo outro possa ser concretizado. Sobre esse aspecto, é interessante a observação de Ennis, quando este diz o seguinte a Jack: “Não vamos pode estar perto um do outro de forma decente se o que aconteceu lá – virou a cabeça na direção do apartamento – nos pegar assim. Se fizermos isso no lugar errado estamos mortos. Nesse não tem rédea. Me mijo de medo”. (PROULX, 2006, p. 35). O receio de Ennis é interessante porque aponta para o fato de que, como afirma Costa (2000, p. 20-21), “viver sendo considerado dia a dia como ‘homossexual’ é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens”. Em virtude disso, como a relação dele com Jack é algo que transgride o que é socialmente aceito, afastando-se dos ideais sexuais da maioria, ela não pode ser vivida em todo e qualquer espaço, daí por que a escolha por espaços isolados como a montanha ou mais reservados como os motéis. Enfim, lugares que segredam aquele amor que não pode dizer o nome. Por isso, os encontros entre eles eram sempre bastante furtivos, embora possuíssem, sempre, uma coisa que nunca mudou: “o brilho de suas cópulas bissextas era obscurecido pela sensação de que o tempo voava, nunca era suficiente, nunca bastava” (PROULX, 2006, p. 49).
Apesar disso, Jack chega a aventar a possibilidade de ele e Ennis viverem juntos em que eles teriam “uma fazendinha juntos, um negocinho de criação de gado, seus cavalos, seria uma vida gostosa” (PROULX, 2006, p. 35-36). Entretanto, as amarras sociais e os interditos são bem maiores do que o desejo de união, de forma que a relação de Ennis e Jack parece, desde o surgimento dela, marcada pela impossibilidade de duração: “A gente não pode. Estou atolado com o que tenho, preso no meu próprio laço. Não dá para sair. Jack, não quero ser como esses caras que às vezes a gente vê por aí. E não quero morrer” (PROULX, 2006, p. 37). A referência ao termo “laço” não é aleatória, porque aponta para o fato do quão presos estão os personagens aos ditames sociais, de forma que se torna quase impossível desvencilhar-se deles. Qualquer tentativa é vista como uma transgressão ao socialmente estabelecido, de maneira que os sujeitos que rompem com a ordem do discurso social, o laço, símbolo de aprisionamento, portanto, devem ser punidos. Ennis e Jack não sairão incólumes: um será punido com a morte; o outro, com a vida solitária sem a presença do outro de seu afeto.
Ennis e Jack são, devido aos ditames sociais, obrigados, portanto, a viverem de forma esquiva, quando, se não fossem esses ditames, eles poderiam ter vivido uma vida juntos, que não chega a, de fato, se concretizar porque ambos os personagens sendo compelidos a se assujeitarem “à heterossexualidade compulsória, à matriz heterossexual que designa a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, os gêneros e desejos são naturalizados” (MUNIZ, 2008, p. 131). Dessa possibilidade de união que sempre existiu apenas como um devir nunca concretizado, restou apenas a montanha Brokeback, já que “Tudo foi construído lá”, a qual ficou gravada na memória afetiva de ambos os personagens por lá ter sido o lugar em que eles, livres das amarras sociais e dos interditos, puderam viver o desejo de terem um ao outro:

A coisa de que Jack se lembrava e com que sonhava de uma forma que não conseguia evitar nem entender era a vez, naquele verão distante de Brokeback, em que Ennis chegara por trás e o puxara para junto dele, o abraço mudo satisfazendo alguma fome compartilhada e assexuada (PROULX, 2006, p. 54).

A montanha Brokeback tornar-se-á mais significativa ainda depois da misteriosa morte de Jack, uma vez que não sabemos ao certo se ele morreu em um acidente ao consertar o pneu do carro ou se foi morto a mando de sua mulher que descobriu ser o marido gay. Descoberta a morte de Jack, Ennis, agora solitário, vai à procura dos pais dele e, em um dos momentos mais tocantes do conto, adentra no quarto que fora de Jack:


No lado norte do armário, um discreto desvio na parede criava um pequeno esconderijo, e ali, dura depois de muito tempo pendurada num prego, estava uma camisa. Ele tirou-a do prego. A velha camisa de Jack da época da Brokeback. O sangue seco na manga era seu próprio sangue, um sangramento nasal violento na última tarde na montanha quando Jack, naquele agarramento contorcionista deles, dera uma joelhada violenta no nariz de Ennis. [...].
A camisa parecia pesada até ele ver que havia outra dentro dela, as mangas cuidadosamente vestidas nas mangas da de Jack. Era a sua camisa xadrez, perdida, achava ele, muito tempo atrás em alguma lavanderia, o bolso rasgado, faltando botões, roubada por Jack e escondida ali dentro da camisa dele, o par igual a duas peles, uma dentro da outra, duas em uma. Ele colou o rosto no tecido e inspirou devagar pela boca e pelo nariz, esperando sentir algum leve vestígio do cheiro de Jack, ranço salgado e doce de cigarro e sálvia da montanha, mas não havia propriamente cheiro, só a lembrança de um, a força imaginada da montanha Brokeback da qual nada restava senão o que ele tinha nas mãos (PROULX, 2006, p. 63-64).


No dizer de Muniz (2008, p. 132), “a morte de Jack e a sobrevivência solitária de Ennis remetem à clássica associação entre crime e castigo, pecado e punição, desvio e exclusão, estabelecida pelo sistema normativo e controlada pelo poder disciplinador”. Com esse desfecho, é como se o exercício da sexualidade não pudesse ocorrer para além da heterossexualidade normativa que “fixa papéis/comportamentos e materialidades corporais masculinas e femininas” (idem). Da união que precisou ficar no armário, aprisionada, restaram apenas aquelas camisas. Metonímia interessante da união entre dois iguais que tiveram de permanecer separados: devido aos interditos sociais e devido à morte de um deles. Das dificuldades dessa relação, ficaram as nódoas de sangue, símbolo da dor, mas também da alegria. Por isso, as camisas são preservadas por Ennis ao lado de um cartão-postal cuja paisagem é a de Brokeback. Espaço da realização amorosa proibida, a montanha também é o local onde Jack queria ser enterrado. Se tudo começou lá, é nela que tudo deve findar ou permanecer, ainda que como uma vaga lembrança. É uma lembrança como dói!
            No conto “Do outro lado do lago da aldeia também é proibido”, temos, assim como no texto de Annie Proulx, uma história entre dois iguais que se deixam levar por suas pulsões homoeróticas, transgredindo as rígidas normas sociais da velha aldeia de Narayma. Os personagens envolvidos são A-Lang e Lee. Não sabemos até que ponto a nossa impressão pode estar certa, mas o nome de ambos os personagens lembram, anagramaticamente, o nome do diretor do filme O segredo de Brokeback moutain: Ang Lee. Coincidência ou diálogo intertextual? Além dessa possível intertextualidade, o conto de Antonio de Pádua Dias da Silva remete-se ao texto de Annie Proulx, por fazer do aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo de iguais o tema principal. Aliás, desde a epígrafe do conto (Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação), retirada de Levítico, vamos percebendo que a grande isotopia que marca o conto do começo ao fim é a do aprisionamento dos corpos, da interdição do desejo entre iguais.
O espaço em que se desenvolve o efêmero caso de amor entre A-Lang e Lee é bastante semelhante ao do conto de Annie Proulx: “Do lado da montanha, muito gelo, poucas folhas, bastante frio. [...] Narayama era o nome da aldeia. Nada acontecia de extraordinário naquele lugar. Era inverno.” (SILVA, 2007, p. 59). A aparente calmaria desse lugar, marcado pelo frio do inverno a determinar também álgidas relações entre os seus habitantes (a comunicação entre as pessoas era praticamente impossível, não fosse a astúcia dos velhos provedores dos lares), será alterada sensivelmente, desde que A-Lang “havia visto, antes de o inverno chegar, o olhar do filho do seu cunhado, que acabara de chegar de terras muito longes para ajudar a família a enfrentar o inverno rigoroso daquele ano” (SILVA, 2007, p. 60).
No espaço ocupado pela aldeia de Narayma e marcado por pessoas de “expressões tristes, corpos retesados”, A-Lang e Lee ousarão quebrar a aparente harmonia, ao darem vazão às suas pulsões homoeróticas. Assim como Ennis del Mar e Jack Twist, A-Lang e Lee sentem-se, a priori, perturbados com essa descoberta:

Era inverno e os corpos estavam retesados. Havia neve e nada de nuvens de poucos balões a soprar uma tranqüila brisa nas cabanas de Narayma. A-Lang estava pensativo e queria uma palavra. Lee não sabia como esconder o fato e não sabia compreender. Em torno da neve e do fogo, dois corações sem nenhuma história. Envoltos em pensamentos apaixonados e uma gama de valores a serem considerados” (SILVA, 2007, p. 60).      


Na descrição da paixão entre A-Lang e Lee, é interessante notar que os signos usados para representar o cálido sentimento entre esses personagens (trêmulo de desejo, corpo febril) se opõem aos signos usados para representar o espaço físico onde habitam as personagens e pertencentes todos ao campo semântico da frieza, representando a rigidez dos códigos sociais que regem a aldeia de Narayama e a imutabilidade das coisas lá estabelecidas. Desafiando os códigos estabelecidos em Narayama, A-Lang e Lee resolvem concretizar aquilo que era apenas sentindo, desejado, mas não consumado. Se antes o inverno era a estação que vira nascer aquele desejo e, de certa forma, contribuíra para coagir a sua realização, agora a primavera parece vir a ser cúmplice na aproximação dos amantes. A mudança de estação aponta a mudança de estado entre A-Lang e Lee. Antes a interdição no inverno; agora, a realização na primavera:

Era uma outra a estação a que cruzaram. As flores tinham aspecto de alegria. O cheiro do campo e da fumaça lembrava que não havia lembrança. Era outra estação naquela estação. Como antigos conhecidos que eram, correram em busca um do outro. E no centro da margem do lago, lado esquerdo, próximo a um partido de bambu, os dois se encontraram (SILVA, 2007, p. 62). 

Desse excerto, gostaríamos de destacar a ênfase que o narrador dá ao local do encontro entre A-Lang e Lee: no centro da margem do lago, lado esquerdo. Se formos pensar nas conotações atribuídas ao vocábulo “esquerdo”, visto como o proibido, o negativo, o que precisa ser corrigido em relação ao que é considerado o direito, essa ênfase do narrador está só ratificando o peso da interdição contra a relação entre A-Lang e Lee, que violaram “o código da natureza, instaurando em pleno inverno a estação das flores”. Cúmplice, a natureza aproxima aqueles que, pelos ditames sociais, deveriam permanecer separados, com seus corpos que, embora ardentes de desejo, deveriam ser e estar retesados. Não é à toa que o vocábulo “retesado” é bastante reiterado ao longo do conto:

As regras não importariam. Teriam que ali estar e ser. Calmamente desce o corpo apoiado no tronco da sequóia. Enquanto desce num ritmo anestesiado, Lee acompanha aquele comportar-se e ajuda o companheiro. Invade-lhe os cabelos, lança-lhe dedos de forma a sentir os flocos de neve, os cabelos, a pele. [...] Sente o ofegar do companheiro. Dá-lhe um cheiro no cabelo, cumprimenta-o com um cheiro no rosto, encosta-se no corpo do outro, sente a pulsação, o ofegar, o membro. [...] Fazem as bocas encontrarem um beijo. [...]. Corados e envergonhados, sabiam o que sentiam. Os braços de Lee forçavam sem violência o corpo de A-Lang a encontrar resposta. Não havia dúvida nem crime. Apenas o que não era entendido ali. [...]. Boca na boca e o beijo primeiro. Lágrimas descendo e hosanas subindo. Rostos colados, braços apertados. [...]. Nu da cintura para cima, o corpo querendo. Frio às margens do lago, fogos de amor. Casaco no chão, corpos sobre ele. No íntimo mais dele, o dele ali furando. Nas partes mais íntimas, o homem ali sussurrando. No movimento desconhecido, a invasão permitida (SILVA, 2007, p. 63).

Na descrição da cena anterior, é pertinente notar que o narrador no-la apresenta de forma “natural”, sem julgamentos de valor. A realização amorosa entre os dois iguais é decorrente não de taras, mas do impulso desejante que um sente pelo outro, desejo esse representado metaforicamente pela expressão “fogos de amor”. Por isso, o narrador afirma que não havia dúvida nem crime. Os dois se permitiam vivenciar o que sentiam um pelo outro, daí por que as invasões que um poderia exercer sobre o outro eram permitidas, concessões de quem ama e permite-se ser amado na plenitude, ainda que efêmera, de sua sexualidade.       
Entretanto, por terem transgredido com o socialmente permitido, lembremos agora da epígrafe do conto, A-Lang e Lee são punidos. Como forma de pagarem pela vergonha que cometeram às suas famílias, eles são condenados a trabalhos forçados. Aqui, o espaço adquire uma projeção interessante porque ele amalgama, ao menos, a permissão e a proibição, ou como diz o narrador, “no mesmo lado da cidade, o proibido”.
Parece-nos que, além das visíveis semelhanças, existe uma sutil diferença entre as obras em apreço: se Ennis e Jacks deixam-se guiar pelo modelo heterossexual normativo, casando-se, constituindo família e alimentando o desejo de eles mesmos formarem uma família, unindo-se e vivendo juntos, Ang e Lee, de certa forma, fogem ao modelo heterossexual normativo, já que ambos, ao contrário dos dois cowboys, não se deixam guiar pelo modelo heterossexual, embora suas ações sejam vistas como transgressão à luz desse modelo e sejam, todavia, punidas. 
As obras em apreço, pertencentes a culturas diferentes, propiciam o contato com formas de afeto entre iguais, quando as relações afetivas hegemônicas são aquelas pautadas, exclusivamente, a partir de experiências e representações heterossexuais, modelo único de referência que “homogeneíza a pluralidade com suas concepções totalizadoras, sexistas e hierarquizadoras” (120). São obras que, ao invés de ratificarem preconceitos que estão na base de uma sociedade patriarcal, mostram como tais preconceitos nos impedem de conviver com a(s) diferença(s), com o respeito ao Outro, além de cercear a possibilidade de vivenciarmos novas identidades e formas de subjetivação de realidades igualmente novas.

Ao problematizarem as relações entre iguais numa sociedade de base patriarcal, as obras em apreço apontam que tais relações representam uma outra forma de vivência da sexualidade humana, daí por que a importância do respeito à diferença, fazendo com que sujeitos ex-cêntricos, como os personagens das obras analisadas, adquiram, como afirma Linda Hutcheon, “uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que, na verdade, nossa cultura não é o monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido”.  

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