domingo, 26 de março de 2017

LITERATURA E ENSINO: 
(DES)CAMINHOS NA SALA DE AULA[1]

Desde os mais tenros anos, há entre nós e as formas literárias uma relação da qual não podemos nos desvencilhar porque, ainda que não tenhamos consciência, somos seres marcados pelo desejo de fabular, de ouvir e contar histórias, uma vez que, consoante lição do professor Antonio Candido, a literatura preenche nossas necessidades de fantasia e de desejo. Narrar, transitar entre o real e o imaginário, faz parte de nossa vivência. E por falar em vivência, lembremos, aqui, um poema de título homônimo de Violeta Formiga, poeta paraibana, assassinada aos 31 anos, em que, se tomarmos o vocábulo poema como sinônimo de literatura, teremos uma explicação literária dessa nossa atávica fome por literatura:

Faço poema
Como quem faz pão:
Faminta e necessária.
 
Se a literatura é essa necessidade tão vital como é o ato de comer, ou até mesmo mais, a escola tem nos dado o pão nosso de cada dia? Enfim, se saber e sabor possuem o mesmo étimo, por que na escola eles são visto como antípodas? Que saberes/sabores sobre o literário a escola tem nos propiciado durante o longo período em que nela passamos? A leitura dos textos literários, na escola, são-nos momentos de brincadeira, riso, diversão? Recorrendo à sua memória de leitor, como foi a sua relação com a literatura na escola? Que lembranças lhes vêm à mente quando se fala em literatura? Essas lembranças trazem à tona experiências de leitura traumáticas ou prazerosas? Como a escola os auxiliou a serem os leitores de literatura que hoje são? E são mesmo leitores de literatura?
Todas essas questões não têm uma única resposta tampouco são decorrentes de um mesmo evento. Tais questões evidenciam que as relações entre literatura e ensino estão imbricadas em uma rede em que vários fatores se entrelaçam. Para responder a tais questões, precisamos considerar o sujeito leitor de literatura, a formação de professores, os materiais didáticos, os currículos e métodos de ensino de leitura e de literatura. Refletir sobre isso é importante não para obtermos respostas às indagações anteriores, mas para, se quisermos, fazer com que os sujeitos se apropriem da leitura e da escrita (literárias) nos mais diversos contextos de educação.
E aqui estamos diante de um grande problema: parece-nos que temos, como instituição escolar, falhado nisso, apesar de experiências alentadoras que nos mostram que nem tudo está perdido e que nos têm evidenciado que, mais importante do que ensinar literatura, se é que se ensina literatura, é preciso que formemos leitores e leitores de literatura. Para tanto, acreditamos que se faz necessário ter em mente uma concepção de literatura que possa guiar as nossas atividades em sala de aula. Afinal, como afirma a professora Irandé Antunes, toda escolha feita na escola está amparada por um lastro teórico, conscientemente ou não. Nada acontece por acaso, nem mesmo o que se deixa de escolher.
 Tomamos a literatura na esteira que a define Antonio Candido em um texto que já se tornou clássico. Ou seja, para nós, a literatura está na categoria dos bens simbólicos necessários ao ser humano porque se constitui como um direito essencial e como tal ela preenche as nossas necessidades de fantasia e desejo. E isso está presente tanto na literatura para adultos quanto na literatura para crianças. Quem nunca desejou um bosque ou, melhor, o anjo que morava no bosque e que ele viesse nos roubar o coração, como se fala nesta cantiga:

Se esta rua, se esta rua
fosse minha
eu mandava, 
eu mandava ladrilhar
com pedrinhas, 
com pedrinhas de brilhantes
para o meu, 
para o meu amor passar. 
Nesta rua, 
nesta rua tem um bosque
que se chama, 
que se chama solidão
dentro dele, 
dentro dele mora um anjo
que roubou, 
que roubou meu coração. 
Se eu roubei, 
se eu roubei teu coração
tu roubaste, 
tu roubaste o meu também
se eu roubei, 
se eu roubei teu coração
é porque, 
é porque te quero bem. 

 Ou simplesmente rir por rir naqueles momentos com gosto de jogado de fora:

Macaco foi à feira
Não teve o que comprar
Comprou uma cadeira
Pra comadre se sentar
A comadre se sentou
A cadeira esborrachou
Coitada da comadre
Foi parar no corredor.


Por preencher as nossa necessidade de fantasia e de desejo, por ser para nós o lugar do possível, a confluência do previsível e do imprevisível, não importa que os eventos que descreva fujam à lógica do plano real, é preciso defender a necessidade da leitura literária não só pelo que já apontamos, mas também porque inúmeros jovens e adultos gostam de ler, bem como porque a literatura é uma das profundas necessidades humanas, necessidade que, se não satisfeita, pode causar a desorganização pessoal ou a frustração mutiladora. Em sendo uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito, ela é fator indispensável de humanização, processo esse que é, aqui, compreendido conforme apresentado por Candido (1995):

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 1995, p. 249).

A literatura, assim como aquilo que sua leitura propicia, é algo que o olhar clínico da racionalidade não pode captar, principalmente porque a leitura literária possui uma dupla função nem sempre compreendida pela desumanidade política e pela sociedade de massa tecnológica: como uma experiência de libertação, ela faz o leitor esquecer, ainda que por um momento bastante efêmero, os problemas e preocupações de sua existência; e, como uma experiência de preenchimento, possibilita a este mesmo leitor modificar o seu olhar sobre as coisas, sobre o seu próprio entorno. Sendo essa dupla experiência, a literatura acentua mais ainda o seu caráter humanizador porque, como lembra Larrosa (apud YUNES, 2003), “[...] Ex – per – ientia significa sair para fora e passar através de [...]. O saber da experiência ensina ‘a viver humanamente...’ e não se confunde com o experimento de verdades objetivas que permaneceram externas ao homem”.
Como experiência de libertação e de preenchimento, segundo José Paulo Paes, a literatura vem “mostrar a perene novidade da vida e do mundo; atiçar o poder da imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina”. A literatura serve-nos como guia em uma jornada que nos oferece conhecimento não só sobre o mundo exterior, com suas alegrias e tristezas, mas, sobretudo, o nosso mundo interior, com nossos anjos e demônios. 
Voltando ao espaço da literatura no universo escolar, no lugar de ser vista como um repositório de experiências humanas, em contato com o qual o homem pode evoluir, ela é tomada como um apêndice da disciplina de Língua Portuguesa. O seu ensino é marcado por protocolos e convenções que circulam, na escola, “através de materiais didáticos que fazem desfilar figuras de linguagem a serem reconhecidas, funções de linguagem a serem identificadas, fatos históricos a serem justapostos a certas ocorrências formais interpretando-as” (LAJOLO, 1988, p. 92). Essas atividades pouco ou nada dizem da importância do literário em nossa formação e não propiciam a aproximação do leitor com o texto literário.
A presença do texto literário no ambiente escolar, quando não é um pretexto, é marcada por abordagens inconsistentes donde avultam perguntas literais que “inviabilizam um mergulho mais profundo na obra literária [e que] não habituam o aluno a esse movimento de análise mais profundo. Assim, não percebem o prazer que proporciona esse envolvimento com a leitura [literária], ficando apenas na superficialidade de respostas formais” (TAVARES, 2003, p. 108).
            Como se não bastasse tornar a leitura literária pretexto para o ensino de outras coisas, exceto o de literatura, a escola, “por ser servil, quer transformar a literatura em instrumento pedagógico, limitado, acanhado, como se o convívio com a fantasia fosse um bem menor” (QUEIRÓS, 2002, p. 160), o que tem sido conseguido principalmente no ensino médio onde, ao priorizar a historiografia literária, a escola alijou, dessa última fase da educação básica, a presença da literatura e, consequentemente, a sua leitura, uma vez que o importante é o aluno aprender um rol de datas, autores e obras.
            Essa abordagem errônea de cunho historicista tornou o ensino de literatura, com tênues variações nos níveis fundamental e médio, marcado por uma dispersão, pois, “ao longo das aulas, ensina-se sobre o cenário da literatura, a vida dos autores que se tornam personagens e não sobre o ser da literatura — o texto literário enquanto tal” (CAMPOS, 2003, p. 13). 
Esse ensino tão adverso à literatura é haurido de práticas pedagógicas que, além de não facilitarem o acesso ao livro e a textos de qualidade, não têm contribuído para formar o gosto pela leitura, mas têm contribuído, no caso da literatura, para fazer com que os alunos saiam da escola, quando não odiando, pelo menos, completamente, indiferentes aos valores que a leitura literária pode suscitar.
Essas práticas alternam-se entre a alegria e o desânimo, uma vez que ainda seguem uma metodologia dogmática e historicizante que reduz a literatura a uma sequência de fatos, autores e obras, descartando o contato com o texto literário. Assim, texto e aluno permanecem calados e a aula de literatura ou de leitura literária torna-se monótona e monológica, pois os únicos que falam são o livro e o professor. Este como porta-voz daquele.
Em outros termos, tais práticas contribuíram para a esterilização do aspecto mais vivo e formativo da literatura, para torná-la algo enfadonho e apático, algo que provoca raiva nos alunos, mas que deveria não só lhes fomentar a promoção do debate e da reflexão crítica como também sensibilizá-los para desvendarem as dimensões da palavra (literária).
Com isso, os alunos deixam de perceber que a literatura pode não só falar de situações que lhes interessam como principalmente alterá-los, transformá-los, pô-los diante de novas formas de ser e existir, pois a palavra literária trabalha, segundo Queirós (2002), com os sentimentos que fundam o homem: a busca, a perda, o desencanto, o medo, a esperança, o luto, o amor, o ciúme, a fraternidade, o lúdico.
Como contraponto à letargia que envolve a leitura literária no espaço escolar, é preciso que o ensino de literatura esteja centrado na leitura de textos e sustentado por teorias literárias e práticas pedagógicas que contemplem a interação do leitor com o texto e, só assim, possibilitar-se-á aos alunos o desenvolvimento do prazer do texto, do prazer estético.
Nesse processo, ensinar a leitura do texto literário exige mostrar aos alunos que a literatura se produz num constante diálogo entre textos e sensibilizá-los para reconhecer os sentidos, a decifração de signos e a reconstrução de uma linguagem que guarda todas as dores e emoções do mundo e que, por isso mesmo, é “uma confissão de que a vida não basta”.
Apesar dos desencontros que marcam o ensino de literatura, ela, como um dos repositórios dos bens culturais construídos pela humanidade, deve ser usada em nossa prática pedagógica como uma das estratégias para educar o homem, uma vez que o objetivo último da educação escolar é permitir o acesso às diversas formas de conhecimento e a literatura é uma dessas tão importantes, se não for a maior, como o diz Barthes:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devesse ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. [...]a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ela permite designar saberes possíveis – insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está atrasada ou adiantada com relação a esta [...]. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o sabor que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens (BARTHES, 1979: 18-19).

Em termos mais amplos, a educação escolar, conforme Penna (1995), deve propiciar o acesso à cultura, ou seja, a toda produção coletiva de uma sociedade, ou mais ainda, a todo patrimônio construído pela humanidade ao longo de sua história. Por isso, o papel da escola é importantíssimo no processo de acesso à democratização da cultura, principalmente porque fazemos parte de uma sociedade e de um sistema educacional bastante elitistas, seletistas e excludentes.
No nosso caso, professores de língua e literatura, o desafio é, além de garantir essa gratuidade no acesso à arte, conseguir fazer com que os nossos alunos de decodificadores se transformem em leitores efetivos não só de textos cotidianos – revistas, jornais –, de textos científicos, mas também de textos literários:

Assumir a condição de leitor – ativa por excelência – é, portanto, liberar em nós mesmos a capacidade de atribuir sentido aos textos, como aos gestos e à vida. Para o professor de qualquer nível, que trabalha com os textos e a linguagem, isso implica colocar-se criticamente em relação à leitura proposta pelo livro didático ou pela História Literária, como uma leitura possível. Em decorrência dessa atitude nova (diante dos textos e diante de nós mesmos), respeitemos a leitura alheia – especialmente a dos alunos – e saberemos explorar a riqueza da tensão criada pelas varias perspectivas em jogo, que passarão a dançar na sala de aula e nas nossas cabeças (CHIAPPINI e MARQUES, 1986, p. 40).

O desafio maior é fazer com que os textos literários possam surtir algum efeito na vida de nossos alunos – um efeito com gosto de eterno ainda que efêmero. As reflexões apontadas aqui são, portanto, uma tentativa de buscar um caminho para o ensino de literatura diferente daquele que muitos de nós recebemos e que era baseado na aprendizagem de nomes de autores, datas ou obras que não chegariam, na maioria das vezes, a ser, de fato, lidas:

Aos poucos, fui percebendo que a voracidade com os conteúdos, a quantidade exaustiva de pequenos textos truncados e decepados do original não eram sinônimos de eficiência pedagógica. Saber analisar sintaticamente, com perfeição, uma oração, identificar as classes gramaticais das palavras, concordar o verbo com o sujeito, nada disso melhorava o senso crítico e a expressividade de meus alunos; pelo menos não era suficiente para capacitá-los à compreensão de suas atitudes, dos problemas da escola e de tudo mais que os rodeava, nem mesmo daqueles conteúdos que tentava transmitir (CHIAPPINI e MARQUES, 1986, p. 40).


Se queremos evitar o afastamento do leitor e, assim, formar “leitores-sujeito, a um só tempo críticos e criativos”, é porque temos certeza de que é possível, sim, ensinar a ler e, principalmente, ensinar a ler Literatura.
Se, como disse o poeta, uma rosa nasceu do asfalto, é possível que outra nasça entre os espinhos daquelas que feneceram na árida seara escolar. Cabe, portanto, a nós, educadores, apesar de todos os obstáculos que ainda são existentes ou estão por vir, ir à cata das sementes, enquanto elas estão em nossas salas de aula.
Afinal, como diz Adélia Prado, no final do poema Leitura: “Eu sempre sonho que uma coisa gera/ nunca nada está morto./O que não parece vivo, aduba./O que parece estático, espera.
 Por fim, queria terminar o presente texto a partir de um depoimento pessoal. Em uma entrevista com D. Cleo, a grande mestra de mais de uma geração de professores de Literatura, dizia ser a carreira de professor aquela que trazia maior gratificação amorosa. E hoje, mais do que nunca, tenho mais ainda a certeza de que tais palavras são mais do que verdadeiras. O magistério ainda é o caminho, apesar dos reiterados discursos da desvalorização, do rebaixamento da figura do professor. Pelos menos, o magistério é o meu caminho, assim como deve ser o de muitos que estão aqui.
E alegro-me imensamente porque, como diz o texto bíblico, já que me vali da metáfora do pão anteriormente, se o homem há de viver do suor do próprio rosto, eu, realmente, não posso reclamar de ter de derramar uma só gota de suor para adquirir o pão que me alimenta. Por quê? Porque, sendo professor, mas, sobretudo, sendo professor de Literatura, o meu trabalho me dá o pão que me alimenta duplamente: preenche o vazio do meu estômago, mas, sobretudo, preenche o vazio de minha alma. Ser professor, e de Literatura, me garante o alimento para o corpo e para o espírito.  A vocês que escolheram trilhar o caminho das Letras, sejam elas brasileiras, sejam elas espanholas, espero que possam fazer e vivenciar muitas histórias. Afinal, como diz Fernando Pessoa, “Quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.

Muito obrigado

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: Secretaria de Educação, 2006, versão eletrônica. Acesso em: 20 de agosto de 2006.
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[1] Fala aos alun@s de Letras do Centro de Ciências Humanas e Exatas durante um evento acadêmico promovido para recepcioná-l@s. 

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