domingo, 26 de março de 2017

O VERBO INCANDESCENTE:
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE ALMENARA DE LUCILA NOGUEIRA




O primeiro livro de poesia de Lucila Nogueira já nos chama atenção pelo próprio título: Almenara. Como está dito na orelha da obra, assinada por Mario da Silva Brito, por almenara entende-se:

um fogo, uma luz que se acendia nas atalaias ou torres de antigas cidades. Para dar sinais, avisar o povo sobre o movimento de tropas inimigas ou da chegada de piratas e assaltantes, servindo, ainda, para enviar mensagens, quando transportada de uma área para outra. Anunciava também a deposição do rei. Permanentemente acesa, guiava os caminheiros da noite. É um farol da terra, um nome antigo de candeeiro, a defesa luminosa de um burgo em tempo de perigo.


Entretanto, a ideia de guia, de iluminação, de condução, de aviso não fica circunscrita apenas ao título do livro. Os poemas de Almenara colocam em exercício aquilo que o título já prenuncia, isto é, são uma espécie de chama a manter sempre acessa a poesia a guiar a nós em meio às atrocidades da vida em sociedade ou em meio às dores e delícias da existência. E a poeta parece-nos ser uma sacerdotisa que procura manter viva a chama da poesia “neste tempo de encontros relativos” e que só nos faz uma exigência: “não me tente seguir e não me tente/ se não tiver o passo das fogueiras”. O fogo parece, então, desde o título, a maior isotopia figurativa da obra.
Conforme ensina o professor João Batista de Brito, em teoria poética, por isotopia entendemos a construção, em determinado texto, “de um universo semântico a partir da reiteração de elementos de significação subterrânea, em princípio, menor que a extensão semântica de uma palavra” (BRITO, 1997, p.08). Os pequenos pedaços de sentido recebem o nome de sema, os quais, geralmente, estão presentes nos poemas de forma caótica e são quase imperceptíveis a olho nu. No livro de Lucila Nogueira, o fogo inerente ao significado da palavra que dá título à obra vem à tona na forma de outros semas, tais como: labareda, aceso, esbraseada, fogo, fogueiras, queimadura, taças de fogo, centelhas, incêndio, acender, arder, consome, chama, incendiado. Cabe a nós, entretanto, descortinar qual(is)  o/os universo(s) de sentido para o qual apontam tais semas. Nesse caso, um dos primeiros feixes de significação é aquele em que o sema “fogo” pode se associado a uma isotopia temática: a do desejo, à qual somos remetidos mediante a presença de semas como: fogo, chaga, nua, amor, convulsões, desespera, irrompo, e que pode ser comprovada mediante a leitura de poemas como:

SE UMA MULHER ESPERA

Talvez se a manhã vier me restitua
a túnica universal da primavera
mas agora estou triste, só e nua
te esperando, sem sono, na janela.

Eu não durmo, não chegas, e é tão tarde
descem na minha dor todos os astros.
Se uma mulher espera, a noite arde
e o mundo vira e revira em sua carne.

Levanto a cada ruído, mas não chega
aquele por quem se ilumina toda a rua.
Ai, se uma mulher espera, nos seus braços
resume a certeza de todos os espaços.

Mas talvez se chegar a madrugada
meu amor pode ser venha com ela
e me deixe cantar nossas cantigas
e adormeça em meu colo e cesse a guerra
que me faz nesta hora tão sozinha
triste e desesperada sobre a terra.

     
O poema acima, mais do que tematizar a espera feminina pelo amado, tematiza os efeitos dessa espera: a solidão, o arder de desejo por aquele que se encontra ausente. E, na configuração do desejo imantado na espera, a poeta cria imagens lapidares como: “Se uma mulher espera, a noite arde/ e o mundo vira e revira em sua carne”. Embora o poema tenha como título uma construção que estabelece a ideia de hipótese, todo o poema fala de reações que não se realizam no plano das hipóteses, mas no da experiência vivida, sentida na própria pele e acalentada pelas dúvidas que suscita toda e qualquer espera: “Mas talvez se chegar a madrugada/ meu amor pode ser venha com ela/ e me deixe cantar nossas cantigas/ e adormeça em meu colo e cesse a guerra/ que me faz nesta hora tão sozinha/ triste e desesperada sobre a terra”. Hipotética é apenas a chegada do amado. Certos são os medos, os receios e os desejos por sua chegada: “Levanto a cada ruído, mas não chega/aquele por quem se ilumina toda a rua”.
Dentre dessa perspectiva lírico-amorosa, parece que o sujeito lírico feminino, quando não está a cantar a espera pelo amado, canta a separação, mas não a partir de uma perspectiva triste e melancólica, ainda que tenha ficado o vazio do abandono:

TUA PRESENÇA ENORME

Tua presença enorme confundiu os astros
emudeceu as aves, despovoou a rua.
Tua presença enorme absorveu meus passos
entregando-me à noite, subitamente nua.

Tua presença enorme incandeou o fogo
suspenso no meu colo, em meio a qualquer chuva.
Tua presença enorme ultrapassou o jogo
aniquilou muralhas, envergonhou a luta.

Tua presença forte, noventa vezes forte
estremeceu a carne, violentou o rumo.
Minha presença terna, setenta vezes terna
feriste e abandonaste, distantemente rude.

Mas houve indefinido e poderoso vento
misterioso e claro a bater no meu rosto.
E eu vi em teu olhar fantasmas submersos
estendendo-me os braços, na ânsia de ser sonho.

Foi queixa, não foi guerra o teu grito profundo
atravessando a noite, desacordando o mundo
e de repente fraca, e de repente nua
confusa como os astros, atravessei a rua.

        
No poema acima, desde o título, a repetição do sintagma “tua presença enorme” vai, em um crescendo, mostrando, anaforicamente, como a figura do ser amado revelou-se como algo que absorveu não só o sujeito lírico, metonimicamente representado pelo sintagma nominal “passos” em “tua presença enorme absorveu meus passos”; como também tudo o mais ao seu redor: os astros, as aves, a rua. Em contraposição a esse ser que é capaz de emudecer as aves, confundir as aves, incandear o fogo do desejo, o sujeito lírico se apresenta como terno, ainda que a sua ternura tenha sido ferida e abandonada pelo expansivo ser amado, hiperbolicamente referido em “tua presença noventa vezes forte”.
Outra hipérbole também encontramos no décimo primeiro verso, a qual faz menção ao  sujeito lírico, mais especificamente à presença terna dele, embora o exagero tão característico da hipérbole não ocorra na mesma proporção ao que é feito à figura do amado do sujeito lírico feminino. Se a presença do ser amado é noventa vezes forte; a presença do sujeito lírico é setenta vezes terna. Ou seja, embora tomando um mesmo elemento comum, o da presença, para a comparação entre sujeito lírico e ser amado, este ainda se sobrepõe sobre aquele vinte vezes.
Notemos que a comparação entre um e outro ocorre na terceira estrofe que, situando-se no meio do poema, divide-o em dois segmentos. O primeiro, composto pelas duas primeiras estrofes, vai desenhando a imagem do amado como um ser de presença marcante e absorvente diante do qual tudo o mais é tragado. O segundo segmento do poema, composto, agora, pelas duas últimas estrofes, rompe com a estrutura paralelística que encabeçava os versos iniciais das duas primeiras estrofes e, iniciado pelo conector adversativo “mas”, apresenta um conteúdo informacional que se opõe ao que vinha sendo dito nas estrofes anteriores. Se antes, nas estrofes anteriores, com exceção da terceira, temos a presença excessiva do ser amado, as duas últimas vão falar da ausência dele e, de certa maneira, do alívio do sujeito lírico em se perceber só: “e de repente fraca, e de repente nua/confusa como os astros, atravessei a rua”.
O estado final do sujeito lírico, isto é, “confuso como os astros”, remete-nos aos versos inicias do poema nos quais está dito que a presença enorme do ser amado confundia os astros. Todavia, se antes a confusão advinha da presença dele, agora, é a sua ausência que provoca o estado confuso em que se encontra o sujeito lírico que, saindo do estado de torpor em que vivera diante do sufocante ser amado, atravessa a rua como se estivesse deixando para trás o que precisava ficar para trás: o ser amado e sua asfixiante presença. Como toda mudança radical não ocorre sem que sejam provocadas certas reações, o sujeito lírico só poderia sentir-se confuso.
Ainda da primeira parte de Almenara, achamos bastante paradigmático o seguinte poema, porque não só ainda está dentro do viés lírico-amoroso de que vimos tratando até agora, como, também, ainda faz remissão ao sema fogo:


SE NÃO TIVER O PASSO DAS FOGUEIRAS

Desembarquei sozinha das estrelas:
o que chamam de céu é só meu chão.
O patear dos sonhos me antecede
e o amor é minha vara de condão.

Presença absoluta, deus que treme
o ladeiroso esquife da razão,
amor que mais em eleva e mais me vence:
candeia amaviosa em minha mão.

Navego a cordilheira das promessas
neste tempo de encontros relativos.
Sofro o redemoinho das artérias:
ai que já não suporto ter sentidos.

Sentir danadamente como eu sinto
e abrir-se o peito em vasto precipício:
não me disseram, não, não me disseram
que a solidão rezava meu início.

O sonho é minha única alforria.
Do amor, do amor sou guia e prisioneira:
não me tente seguir e não me tente
se não tiver o passo das fogueiras.

Neste poema, composto por vinte versos divididos em cinco quartetos, o sujeito-lírico, espécie de ser cósmico, canta a importância do amor em seu destino, sentimento este a que ele se refere por meio da metáfora vara de condão e que lhe serve de candeia amaviosa, isto é, de guia, de fonte de iluminação. Devido a tal importância, o amor assume para o sujeito lírico uma “presença absoluta” que o eleva, mas diante do qual ele, o sujeito lírico, tomba vencido e que lhe exige a mais completa devoção.
Deste amor a que serve como um sacerdote, o sujeito lírico só pode fugir nos momentos de sonho, única via de evasão que lhe é possível. Por isso, o sujeito lírico sente-se guia e prisioneiro do amor, estado do qual ele só será retirado se o outro, o ser amado, for possuidor do passo das fogueiras, espécie de segredo que o sujeito lírico não revela qual é, mas que o outro deve ter, conforme podemos depreender da seguinte advertência: “não me tente seguir e não me tente/ se não tiver o passo das fogueiras”.
Na primeira parte de Almenara, Lucila Nogueira reúne, a nosso ver, os poemas que podem ser inseridos em três vieses, o que já tinha sido percebido por Mário da Silva Brito quando ele afirma que “Lucila canta o amor”, compromete-se com o social e chega a atingir o plano metafísico, empenhada em cobrir as muitas dimensões que a compõem como indivíduo a um tempo solitário e solidário”. O primeiro viés é, portanto, o de natureza lírico-amorosa, e nele se enquadram os poemas aqui analisados até agora, os quais assumem um tom bastante confessional e cujo sujeito lírico faz do desejo a expressão de seu ethos. O segundo viés é dotado de uma dicção mais social em que o sujeito lírico, para usar uma feliz expressão da poeta, “neste tempo de encontros relativos”, mais do que fazer reivindicações, faz reflexões ante “o caos desumanizador em que o mundo mergulhou” e o homem descobre-se como um ser partido ou em meio a um universo marcado, em toda a parte, por signos da destruição, do sofrimento, como indicam os semas cruz, sede, espinho, chicote, conforme podemos ler no poema abaixo:

O HOMEM


Por toda a parte a cruz, a sede, o espinho
o sangue refletindo a face exausta
e o chicote entoando ao seu céu hino.
Por toda a parte o peso do absurdo.

Por toda a parte a queda. E a terra fria
mergulhando a ferida consentida.
Por toda a parte o gesto é paralelo
e o fel inunda o lábio que suplica.

Por toda a parte sofre o ser que intenta
aureolar na sombra o absoluto.
Por toda a parte a morte é companheira
e a solidão  persiste além do túmulo.

Por toda a parte a carne é véu-limite
da chama que esvoaça sobre o tempo.
Mas se fiel o homem a seu caminho
por toda a parte é deus e ressuscita. 


Entretanto, se o homem vive em um mundo partido, estilhaçado, onde o chorar e o sofrer parecem ditar as regras, de maneira que a ferida não é mais provocada, mas consentida, como se o homem já estivesse se acostumado à dor e ao sofrer, e onde apenas a morte e a solidão revelam-se companheiras, se, enfim, boa parte dos signos explorados pelo sujeito lírico desenha uma geografia da desilusão, ainda assim, o sujeito lírico aventa uma possibilidade de esperança: o ressuscitar da dor, do caos, como podemos depreender da leitura dos seguintes versos: “Mas se fiel o homem a seu caminho/por toda a parte é deus e ressuscita”.  E a esperança, às vezes transmudada em sonho, parece ser um signo a pontuar não só determinados versos de alguns poemas (“cavo no peito uma ilusão de ferro/ e sou forte e as lamentações enterro”; “vida pressentida/ na torre sem lanternas a que chamava mundo”), mas alguns outros poemas, como este “CONTRA O SONHO NÃO PODE UM ARGUMENTO”:      


Rude estrada invertida, rude vento
rude atalho impreciso, rudimento
rude rumo arraigado rudemente.

Escondemos a ira, o sofrimento
todo o amor impossível, todo intento
e mais eles se alteiam para dentro.

Eu finjo que suporto e não agüento.
Eu finjo que suporto e me arrebento
ninguém jamais percebe o ferimento.

istante estou de ti neste momento.
Um sonho está pesando no meu ventre.
Contra o sonho não pode um argumento.

Nele aflora a saída inexistente
nele ocorre o triunfo das sementes 
sobre o deserto enorme à nossa frente.

Rude rumo que arrosto alegremente:
A vida está sonhando um novo tempo.
Contra o sonho não pode um argumento.


Ou então, este “TRAGO CHAGAS DE LUZ NO CORPO INTEIRO”, cujo título já apresenta em si mesmo uma belíssima metáfora para a esperança:

Trago chagas de luz no corpo inteiro.
Com a fúria das mágicas certezas
arremeto, severa, contra o gelo
que se alastra na sombra submersa.

Minhas armas secretas se bifurcam.
Mensageira, sou luta. O sonho é lento
e é preciso acender na mão a lança
que há de abrir sobre a terra um novo tempo.

Eis-me pronta, irmão, dentro do leito.
Trago ondas, estrelas, redemoinhos
de raízes selvagens me alimento.

Sou ramagem iluminando o vento.
A alquimia invencível do meu sangue
As origens do eterno submeto.


Por fim, a terceira dicção perceptível na poesia de Lucila Nogueira, em Almenara, é a de matiz metafísico ou filosófico-existencial.     

QUEBRANDO A PREPOTÊNCIA DOS GIGANTES

E enfrentei a manhã como quem dorme
na sela de uma águia agonizante.
Não temeram por mim os que me amaram:
deitei com as miragens do horizonte.

Não temeram por mim os que me amaram
e o sonho me estendeu taças de fogo.
Vaga-lumes agora me navegam
e enguias se eletrizam no meu corpo.

Pelo me ventre rola essa lanterna
a desferir circuitos do meu rosto.
Talvez por isso o amor levante ferros
sempre que me aproximo de seu porto.

Mas não temam por mim os que me amarem:
na veia fluorescente e trepidante
corre um riso de fadas e duendes
quebrando a prepotência dos gigantes.

A ideia de luta constante ante a prepotência dos gigantes já está assinalada pela forma gerundial do verbo quebrar presente no título do poema. O primeiro verso, por ser iniciado pela conjunção aditiva “e”, mantém relação com outro ou com outros enunciados aos quais não temos acesso, como se estivéssemos acompanhando o sujeito lírico em plena ação em desenvolvimento: “E enfrentei a manhã como quem dorme/ na sela de uma águia agonizante”. A ideia de combate está presente em todo o poema, o que pode ser corroborado pela presença de verbos como enfrentar, temer, desferir ou por substantivos como sela, taças de fogo, lanterna, ferros. Entretanto, parece-nos que o combate a ser enfrentado não é de natureza beligerante, mas de natureza psicológica, isto é, uma enfrentamento do eu consigo mesmo. Senão vejamos. Espécie de ser dotado não de poderes sobrenaturais, mas de forças advindas do esforço próprio, o sujeito lírico foi compelido à ação de quebrar a prepotência dos gigantes. Aqui, o sintagma nominal “gigantes” pode ser tomado como metáfora para tudo aquilo que o sujeito lírico, precisava enfrentar para libertar e expandir a sua personalidade.
Nesta espécie de jornada em busca de conhecimento de si, uma vez que se acreditarmos que o grande combate de gigantes é enfrentarmos “a evolução da vida no sentido de espiritualização”, o sujeito lírico precisou deitar-se “com as miragens dos horizontes”, isto é, possivelmente acreditar em falsas esperanças, alimentar-se de ilusões ou incorrer nas armadilhas do próprio Ego, mas não deixou de ser ajudado não só porque havia quem acreditasse nele, os que o amaram, mas também porque os sonhos, ao lhe estenderem taças de fogo, serviram-lhe de guia, iluminando os caminhos a serem seguidos bem como lhe veio o auxílio de seres fantásticos, como as fadas e duendes: “na veia fluorescente e trepidante/corre um riso de fadas e duendes/quebrando a prepotência dos gigantes”, os quais não só atuam como guias, mas representam “os poderes paranormais do espírito ou as capacidades mágicas da imaginação” e satisfazem, ou desfazem, os mais ambiciosos desejos.
Dentro da esfera de ambiciosos desejos, nota-se em Lucila Nogueira que a mais auspiciosa ambição é adquirir a simplicidade como um ideal de vida. Como exemplo desta filosofia das coisas simples ou da vida simples, leiamos o poema “O desafio”, cujo título já revela quão difícil é o que almeja o sujeito lírico:

Serei sempre tão clara como a vida
dos simples que semeiam neste campo:
seu ácido suor tem mais estrelas
que a penunbra macia dos meus sonhos.

Se um pássaro de amor em meus ouvidos
desfia a rede azul dos oceanos
eu cruzo de jangada para o abismo
acesas caravelas pelos ombros.

Toda nave me toma por sentido
no verão da cidade americana.
Atiro sob as pontes do Recife
meus olhos convergindo mar e campo.

Mas não passa a nudez das coisas simples.
pelo canal da hipocrisia humana:
arrasto no meu passo sempre um grito
dos que tremem seu medo pela sombra.

Eu desafio a máscara do tempo
a cada instante que respiro e ando.
Da farsa foge até o próprio verme:
onde vão enterrar tanta vergonha?

Sempre serei tão clara como a vida
dos simples: sem joguetes ou enganos.
Para o mundo me basta esta colina
e o amor que nela aponta o oceano.


Assim como o poema acima, a simplicidade como ideal a ser seguido é a tônica do poema a seguir, cujo título e cuja linguagem, na forma como são orquestrados, fazem da simplicidade não só elemento do plano do conteúdo, mas também do plano da expressão:

Lição

Um povo iluminado me orienta
me condena, me bate, me sepulta
e pisa alucinado no meu ventre
e afoga em sua ira o meu tumulto.

Um povo esfomeado me alimenta
após tomar-me o pão, a casa, tudo
me beija, me possui e me acalenta
e dança sem remorso no meu luto.

Povo desamparado, em sustenta
me ensina essa grandeza indissoluta
me ensina a ser só simples, verdadeira
e corajosa e firme e resoluta.


O sujeito lírico precisa passar por provas e despojar-se do que tem, ou ser expropriado, para receber, em troca, a grande lição: ser simples verdadeiramente. Notemos como a presença do polissíndeto no último verso (e corajoso e firme e resoluta) marca a persistência do sujeito lírico na busca por tal ideal ou na manutenção do ideal tão almejado.               
É perceptível também em alguns poemas certo talhe helenizante de que serve como exemplo este:

         A CARIÁTIDE

Com a fúria do sol e das feridas
em barro incendiado me levanto.
Assustarei as sombras do silêncio.
as espirais acessas são meu corpo.

Ergo um sinal e torno minha vida
do sangue e da esperança a cariátide.
Por onde eu for meu fardo me ilumina
e vela o sono exausto da cidade.

Por cariátide, entendemos as estátuas de mulheres que sustentavam o entablamento e a cobertura de prédios da Grécia antiga. Como sustentáculos, as cariátides representavam o ideal de harmonia grega, ideal que é respeitado por Lucila em seu poema, já que este é composto por duas estrofes que visivelmente parecem ser o reflexo da outra. As estrofes, além do mesmo número de versos, quatro em cada uma, também possuem a mesma métrica, isto é, apresentam versos decassílabicos. Como as cariátides, o sujeito lírico, composto pela “fúria do sol” e “das feridas em barro incendiado”, em referências aos elementos de que se constituíam tais estátuas, procura investir contra as intempéries do tempo, e, possivelmente do esquecimento, (“assustarei as sombras do silêncio”), valendo-se do corpo como locus de resistência (“as espirais acessas são meu corpo”). A fusão entre sujeito lírico e o ideal de ser cariátide é apresentada nos dois primeiros versos da segunda estrofe: “ergo sinal e torno minha vida/ do sangue e da esperança a cariátide”, em que o sangue e a esperança do sujeito lírico passam a ter a força e a resistência que caracteriza a cariátide sob cuja forma é que o sujeito lírico pode-se colocar como protetora da cidade: “Por onde eu for meu fardo me ilumina/ e vela o sono exausto da cidade”, já que, sendo uma cariátide, o sujeito lírico passa a ter como função de suportar, isto é, ter como fardo, o peso de algo que, no caso, é servir como sustentáculo da cidade, impedindo que ela venha a ruir. É portanto uma luta contra o desaparecimento e pela permanência em vida. Não seria, cremos, disparate ver nesse poema uma bela metáfora para o ser e o agir da própria poesia e, por extensão, do próprio poeta.
Por fim, a poesia de Lucila Nogueira, no livro em comento, pode ser vista, apropriando-nos de um verso do poema que serve de prelúdio à obra, como uma “labareda incessante que se atreve/mas que a abismos se sabe condenada”. Poderíamos perguntar que abismos são esses. Cremos que eles são os abismos do Amor, da Existência, da preocupação com o social, espécies de linhas de força que dão forma à poesia de Lucila Nogueira em Almenara, um poesia cujo sujeito lírico desencadeia uma busca possivelmente marcada pela impossibilidade de encontrar o que se foi buscar, uma vez que o importante não é encontrar o objeto buscado, mas desencadear a demanda, como podemos ler no seguinte poema que abre a primeira parte do livro:

PORQUE NÃO TE CONHEÇO TE PROCURO


Porque não te conheço te procuro.
E te chamo de amigo e te asseguro
que  invisível falcão me dilacera.

Sou uma caça abatida em meio a feras.
E abatida inda busco o monumento
Que eleve a paz e luz o sofrimento.

Amar é dispensar todas as armas.
É partir para o sonho, o corpo claro
e voltar tinturado pelas balas.

Eu peço ferro e fogo nesta chaga.
Até que ela por si murche e endureça
e a ternura em seus marcos amanheça.

Eu recuso, eu acuso e ultimo a farsa
Que está sempre exigindo quem abraça.
Quando a verdade some a fé naufraga.

Que a fé no meu peito não te afaste:
Feridas em memória eu transfiguro.
Porque não te conheço te procuro.
   
 Como podemos perceber, o eu-lirico anuncia aquilo que o move: o desejo de conhecer o que se lhe afigura como desconhecido, isto é, “o invisível falcão que me dilacera”. Esse algo que desencadeia a busca, o desejo de conhecimento é, a pensar-se no título do poema, o ser amado, este que é a fonte das nossas dores e alegrias, este que nos faz sentir vivos porque mantém acesa em nós a nossa chama de pulsão de vida, mas que sempre se nos revela uma incógnita, um terreno desconhecido, daí por que a presença do paradoxo que está presente no verso que serve de título do poema, que abre a primeira estrofe e encerra a última: “Porque não te conheço te procuro”, não nos oferecendo o alívio do encontro, mas a insatisfação do desejo não saciado a nos impulsionar a manter a busca pelo que se nos apresenta como um terreno a ser ainda explorado, penetrado, conhecido e que pode deixar em nós feridas que, conforme ensina o eu lírico em um belíssimo verso, precisam ser transfiguradas: “Feridas em memória eu transfiguro”.
Em uma linguagem objetiva, em um verso limpo e transparente, Lucila Nogueira, neste seu livro de estréia, apresenta-se como senhora de uma poesia que fala mais da plenitude do ser do que da carência do ser. A busca por compreender a plenitude do ser faz da poesia de Lucila Nogueira uma espécie de almenara inapagável cujas chamas foram tornando-se mais intensa à medida que passou a reluzir em outras obras.


BIBLIOGRAFIA

NOGUEIRA, Lucila. Almenara: poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. (Coleção Poesia Hoje; v. 34).

BOSI, Alfredo. Interpretação da obra literária. In: ______Céu, inferno. 2.ed. São Paulo: Dias Cidades; Editora 34, 2003.

______ . O som no signo. In: _____ o ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


BRITO, João Batista de (org.).  Leitura do texto poético: ensaios de (e para) a sala de aula. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1997. 

Fonte da Imagem:

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/31/Lucila_Nogueira_-_Grega.JPG/220px-Lucila_Nogueira_-_Grega.JPG

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