O
VERBO INCANDESCENTE:
CONSIDERAÇÕES
ACERCA DE ALMENARA DE LUCILA NOGUEIRA
O
primeiro livro de poesia de Lucila Nogueira já nos chama atenção pelo próprio
título: Almenara. Como está dito na orelha da obra, assinada por Mario da Silva
Brito, por almenara entende-se:
um
fogo, uma luz que se acendia nas atalaias ou torres de antigas cidades. Para
dar sinais, avisar o povo sobre o movimento de tropas inimigas ou da chegada de
piratas e assaltantes, servindo, ainda, para enviar mensagens, quando
transportada de uma área para outra. Anunciava também a deposição do rei.
Permanentemente acesa, guiava os caminheiros da noite. É um farol da terra, um
nome antigo de candeeiro, a defesa luminosa de um burgo em tempo de perigo.
Entretanto,
a ideia de guia, de iluminação, de condução, de aviso não fica circunscrita
apenas ao título do livro. Os poemas de Almenara colocam em exercício aquilo que
o título já prenuncia, isto é, são uma espécie de chama a manter sempre acessa
a poesia a guiar a nós em meio às atrocidades da vida em sociedade ou em meio
às dores e delícias da existência. E a poeta parece-nos ser uma sacerdotisa que
procura manter viva a chama da poesia “neste tempo de encontros relativos” e
que só nos faz uma exigência: “não me tente seguir e não me tente/ se não tiver
o passo das fogueiras”. O fogo parece, então, desde o título, a maior isotopia figurativa
da obra.
Conforme
ensina o professor João Batista de Brito, em teoria poética, por isotopia
entendemos a construção, em determinado texto, “de um universo semântico a
partir da reiteração de elementos de significação subterrânea, em princípio, menor
que a extensão semântica de uma palavra” (BRITO, 1997, p.08). Os pequenos
pedaços de sentido recebem o nome de sema, os quais, geralmente, estão
presentes nos poemas de forma caótica e são quase imperceptíveis a olho nu. No
livro de Lucila Nogueira, o fogo inerente ao significado da palavra que dá
título à obra vem à tona na forma de outros semas, tais como: labareda, aceso,
esbraseada, fogo, fogueiras, queimadura, taças de fogo, centelhas, incêndio, acender,
arder, consome, chama, incendiado. Cabe a nós, entretanto, descortinar
qual(is) o/os universo(s) de sentido
para o qual apontam tais semas. Nesse caso, um dos primeiros feixes de
significação é aquele em que o sema “fogo” pode se associado a uma isotopia
temática: a do desejo, à qual somos remetidos mediante a presença de semas
como: fogo, chaga, nua, amor, convulsões, desespera,
irrompo, e que pode ser comprovada mediante a leitura de poemas como:
SE
UMA MULHER ESPERA
Talvez
se a manhã vier me restitua
a
túnica universal da primavera
mas
agora estou triste, só e nua
te
esperando, sem sono, na janela.
Eu
não durmo, não chegas, e é tão tarde
descem
na minha dor todos os astros.
Se
uma mulher espera, a noite arde
e
o mundo vira e revira em sua carne.
Levanto
a cada ruído, mas não chega
aquele
por quem se ilumina toda a rua.
Ai,
se uma mulher espera, nos seus braços
resume
a certeza de todos os espaços.
Mas
talvez se chegar a madrugada
meu
amor pode ser venha com ela
e
me deixe cantar nossas cantigas
e
adormeça em meu colo e cesse a guerra
que
me faz nesta hora tão sozinha
triste
e desesperada sobre a terra.
O
poema acima, mais do que tematizar a espera feminina pelo amado, tematiza os
efeitos dessa espera: a solidão, o arder de desejo por aquele que se encontra
ausente. E, na configuração do desejo imantado na espera, a poeta cria imagens
lapidares como: “Se uma mulher espera, a noite arde/ e o mundo vira e revira em
sua carne”. Embora o poema tenha como título uma construção que estabelece a
ideia de hipótese, todo o poema fala de reações que não se realizam no plano
das hipóteses, mas no da experiência vivida, sentida na própria pele e
acalentada pelas dúvidas que suscita toda e qualquer espera: “Mas talvez se
chegar a madrugada/ meu amor pode ser venha com ela/ e me deixe cantar nossas
cantigas/ e adormeça em meu colo e cesse a guerra/ que me faz nesta hora tão
sozinha/ triste e desesperada sobre a terra”. Hipotética é apenas a chegada do
amado. Certos são os medos, os receios e os desejos por sua chegada: “Levanto a
cada ruído, mas não chega/aquele por quem se ilumina toda a rua”.
Dentre
dessa perspectiva lírico-amorosa, parece que o sujeito lírico feminino, quando
não está a cantar a espera pelo amado, canta a separação, mas não a partir de
uma perspectiva triste e melancólica, ainda que tenha ficado o vazio do
abandono:
TUA
PRESENÇA ENORME
Tua
presença enorme confundiu os astros
emudeceu
as aves, despovoou a rua.
Tua
presença enorme absorveu meus passos
entregando-me
à noite, subitamente nua.
Tua
presença enorme incandeou o fogo
suspenso
no meu colo, em meio a qualquer chuva.
Tua
presença enorme ultrapassou o jogo
aniquilou
muralhas, envergonhou a luta.
Tua
presença forte, noventa vezes forte
estremeceu
a carne, violentou o rumo.
Minha
presença terna, setenta vezes terna
feriste
e abandonaste, distantemente rude.
Mas
houve indefinido e poderoso vento
misterioso
e claro a bater no meu rosto.
E
eu vi em teu olhar fantasmas submersos
estendendo-me
os braços, na ânsia de ser sonho.
Foi
queixa, não foi guerra o teu grito profundo
atravessando
a noite, desacordando o mundo
e
de repente fraca, e de repente nua
confusa
como os astros, atravessei a rua.
No
poema acima, desde o título, a repetição do sintagma “tua presença enorme” vai,
em um crescendo, mostrando, anaforicamente, como a figura do ser amado
revelou-se como algo que absorveu não só o sujeito lírico, metonimicamente
representado pelo sintagma nominal “passos” em “tua presença enorme absorveu
meus passos”; como também tudo o mais ao seu redor: os astros, as aves, a rua.
Em contraposição a esse ser que é capaz de emudecer as aves, confundir as aves,
incandear o fogo do desejo, o sujeito lírico se apresenta como terno, ainda que
a sua ternura tenha sido ferida e abandonada pelo expansivo ser amado,
hiperbolicamente referido em “tua presença noventa vezes forte”.
Outra
hipérbole também encontramos no décimo primeiro verso, a qual faz menção
ao sujeito lírico, mais especificamente
à presença terna dele, embora o exagero tão característico da hipérbole não
ocorra na mesma proporção ao que é feito à figura do amado do sujeito lírico
feminino. Se a presença do ser amado é noventa vezes forte; a presença do
sujeito lírico é setenta vezes terna. Ou seja, embora tomando um mesmo elemento
comum, o da presença, para a comparação entre sujeito lírico e ser amado, este
ainda se sobrepõe sobre aquele vinte vezes.
Notemos
que a comparação entre um e outro ocorre na terceira estrofe que, situando-se
no meio do poema, divide-o em dois segmentos. O primeiro, composto pelas duas
primeiras estrofes, vai desenhando a imagem do amado como um ser de presença
marcante e absorvente diante do qual tudo o mais é tragado. O segundo segmento
do poema, composto, agora, pelas duas últimas estrofes, rompe com a estrutura
paralelística que encabeçava os versos iniciais das duas primeiras estrofes e,
iniciado pelo conector adversativo “mas”, apresenta um conteúdo informacional
que se opõe ao que vinha sendo dito nas estrofes anteriores. Se antes, nas
estrofes anteriores, com exceção da terceira, temos a presença excessiva do ser
amado, as duas últimas vão falar da ausência dele e, de certa maneira, do alívio
do sujeito lírico em se perceber só: “e de repente fraca, e de repente
nua/confusa como os astros, atravessei a rua”.
O
estado final do sujeito lírico, isto é, “confuso como os astros”, remete-nos
aos versos inicias do poema nos quais está dito que a presença enorme do ser
amado confundia os astros. Todavia, se antes a confusão advinha da presença
dele, agora, é a sua ausência que provoca o estado confuso em que se encontra o
sujeito lírico que, saindo do estado de torpor em que vivera diante do
sufocante ser amado, atravessa a rua como se estivesse deixando para trás o que
precisava ficar para trás: o ser amado e sua asfixiante presença. Como toda
mudança radical não ocorre sem que sejam provocadas certas reações, o sujeito
lírico só poderia sentir-se confuso.
Ainda
da primeira parte de Almenara, achamos bastante paradigmático o seguinte poema,
porque não só ainda está dentro do viés lírico-amoroso de que vimos tratando
até agora, como, também, ainda faz remissão ao sema fogo:
SE
NÃO TIVER O PASSO DAS FOGUEIRAS
Desembarquei
sozinha das estrelas:
o
que chamam de céu é só meu chão.
O
patear dos sonhos me antecede
e
o amor é minha vara de condão.
Presença
absoluta, deus que treme
o
ladeiroso esquife da razão,
amor
que mais em eleva e mais me vence:
candeia
amaviosa em minha mão.
Navego
a cordilheira das promessas
neste
tempo de encontros relativos.
Sofro
o redemoinho das artérias:
ai
que já não suporto ter sentidos.
Sentir
danadamente como eu sinto
e
abrir-se o peito em vasto precipício:
não
me disseram, não, não me disseram
que
a solidão rezava meu início.
O
sonho é minha única alforria.
Do
amor, do amor sou guia e prisioneira:
não
me tente seguir e não me tente
se
não tiver o passo das fogueiras.
Neste
poema, composto por vinte versos divididos em cinco quartetos, o sujeito-lírico,
espécie de ser cósmico, canta a importância do amor em seu destino, sentimento
este a que ele se refere por meio da metáfora vara de condão e que lhe serve de
candeia amaviosa, isto é, de guia, de fonte de iluminação. Devido a tal
importância, o amor assume para o sujeito lírico uma “presença absoluta” que o
eleva, mas diante do qual ele, o sujeito lírico, tomba vencido e que lhe exige
a mais completa devoção.
Deste
amor a que serve como um sacerdote, o sujeito lírico só pode fugir nos momentos
de sonho, única via de evasão que lhe é possível. Por isso, o sujeito lírico
sente-se guia e prisioneiro do amor, estado do qual ele só será retirado se o
outro, o ser amado, for possuidor do passo das fogueiras, espécie de segredo
que o sujeito lírico não revela qual é, mas que o outro deve ter, conforme
podemos depreender da seguinte advertência: “não me tente seguir e não me
tente/ se não tiver o passo das fogueiras”.
Na
primeira parte de Almenara, Lucila Nogueira reúne, a nosso ver, os poemas que
podem ser inseridos em três vieses, o que já tinha sido percebido por Mário da
Silva Brito quando ele afirma que “Lucila canta o amor”, compromete-se com o
social e chega a atingir o plano metafísico, empenhada em cobrir as muitas
dimensões que a compõem como indivíduo a um tempo solitário e solidário”. O
primeiro viés é, portanto, o de natureza lírico-amorosa, e nele se enquadram os
poemas aqui analisados até agora, os quais assumem um tom bastante confessional
e cujo sujeito lírico faz do desejo a expressão de seu ethos. O segundo viés é
dotado de uma dicção mais social em que o sujeito lírico, para usar uma feliz
expressão da poeta, “neste tempo de encontros relativos”, mais do que fazer
reivindicações, faz reflexões ante “o caos desumanizador em que o mundo
mergulhou” e o homem descobre-se como um ser partido ou em meio a um universo
marcado, em toda a parte, por signos da destruição, do sofrimento, como indicam
os semas cruz, sede, espinho, chicote, conforme podemos ler no poema abaixo:
O
HOMEM
Por
toda a parte a cruz, a sede, o espinho
o
sangue refletindo a face exausta
e
o chicote entoando ao seu céu hino.
Por
toda a parte o peso do absurdo.
Por
toda a parte a queda. E a terra fria
mergulhando
a ferida consentida.
Por
toda a parte o gesto é paralelo
e
o fel inunda o lábio que suplica.
Por
toda a parte sofre o ser que intenta
aureolar
na sombra o absoluto.
Por
toda a parte a morte é companheira
e
a solidão persiste além do túmulo.
Por
toda a parte a carne é véu-limite
da
chama que esvoaça sobre o tempo.
Mas
se fiel o homem a seu caminho
por
toda a parte é deus e ressuscita.
Entretanto,
se o homem vive em um mundo partido, estilhaçado, onde o chorar e o sofrer
parecem ditar as regras, de maneira que a ferida não é mais provocada, mas
consentida, como se o homem já estivesse se acostumado à dor e ao sofrer, e
onde apenas a morte e a solidão revelam-se companheiras, se, enfim, boa parte
dos signos explorados pelo sujeito lírico desenha uma geografia da desilusão,
ainda assim, o sujeito lírico aventa uma possibilidade de esperança: o
ressuscitar da dor, do caos, como podemos depreender da leitura dos seguintes
versos: “Mas se fiel o homem a seu caminho/por toda a parte é deus e
ressuscita”. E a esperança, às vezes
transmudada em sonho, parece ser um signo a pontuar não só determinados versos
de alguns poemas (“cavo no peito uma ilusão de ferro/ e sou forte e as
lamentações enterro”; “vida pressentida/ na torre sem
lanternas a que chamava mundo”), mas alguns outros poemas, como este
“CONTRA O SONHO NÃO PODE UM ARGUMENTO”:
Rude
estrada invertida, rude vento
rude
atalho impreciso, rudimento
rude
rumo arraigado rudemente.
Escondemos
a ira, o sofrimento
todo
o amor impossível, todo intento
e
mais eles se alteiam para dentro.
Eu
finjo que suporto e não agüento.
Eu
finjo que suporto e me arrebento
ninguém
jamais percebe o ferimento.
istante
estou de ti neste momento.
Um
sonho está pesando no meu ventre.
Contra
o sonho não pode um argumento.
Nele
aflora a saída inexistente
nele
ocorre o triunfo das sementes
sobre
o deserto enorme à nossa frente.
Rude
rumo que arrosto alegremente:
A
vida está sonhando um novo tempo.
Contra
o sonho não pode um argumento.
Ou
então, este “TRAGO CHAGAS DE LUZ NO CORPO INTEIRO”, cujo título já apresenta em
si mesmo uma belíssima metáfora para a esperança:
Trago
chagas de luz no corpo inteiro.
Com
a fúria das mágicas certezas
arremeto,
severa, contra o gelo
que
se alastra na sombra submersa.
Minhas
armas secretas se bifurcam.
Mensageira,
sou luta. O sonho é lento
e
é preciso acender na mão a lança
que
há de abrir sobre a terra um novo tempo.
Eis-me
pronta, irmão, dentro do leito.
Trago
ondas, estrelas, redemoinhos
de
raízes selvagens me alimento.
Sou
ramagem iluminando o vento.
A
alquimia invencível do meu sangue
As
origens do eterno submeto.
Por
fim, a terceira dicção perceptível na poesia de Lucila Nogueira, em Almenara, é
a de matiz metafísico ou filosófico-existencial.
QUEBRANDO
A PREPOTÊNCIA DOS GIGANTES
E
enfrentei a manhã como quem dorme
na
sela de uma águia agonizante.
Não
temeram por mim os que me amaram:
deitei
com as miragens do horizonte.
Não
temeram por mim os que me amaram
e
o sonho me estendeu taças de fogo.
Vaga-lumes
agora me navegam
e
enguias se eletrizam no meu corpo.
Pelo
me ventre rola essa lanterna
a
desferir circuitos do meu rosto.
Talvez
por isso o amor levante ferros
sempre
que me aproximo de seu porto.
Mas
não temam por mim os que me amarem:
na
veia fluorescente e trepidante
corre
um riso de fadas e duendes
quebrando
a prepotência dos gigantes.
A
ideia de luta constante ante a prepotência dos gigantes já está assinalada pela
forma gerundial do verbo quebrar
presente no título do poema. O primeiro verso, por ser iniciado pela conjunção
aditiva “e”, mantém relação com outro ou com outros enunciados aos quais não
temos acesso, como se estivéssemos acompanhando o sujeito lírico em plena ação
em desenvolvimento: “E enfrentei a manhã como quem dorme/ na sela de uma águia
agonizante”. A ideia de combate está presente em todo o poema, o que pode ser
corroborado pela presença de verbos como enfrentar, temer, desferir ou por
substantivos como sela, taças de fogo, lanterna, ferros. Entretanto, parece-nos
que o combate a ser enfrentado não é de natureza beligerante, mas de natureza
psicológica, isto é, uma enfrentamento do eu consigo mesmo. Senão vejamos. Espécie
de ser dotado não de poderes sobrenaturais, mas de forças advindas do esforço
próprio, o sujeito lírico foi compelido à ação de quebrar a prepotência dos
gigantes. Aqui, o sintagma nominal “gigantes” pode ser tomado como metáfora
para tudo aquilo que o sujeito lírico, precisava enfrentar para libertar e
expandir a sua personalidade.
Nesta
espécie de jornada em busca de conhecimento de si, uma vez que se acreditarmos
que o grande combate de gigantes é enfrentarmos “a evolução da vida no sentido
de espiritualização”, o sujeito lírico precisou deitar-se “com as miragens dos
horizontes”, isto é, possivelmente acreditar em falsas esperanças, alimentar-se
de ilusões ou incorrer nas armadilhas do próprio Ego, mas não deixou de ser
ajudado não só porque havia quem acreditasse nele, os que o amaram, mas também
porque os sonhos, ao lhe estenderem taças de fogo, serviram-lhe de guia,
iluminando os caminhos a serem seguidos bem como lhe veio o auxílio de seres fantásticos,
como as fadas e duendes: “na veia fluorescente e trepidante/corre um riso de
fadas e duendes/quebrando a prepotência dos gigantes”, os quais não só atuam
como guias, mas representam “os poderes paranormais do espírito ou as
capacidades mágicas da imaginação” e satisfazem, ou desfazem, os mais
ambiciosos desejos.
Dentro
da esfera de ambiciosos desejos, nota-se em Lucila Nogueira que a mais
auspiciosa ambição é adquirir a simplicidade como um ideal de vida. Como
exemplo desta filosofia das coisas simples ou da vida simples, leiamos o poema
“O desafio”, cujo título já revela quão difícil é o que almeja o sujeito
lírico:
Serei
sempre tão clara como a vida
dos
simples que semeiam neste campo:
seu
ácido suor tem mais estrelas
que
a penunbra macia dos meus sonhos.
Se
um pássaro de amor em meus ouvidos
desfia
a rede azul dos oceanos
eu
cruzo de jangada para o abismo
acesas
caravelas pelos ombros.
Toda
nave me toma por sentido
no
verão da cidade americana.
Atiro
sob as pontes do Recife
meus
olhos convergindo mar e campo.
Mas
não passa a nudez das coisas simples.
pelo
canal da hipocrisia humana:
arrasto
no meu passo sempre um grito
dos
que tremem seu medo pela sombra.
Eu
desafio a máscara do tempo
a
cada instante que respiro e ando.
Da
farsa foge até o próprio verme:
onde
vão enterrar tanta vergonha?
Sempre
serei tão clara como a vida
dos
simples: sem joguetes ou enganos.
Para
o mundo me basta esta colina
e
o amor que nela aponta o oceano.
Assim
como o poema acima, a simplicidade como ideal a ser seguido é a tônica do poema
a seguir, cujo título e cuja linguagem, na forma como são
orquestrados, fazem da simplicidade não só elemento do plano do conteúdo, mas
também do plano da expressão:
Lição
Um
povo iluminado me orienta
me
condena, me bate, me sepulta
e
pisa alucinado no meu ventre
e
afoga em sua ira o meu tumulto.
Um
povo esfomeado me alimenta
após
tomar-me o pão, a casa, tudo
me
beija, me possui e me acalenta
e
dança sem remorso no meu luto.
Povo
desamparado, em sustenta
me
ensina essa grandeza indissoluta
me
ensina a ser só simples, verdadeira
e
corajosa e firme e resoluta.
O
sujeito lírico precisa passar por provas e despojar-se do que tem, ou ser
expropriado, para receber, em troca, a grande lição: ser simples verdadeiramente.
Notemos como a presença do polissíndeto no último verso (e corajoso e firme e resoluta) marca a persistência do sujeito
lírico na busca por tal ideal ou na manutenção do ideal tão almejado.
É
perceptível também em alguns poemas certo talhe helenizante de que serve como
exemplo este:
A CARIÁTIDE
Com
a fúria do sol e das feridas
em
barro incendiado me levanto.
Assustarei
as sombras do silêncio.
as
espirais acessas são meu corpo.
Ergo
um sinal e torno minha vida
do
sangue e da esperança a cariátide.
Por
onde eu for meu fardo me ilumina
e
vela o sono exausto da cidade.
Por
cariátide, entendemos as estátuas de mulheres que sustentavam o entablamento e
a cobertura de prédios da Grécia antiga. Como sustentáculos, as cariátides
representavam o ideal de harmonia grega, ideal que é respeitado por Lucila em
seu poema, já que este é composto por duas estrofes que visivelmente parecem
ser o reflexo da outra. As estrofes, além do mesmo número de versos, quatro em
cada uma, também possuem a mesma métrica, isto é, apresentam versos
decassílabicos. Como as cariátides, o sujeito lírico, composto pela “fúria do
sol” e “das feridas em barro incendiado”, em referências aos elementos de que
se constituíam tais estátuas, procura investir contra as intempéries do tempo,
e, possivelmente do esquecimento, (“assustarei as sombras do silêncio”),
valendo-se do corpo como locus de
resistência (“as espirais acessas são meu corpo”). A fusão entre sujeito lírico
e o ideal de ser cariátide é apresentada nos dois primeiros versos da segunda
estrofe: “ergo sinal e torno minha vida/ do sangue e da esperança a cariátide”,
em que o sangue e a esperança do sujeito lírico passam a ter a força e a
resistência que caracteriza a cariátide sob cuja forma é que o sujeito lírico
pode-se colocar como protetora da cidade: “Por onde eu for meu fardo me
ilumina/ e vela o sono exausto da cidade”, já que, sendo uma cariátide, o
sujeito lírico passa a ter como função de suportar, isto é, ter como fardo, o
peso de algo que, no caso, é servir como sustentáculo da cidade, impedindo que
ela venha a ruir. É portanto uma luta contra o desaparecimento e pela
permanência em vida. Não seria, cremos, disparate ver nesse poema uma bela
metáfora para o ser e o agir da própria poesia e, por extensão, do próprio
poeta.
Por
fim, a poesia de Lucila Nogueira, no livro em comento, pode ser vista, apropriando-nos
de um verso do poema que serve de prelúdio à obra, como uma “labareda
incessante que se atreve/mas que a abismos se sabe condenada”. Poderíamos
perguntar que abismos são esses. Cremos que eles são os abismos do Amor, da
Existência, da preocupação com o social, espécies de linhas de força que dão
forma à poesia de Lucila Nogueira em Almenara, um poesia cujo sujeito lírico
desencadeia uma busca possivelmente marcada pela impossibilidade de encontrar o
que se foi buscar, uma vez que o importante não é encontrar o objeto buscado,
mas desencadear a demanda, como podemos ler no seguinte poema que abre a
primeira parte do livro:
PORQUE
NÃO TE CONHEÇO TE PROCURO
Porque
não te conheço te procuro.
E
te chamo de amigo e te asseguro
que invisível falcão me dilacera.
Sou
uma caça abatida em meio a feras.
E
abatida inda busco o monumento
Que
eleve a paz e luz o sofrimento.
Amar
é dispensar todas as armas.
É
partir para o sonho, o corpo claro
e
voltar tinturado pelas balas.
Eu
peço ferro e fogo nesta chaga.
Até
que ela por si murche e endureça
e
a ternura em seus marcos amanheça.
Eu
recuso, eu acuso e ultimo a farsa
Que
está sempre exigindo quem abraça.
Quando
a verdade some a fé naufraga.
Que
a fé no meu peito não te afaste:
Feridas
em memória eu transfiguro.
Porque
não te conheço te procuro.
Como podemos perceber, o eu-lirico anuncia
aquilo que o move: o desejo de conhecer o que se lhe afigura como desconhecido,
isto é, “o invisível falcão que me dilacera”. Esse algo que desencadeia a
busca, o desejo de conhecimento é, a pensar-se no título do poema, o ser amado,
este que é a fonte das nossas dores e alegrias, este que nos faz sentir vivos
porque mantém acesa em nós a nossa chama de pulsão de vida, mas que sempre se
nos revela uma incógnita, um terreno desconhecido, daí por que a presença do
paradoxo que está presente no verso que serve de título do poema, que abre a
primeira estrofe e encerra a última: “Porque não te conheço te procuro”, não
nos oferecendo o alívio do encontro, mas a insatisfação do desejo não saciado a
nos impulsionar a manter a busca pelo que se nos apresenta como um terreno a
ser ainda explorado, penetrado, conhecido e que pode deixar em nós feridas que,
conforme ensina o eu lírico em um belíssimo verso, precisam ser transfiguradas:
“Feridas em memória eu transfiguro”.
Em
uma linguagem objetiva, em um verso limpo e transparente, Lucila Nogueira,
neste seu livro de estréia, apresenta-se como senhora de uma poesia que fala
mais da plenitude do ser do que da carência do ser. A busca por compreender a
plenitude do ser faz da poesia de Lucila Nogueira uma espécie de almenara inapagável
cujas chamas foram tornando-se mais intensa à medida que passou a reluzir em
outras obras.
BIBLIOGRAFIA
NOGUEIRA, Lucila. Almenara: poesia.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro,
1979. (Coleção Poesia Hoje; v. 34).
BOSI, Alfredo. Interpretação da
obra literária. In: ______Céu, inferno.
2.ed. São Paulo: Dias Cidades; Editora 34, 2003.
______ . O som
no signo. In: _____ o ser e o tempo da
poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BRITO, João
Batista de (org.). Leitura do texto
poético: ensaios de (e para) a sala de aula. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 1997.
Fonte da Imagem:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/31/Lucila_Nogueira_-_Grega.JPG/220px-Lucila_Nogueira_-_Grega.JPG
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