terça-feira, 23 de setembro de 2008

Júlia Lopes de Almeida [1] – a sagrada família: uma leitura de A isca


Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Federal da Paraíba – PPGL



Nascida no século XIX, Júlia Lopes de Almeida, assim como muitas de suas coetâneas oitocentistas, escreveu obras que versam, sobretudo, a respeito da esfera doméstica onde muitas mulheres permaneceram fechadas dentro de casas e sobrados, mocambos e senzalas, construídos por seus pais, maridos, senhores. O privado foi, então, o cenário escolhido por essas autoras para fazer desfilarem, na ficção, mulheres que, igualmente como as da realidade, eram confinadas no mundo interior da família e mantidas sob o jugo patriarcal. Sendo assim, voltadas para o espaço doméstico, o privado, as mulheres, ao construírem o seu universo ficcional ou poético, deram prioridades aos laços familiares:

Estes laços, protetores e constritivos, são, freqüentemente, elementos estruturantes dos conflitos narrados. A família é, de fato, um tema que se impõe àqueles(as) que se interessam pela problemática feminina, seja ela abordada pelos mais diferentes campos do saber (XAVIER, 1998, p. 13).

A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”, daí serem recorrentes na produção delas temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordassem nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública, isto é, assuntos de homem. Assim, não nos causa estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e planejados pela arquitetura masculina, as mulheres escolhessem justamente esses espaços para falarem, dizerem quem eram, são e foram.
Esses escritos, ainda que tenham tomado a esfera privada como cenário, são registros de “modos específicos de dramatização do crescimento urbano, da expansão industrial e da modernização dos costumes, nas primeiras décadas do século 20” (RAGO, 2005, p. 196). Por outro lado, esses mesmo escritos revelam também os efeitos individualizadores da crença nas tradicionais divisões entre os papéis sexuais e entre as esferas pública e privada, já que os assuntos mais recorrentes eram vistos, sob a óptica masculina, como simples coisas de mulher e, portanto, desprovidos de qualquer valor. Entretanto, “essas simples coisas de mulher” são uma preciosa fonte de informações sobre a família, a vida doméstica, a visão dos oprimidos e trouxeram para o espaço público assuntos ligados ao campo da moral, do cotidiano e dos costumes, mas também ao campo da sexualidade, do amor, do casamento e da prostituição.
A isca de Júlia Lopes de Almeida é um bom exemplo de como assuntos da esfera do privado vieram para o espaço público sob a ótica de um olhar feminino. Apresentada como livro de contos pelo Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (2002), A isca (1911) é, no entanto, classificada, conforme edição da Livraria Leite Ribeiro, publicada em 1922, como um conjunto de novelas que, além da que dá título ao livro, é composto por mais três: O homem que olha para dentro, O laço azul e O dedo do velho. Deter-nos-emos apenas na primeira dessas quatro novelas.
A isca é uma novela cuja trama gira em torno de duas forças igualmente poderosas: o amor e o dinheiro. Nesse caso, parece que Júlia Lopes dá continuidade ao que José de Alencar fizera em Senhora (1875). Ratificam essa nossa impressão o fato de o personagem criado por Júlia Lopes trazer o mesmo sobrenome do personagem criado por Alencar e o fato de o enredo de A isca ser muito semelhante ao de Senhora, romance em que se narra o processo de compra de um marido. Lembremos que o romance é estruturado em quatro partes que representam as etapas dessa compra: “O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”.
Na primeira, Alencar fala do dote oferecido por Aurélia para casar-se com Seixas. Como ela “precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas”, Seixas estava disponível no mercado e ela podia pagar por ele. O casamento seria, então, a forma mediante a qual Seixas, rapaz casadoiro e possuidor de economias corroídas e de posses escassas, poderia inserir-se noutra classe social e elevar-se. No dizer de Antonio Candido, “Fernando Seixas é um intelectual elegante e pobre, que, incapaz da ascese comercial de Jorge da Silva, [personagem de A Viuvinha], resolve o problema da posição social trocando por cem contos a liberdade de solteiro numa transação escusa” (CANDIDO, 2000, p. 205).
Na segunda parte do romance, estabelecida a realidade de mulher traída e a de homem vendido, o narrador mostra como Aurélia despertava “a fome de ouro nos cavalheiros do lansquenete matrimonial” até que veio a comprar um marido. Adquirido o esposo, Aurélia, entretanto, fugia do mercenário, “como se receasse o contágio do homem a quem unira” e que se lhe apresentava “reduzido à mercadoria ou traste” cuja cotação era feita no mercado, assim como “se usava outrora com os lotes de escravos”.
Na terceira parte, feita a transação matrimonial, não acontece a tão esperada consumação carnal do dito “santo amor conjugal”, pois Seixas, transformado de sujeito a objeto, e Aurélia vivem separados por um divórcio moral. Por fim, na última parte, expiada a culpa de Seixas, ele é restituído à sua natureza generosa e, regenerado, está pronto para tornar-se livre mais uma vez, só que, agora, ao lado da esposa que, em nome do amor, foi também redimida de seu orgulho.
Em A isca, Antônio Seixas, tal qual Fernando de Senhora, é uma espécie de arrivista social. Entretanto, Alencar narra a história da compra de um marido, Júlia Lopes de Almeida em sua novela nos narra os fatos acontecidos depois de o negócio firmado. Guardadas as devidas diferenças, ambos os autores procuram enfatizar o aspecto comercial do casamento, como se fosse mais um negócio a ser realizado. Se Alencar fala da compra de um marido, Júlia Lopes fala da caça a uma esposa rica. Neste caso, o título da novela é bastante sintomático, pois, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo isca significa “chamariz que se põe no anzol para atrair e capturar peixes”. Lida a novela, perceberemos que a personagem Isabel de Mendonça será a isca de que se valerá Antonio Seixas para conseguir a sua ascensão social. Dessa forma Isabel de Mendonça e Antonio Seixas constituem os vértices de um triângulo cuja outra ponta é composta por Vera Landim.
Quando a narrativa inicia-se, Isabel e Antonio já estão de casamento marcado. Vera nos é apresentada como a noiva abandonada por Antonio, já que este preterira Isabel a ela. Isabel tinha sido, na opinião de Dionísio, personagem que tenha consolar Vera, o objeto que Antônio ambicionara:

– Deixe-os dançar e pensar que são felizes. Para eles a vida está toda dentro daquele ritmo vagaroso. Viverão sempre assim, para trás e para diante, para diante e para trás, sem vôos de imaginação e nem poesia ... Até aqui o Antonio ainda tinha uma certa expressão interessante, porque era ambicioso. Casando rico tornar-se ha um apático (AI, p. 6-7).

Assim como Aurélia, Vera é abandonada porque o dote de Isabel Mendonça é muito maior. Entretanto, ao contrário da personagem de Alencar, Vera resigna-se e resolve ir morar na fazenda dos avós, embora seja cortejada por Dionísio cujas investidas ela descarta, uma vez que ele é casado:

– Ainda não chegou a hora. Repare que estamos sós. E sós estaremos toda a vida um em face do outro. O senhor é casado. Eu sou honesta. A nossa comédia seria, além de um crime, uma vergonha. Procure amar a sua esposa. eu procurarei resignar-me ao meu sofrimento (AI, p.11).
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O dote, durante muito tempo, foi um costume entre as famílias proprietárias que consistia em dotar as filhas, oferecendo-lhes, na maioria das vezes, casa, gado e escravos (índios) para que assim, com esses bens, elas pudessem estabelecer família própria. Com o dote, a mulher não só contribuía para o sustento do casal, como também deixava o marido em situação de devedor, ainda que a administração dos bens do casal ficasse sob a responsabilidade do marido. O dote era, portanto, elemento bastante significativo para o sustento do novo casal, além de ser um atrativo a mais das moças de família rica desejosas por casar. Quanto maior fosse o dote, mais pretendentes a moça poderia ter na bolsa de valores do mercado matrimonial. Esse era o caso de Maria Isabel, personagem de A isca, conhecida por ser muito rica. Por isso, seu pai um homem sensato e pacato, a advertia: “– Os pretendentes a dotes gordos surgem de todos os cantos, são os cogumelos da humanidade. Sê prudente e não te deixes cair no anzol sem mais nem menos ... ”(AI, p. 15-16).
Apesar dos conselhos do pai e da vigilância da tia Milu, Isabel Maria não ficou muito tempo longe do anzol do caçador de dotes Antonio Seixas. Eles se conheceram de relance durante uma temporada de verão em Petrópolis. Tornaram-se a encontrar em um dos saraus musicais realizados na casa da Silveirinha, nome de um personagem que dá título a um romance homônimo de Júlia Lopes. Nesse segundo encontro, a indiferença que marcara o primeiro cedera lugar a uma certa contemplação muito expressiva. Por essa época, Isabel estava comprometida com André Sales, de quem só sabemos essa informação, e Antonio Seixas era noivo de Vera Landim, boa pianista e bastante exímia em ciências naturais. A união de Isabel e Antonio parece demonstrar que o amor como estímulo para o casamento ocupou lugar de menor importância. O enlace deles representa bem os moldes das relações amorosas entre final dos oitocentos e limiar dos novecentos: do noivado, curto e que nem sempre sucedia ao namoro, seguia-se o casamento.
Antonio é-nos apresentado como um homem que se acostumara a hábitos de rico. Por isso, “uma preocupação qualquer, mais forte do que todos os deleites espirituais, lhe distraía o pensamento” (AI, p. 20). Antonio, inserido num grupo de pessoas cuja maior qualidade eram “os mesmos gostos dispersivos”, estava absorto “em duas coisas: o amor e o dinheiro”. Para manter os hábitos que criara e que lhe custavam caro, Antonio precisava fazer uma grande fortuna. Alternativa que lhe aparece mais vantajosa é casar-se “com uma mulher muito mais rica do que a Vera Landim” (AI, p. 21) e, assim, não fazer figura triste entre os amigos. Antonio, então, decide que a solução para aumentar os seus exíguos rendimentos estava no casamento com Isabel. Ressentia-se por não se casar com Vera; mas Isabel podia concretizar muito mais rápido os sonhos dele de luxo e ascensão social. Casando-se com ela, Antonio poderia desfrutar da influência política e econômica do sogro.
Homem para quem o amor é apenas um dos produtos de uma transação mercantil, Aas procura capturar a sua isca Lamdimma fazer uma grande fortuna.certa contemplaçmatromonial.ntonio Seixas procura capturar a sua isca. E, assim, aproveitando que era época de carnaval, num dos passeios a que foram, “Antonio sentou-se ao lado de Isabel e tocava de vez em quando com a dela a sua taça de Champagne. Depois ofereceu-lhe um cigarrinho. Ela fez uma careta, mas aceitou. Ele ria-se e ela já o tratava, embaralhadamente, por tu e por você... Dias depois estavam noivos” (AI, p. ). O que une Antonio a Isabel é, portanto, o interesse material e econômico dele. O interesse sentimental e afetivo mal começara a brotar, eles estavam de casamento marcado. O enlace matrimonial com a filha do rico industrial se afigura a Antonio como substancialmente vantajoso, como um negócio da China.
Como dote, ser-lhe-iam oferecidos duzentos contos (o dobro do que recebera Fernando Seixas, de Senhora) e uma casa, além de sociedade na fábrica do futuro sogro. Decepcionado, Antonio alegrou-se, entretanto, ao lembrar que Vera Landim não possuía dote sequer a oferecer a ele. Embora não fosse o esperado, Antonio ainda saíra lucrando: Isabel lhe traria, de uma só vez, fortuna e importância. Assim, mais para alimentar os seus hábitos de rico do que para comemorar o seu casamento, “Antonio julgou-se um príncipe e atirou-se para a ourivesaria a comprar a crédito diamantes e perolas para a noiva. Pagaria depois, com o dinheiro que ela trouxesse, mas teria desde logo o prazer de se mostrar generoso e de a ver lisonjeada...” (AI, p. 32).
Todavia, se rápida foi a fisgada de Antonio, mais rápida ainda foi a sua decepção com o casamento. Do que ele sonhara ao contrair compromisso com Isabel, restaram-lhe apenas os duzentos contos e a casa da rua Marquês de Abrantes. Tudo o mais fora dilapidado pelo sogro antes de morrer. O dote recebido era insuficiente, depois de tantos gastos, para cobrir as despesas que Antonio fizera, uma vez que ia ser genro de um grande industrial. Até mesmo tia Milu, que vivera sob a proteção do pai de Isabel e que devotara a sua vida à família dela, foi dispensada e se viu “como uma mosca numa teia, sem saber para que lado mover-se, para não cair de todo nas garras da miséria” (AI, p. 55).
Tia Milu representa o papel de mulher desprestigiada por ser solteira. Como o casamento se apresentava para as mulheres, na maioria das vezes, como a única possibilidade de carreira, “permanecer solteira, além de pouco atraente e financeiramente inviável na maioria das vezes, implicava um desprestígio para a mulher” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 83). Devido à situação de dependência econômica absoluta, Tia Milu era a criatura mais obediente e explorada da casa onde prestava os mais muito relevantes: consideração, respeitabilidade, comodidade, economia, vigilância de mãe, noites mal dormidas, os quais não eram suficientes para modificarem a sua condição de parente pobre que vive à custa de favores. Aliás, como bem notara Schwarz (2000), a prática do favor foi uma das marcas de nosso Brasil oitocentista foi a prática do favor, a qual condicionava a ascensão social e “, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais”. Apesar disso, a prática do favor era uma estratégia mediante a qual se alimentava a ilusão de que nenhuma das partes envolvidas era escrava da outra. Como afirma Schwarz (2000, p. 20), “Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecido nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma”. Isso se aplica muito bem à Tia Milu, cuja situação dentro da casa dos Mendonça se modificou após a morte do cunhado:

Milu sentia-se desconsiderada e arrependida. O seu luto, feito com tecidos baratos e cosido pelas suas próprias mãos, dava-lhe a impressão de atestar aos olhos de todo mundo a sua decadência. Do que se arrependia era de ter passado a maior parte da sua vida no período da grande energia, como parasita de uma casa rica, a gastar a sua atividade em vigilâncias que não lhe tinham deixado nenhuma compensação pessoal... (AI, p. 43).

Ainda assim, tia Milu não deixou de visitar Isabel em cujo comportamento ela começava a perceber algumas mudanças. Com a morte do pai, sem o dinheiro esperado que viria como herança, Isabel se inquietava com as dívidas vultosas que foram contraídas por Antonio e por ela. Entretanto, tia Milu percebia que as preocupações de Isabel não eram as contas a pagar, e, sim, Antonio. Ela sabia que ele se casara pensando no dote de Isabel. Por isso, soam irônicas as seguintes frases da tia dita à sobrinha::

– E o amor? Perguntou então tia Milu, com tão encoberta ironia, que a outra não compreendeu.
– Ele ama-me muito.
– Pois isso é tudo. Quando há amor, que importa o resto?
– Quem ama não come?
– Apenas para sustentar-se, se não tem para mais, e com isso se deve sentir satisfeito. Que melhor dote para um homem que ama, que possuir a escolhida do seu coração e vê-la assim tão perfeita, tão boazinha como tu és? O Antonio não se casou com o teu dinheiro; casou-se contigo, e deve considerar-se o homem mais feliz do mundo, porque tu és uma mulher encantadora. Deves dizer-lhe isto mesmo, quando ele desesperar (AI, p.47).

O leitor, pelo que já vem acompanhando ao alo da narrativa, perceberá que tudo o que Tia Milu está dizendo soa como irônico porque o que moveu o casamento de Antonio e de Isabel foi exatamente o fato de ele ver a futura esposa como capital simbólico imprescindível à ascensão social dele. Se no imaginário da época, o corpo feminino era o mercado por onde circulavam os bens da família, Isabel era esse corpo de que Antonio queria tornar posse. Para ele, o matrimônio era visto como um contrato de natureza político-sócio-econômica. Aliás, essa foi a forma sob a qual o casamento foi concebido anterior à ascensão burguesa. Só com o advento da burguesia, emerge, dentre outras coisas, o conceito de amor conjugal e, neste caso, casa-se não mais por interesses políticos, econômicos e sociais, mas por interesses do coração.
Entretanto, como o casamento não evitou o fantasma de uma demonstração pública de penúria, era preciso a Antonio vislumbrar outras saídas a fim de que não se pudesse chegar a esse tipo de humilhação. Por isso, a ele só restava usar o que de mais caro lhe havia: sua esposa Isabel. Esta deveria, usando das artimanhas femininas, conseguir, sob as orientações do próprio marido, um emprego para ele com o Sr. Ministro Dr. Jordão. Assim como muitas outras mulheres, além das atividades estritamente ligadas à casa, a Isabel foi delegada uma outra função: estimular e ajudar, com sua simples presença e demonstração de dotes físicos, o seu marido na conquista de êxitos. Isabel é, portanto, utilizada como instrumento para favorecer os interesses do marido, ou seja, como capital e como expressão do êxito comercial de Antonio a fim de conquistar uma boa posição social e econômica para ele. Isabel, assim como muitas outras mulheres, passou a ser a responsável pelo sucesso e bom êxito de Antonio, que se valeu da habilidade e da demonstração dos dotes femininos da esposa como elementos decisivos na sua elevação social. Dessa forma, assim como muitas outras personagens da ficção oitocentista, Isabel tem seu papel social redefinido. A ela não bastava a atuação apenas no seio da família. Era preciso atuar também em sociedade:

– O Dionísio pediu-me para entrar com eles numa grande negociata com uma empresa americana. Aceitei. Estamos só à espera de umas instruções de Nova York. Entretanto, não seria mau que eu fosse ocupar o tal lugar no ministério... Convém-me mesmo estar do lado de dentro, o que me facilitará depois qualquer manobra. Isto são minúcias que não vêm ao caso: o principal agora é conseguir que o Vasco me dê o lugar, e para isso preciso de ti.
– De mim?!
– Pois então? Que melhor advogado poderei ter do que a minha mulherzinha? (AI, p. 63).

Assim, para contribuir no projeto familiar de mobilidade social, Isabel precisa convencer o ministro a dar o cargo que interessava a Antonio, que manteria o seu prestígio social e que empurraria o status de sua família mais e mais para cima. Para tanto, Isabel é instruída pelo próprio marido. Ela precisa se vestir bem, fingir que partiu dela mesma a idéia de ter uma conversa com o ministro. Ardiloso, Antônio precisava dirigir muito bem a mulher para representar o papel que ele mesmo escrevera para ela. Para Isabel, “era a primeira vez que ela entrava em cena para representar um papel estudado: devia procurar modelo para as sua atitudes. E aquele parecia-lhe excelente”.
Dias depois, a nomeação de Antonio foi recebida com espanto pelos amigos que ficaram curiosos para saberem como ele conseguira um dos cargos mais importantes da secretaria do ministro Vasco cuja assiduidade à casa de Antonio e de Isabel deram por desconfiar, fazer suposições. De Isabel, só quem olhasse bem para os seus olhos é que “teria a impressão de que atrás deles flutuava a sombra de um segredo íntimo, muito pessoal. Esse mistério, esse não sei quê de intátil e sutil, como que a tornava mais mulher e mais interessante” (AI, p.76). Antonio, por sua vez, estava bastante “excitado pela onda grossa dos bons negócios, que se avolumavam diante de si, mal percebia o traço de fel que se ia pouco a pouco acentuando nos lábios, antes sempre doces, da sua Isabel” (AI, p. 76).
Passado o embevecimento da fortuna conquistada, Antonio se via em uma situação delicada: livra-se do Vasco, “de quem já não precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado” (AI, p.77
()precisava e cujas assiduidades junto da mulher começava a dar-lhe cuidado pouco a pouco acentuando nos l). Com receio de ter o seu nome arrastado na lama, Antonio repreende Isabel pelo excesso de confiança que ela estava dando ao Vasco:

– Bem sabes que esse [o Vasco] vem todos os dias.
– Bem sei, bem sei! Todos, todos os dias! A mim isso me parece demais. Bastou! apre, bastou! Já não o posso tolerar nem quero tornar a vê-lo em minha casa!
– Agora . . .?! Retorquiu-lhe a mulher com ironia.
– Agora e sempre!
– Mas por quê?
– Porque não quero que arrastem o meu nome pela lama das ruas, entendeste? Tu bem sabes por quê! As suas assiduidades nesta casa estão tomando um caráter de intimidade que me desagrada imensamente e podem ser comentadas lá fora de modo desairoso para ambos nós. Eu não admito que isso suceda; eu não admito, ouviste? E a culpa tem sido tua, que lhe dás confiança. (AI, p. 82).


E Isabel, numa das cenas mais interessantes e de maior força dramática da novela, exaspera-se com Antonio:

– Minha?
– Sim, tua.
[...]
– Não me faças perder a cabeça, não me faças perder a cabeça, repetiu ele, de punhos cerrados, apoplético e terrível. Supus ter casado com uma mulher honesta e afinal...
[...]
– E afinal, acaba!
– Que és tu? . . . dize!
– Ah! pois ignoravas? Eu sou a isca. Eu fui a isca ... e não tenho sido outra cousa desde que me conheceste, e deves saber disso muito melhor do que eu mesma, que não compreendi as cousas senão depois delas passadas e irremediáveis.
– Cala-te.
– Agora está dito. Serviu-te o meu dote; serviu-te a minha beleza. Estás rico, estás farto, não precisas de mais nada, podes zangar-te e defender a tua honra; mas a ingênua morreu e a outra mulher que existe dentro de mim, melhor é que a não provoques, para que te não diga verdades desagradáveis.
Antonio levantou as mãos e cresceu para a mulher, lívido de raiva.
– Bate, concluiu Isabel, sem se mover do lugar em que estava. (AI, p. 84).

Arrefecidos os ânimos, Antonio e Isabel foram passar um tempo no interior. Quando regressaram, o Vasco já não mais assistia no Rio. Ele, que já estava se aborrecendo com a “insaciável avidez de negócios lucrativos, de que [Antonio] andava sempre à caça”, havia casado com uma viúva e fora morar nos estados Unidos. Para Antonio, a distância do antigo “amigo” alimentou-lhe a esperança de um novo horizonte. As relações com Vasco eram coisas do passado e lá deviam ficar enterradas lá como ficaram os ressentimentos de Isabel e pelo esposo. O coração dela arrefecera e estava unido ao do esposo pela ternura que ambos estavam sentindo pelo filho que estava por nascer:

O bebê esperado enlaçara o coração arrefecido dos pais numa corrente de ternura. Tinham-se perdoado tudo; viviam dele, por ele, na esperança de sua graça, da sua perfeição, da sua beleza. Tudo o que ficara no passado estava bem enterrado; agora só olhavam para frente, onde o vulto do filhinho lhes aparecia de diversos modos, em diversas idades . . .
Foi quando a criancinha veio ao mundo e que lhe deram o nome de Antonia Isabel, para que no próprio nome eles estivessem nela reunidos [...] (AI, p. 87).


Com esse adorável epílogo, podemos tecer algumas considerações últimas.Assim como muitas outras obras escritas anteriormente à sua publicação, A isca trata do casamento como um contrato social e coloca o dinheiro no cerne da trama. Essas mesmas obras, em sua maioria, representam o amor como um bálsamo capaz de restaurar o caráter moral perdido e de vencer os interesses econômicos no casamento. Ao contrário dessas obras, A isca, entretanto, vem apresentar um outro lenitivo: a família. Ou melhor, A isca vem reforçar a importância do amor familiar.
Em nome dos laços familiares, e não mais dos sagrados laços do matrimônio, Antonio e Isabel deixam de lado as rusgas e os dissabores do passado. Essa nova família, alicerçada nos moldes burgueses, vem reconfigurar os papéis do homem e da mulher no ambiente privado. Instaura-se, a partir daí, uma outra reorganização das vivências familiares e domésticas: um sólido ambiente familiar, um lar acolhedor. Dentro desse novo molde familiar, se a mulher possuía instintivamente o amor aos filhos e estava naturalmente preparada para se dedicar a eles, o homem não era mais apenas o provedor do lar. Tornara-se o pai, o chefe da família cuja incumbência maior era zelar pela felicidade e bem-estar da esposa e dos filhos. Revestidos dessa nova função, Antonio e Isabel parecem ter encontrado a sua mais alta realização humana. E assim, com essa cena familiar, a narrativa encerra-se com sabor de happy end.

[1] A primeira parte do título do presente trabalho é retirada de um texto da prof. Dra. Elódia Xavier, o qual se encontra no livro Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino, de autoria da referida professora. Além disso, este texto foi escrito para uma aula ministrada durante o meu estágio docência. Por isso, ainda precisa passar por algumas alteraçoes que serão feitas posteriormente.

domingo, 31 de agosto de 2008

Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco: uma escrita bem comportada?

Júlia Lopes de Almeida

Carolina Nabuco com seus irmãos e sua mãe


ESCREVER v.t.d. 1 representar por sinais gráficos (pensamentos, idéia etc.); redigir 2 riscar sobre uma superfície (palavras, frases, letras, caracteres etc.) 3 inscrever, gravar 4 B infrm. aplicar multa a (infrator de trânsito) t.d. e int. 5 criar (obra escrita); compor, redigir (e. um romance) (e. diariamente para o jornal) t.i. e t.d.i 6 (prep. a, para) enviar (carta, bilhete etc.).
Visto meramente como uma palavra em estado de dicionário, não nos apercebemos dos outros matizes de que se reveste este ou aquele verbete. Dicionarizada, a palavra pode nos apresentar as suas “essências”, mas deixa de nos passar outros efeitos que ela adquire quando posta em ação. Escrever, verbete que abre o presente texto, bem mais do que as acepções apresentadas, quando conjugado, quando posto em ação, quando mergulhado na intrigante rede ideológica que tece a sociedade em que vivemos, é, inevitavelmente, um ato político e ideológico por meio do qual aquele que escreve vai, sobretudo, se inscrevendo, imprimindo a sua marca, por mais indelével que seja, naquilo que escreve. Jean Genet, escritor francês, definiu muito bem o ato de escrever da seguinte forma:

A página que no início era branca, agora está cruzada de alto a baixo por minúsculos sinais negros, as letras, as palavras, as vírgulas, os pontos de exclamação, e é graças a eles que se diz que esta página é legível. Contudo, há uma espécie de inquietação do espírito, há essa vontade de vomitar muito próxima da náusea, há uma oscilação que me faz hesitar em escrever... seria a realidade esta totalidade de sinais negros? O branco, aqui, é um artifício que substitui a translucidez do pergaminho, o ocre marcado dos tabletes de argila, mas este ocre em relevo, como a translucidez e o branco, talvez tenha uma realidade mais forte que os sinais que o desfiguram.


Como estávamos dizendo, cristalizada nas páginas de um dicionário, a palavra perde “uma realidade mais forte”; escapa-lhe, portanto, essa “inquietação do espírito”, “essa vontade de vomitar próxima da náusea”. Essas realidades nos fazem, apropriando-nos ainda das palavras de Jean Genet, hesitar em escrever. Agora, pensemos nas escritoras do passado. Pensemos no quanto elas hesitaram em escrever e no quanto escrever pode ter-lhes sido nauseante. Para elas, escrever era muito mais do que representar (e representar o quê?) por sinais gráficos, era muito mais do que gravar, redigir. Escrever era uma luta por algo que lhes era amiúde negado: o poder de, pela escrita, dizer que eram, conhecerem-se a si mesmas e reconhecerem-se no Outro, ainda que esse Outro fossem elas mesmas.
E por que será que o “simples” ato de escrever era negado às mulheres? Primeiro, escrever pressupõe, no mínimo, saber dar contorno à tinta e fazê-la, portanto, assumir a forma de determinados caracteres no branco do papel. Temendo, talvez, que as mulheres (se) sujassem (n)as (im)purezas do branco, a elas era “concedido” o direito de não poderem escrever. Em decorrência disso, eis o segundo motivo por que a escrita, durante muito tempo, se apresentou às mulheres como um território selvagem, escrever era coisa de homem. As mulheres tinham atividades mais importantes com que se preocupar. Para que querer conjugar o verbo escrever se os homens já o faziam em seu lugar e se elas tinham outros verbos mais interessantes a conjugar: agradar, obedecer, calar, casar, parir, resignar-se...?
Dessa forma, tornar a escrita uma prática efetiva foi um exercício bastante doloroso para “o belo sexo”. Como escrever, se até então essa era uma atividade eminentemente masculina? Por outro lado, mesmo sabendo exercitar a escrita, escrever sobre o quê, se se deveria escrever sobre grandes feitos? E de que grandes feitos as mulheres haviam participado? Diante disso, escrever foi, antes de tudo, não só um exercício de descoberta de si, mas também um doloroso exercício de penetração num mundo onde ser mulher era ficar às margens das ações que estavam acontecendo, era trilhar por mares nunca dantes navegados porque os mapas estavam (ou eram escritos por) com os homens, era ser aspirante a coadjuvante em enredos escritos por homens e para homens. Sendo assim, como se tornar visível nesse mundo, sem ser vista como uma intrusa? Como manejar a pena, objeto fálico, para dela poder gozar daquilo que só aos homens era dado conhecer?
Diante de mais essa dificuldade, ou seja, sobre o que escrever, muitas mulheres, quando começaram a adentrar no universo da escrita, passaram a falar daquilo a que elas estavam mais próximas: o espaço privado, onde, assim como muitas das personagens que passaram a construir, permaneceram fechadas em casas e sobrados, mocambos e senzalas, espaços construídos por seus pais, maridos, senhores. Dentro desse universo do privado, essas mulheres falaram, sobretudo, dos laços familiares. A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”. Por isso, são recorrentes nessas produções temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordavam nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública e competiam apenas aos homens. Entretanto, mesmo falando sobre assuntos aparentemente inocentes, essas mulheres estavam, para lembrar os versos de Júlia Cortines que servem como epígrafe a este trabalho, levantando a pálpebra, atendendo ao imperativo de falar, de deixar abrir a boca há muito emudecida e trazer à tona segredos guardados entre palavras até então inauditas.
Noutras palavras, na busca por vista e por voz, as mulheres, ao escreverem sobre aquilo a que estavam próximas, foram, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Assim, não deveria nos causar estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e delineados pela arquitetura masculina, as mulheres tenham escolhido justamente esses espaços para falarem, dizerem que eram, são e foram.
Nesse sentido, dentre essas mulheres que ousaram fazer da pena instrumento de expressão de sua intelectualidade e de construção de aspectos de nosso imaginário, podemos citar Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Carolina Nabuco de Araújo (1890-1981), cuja trajetória de vida se confunde muito mais do que se separa. Pertencentes à elite do país, uma era filha de um Visconde e a outra de um deputado do Império, elas foram mulheres que se assemelham por terem percorrido um difícil caminho na busca por se firmarem como escritoras, processo esse em que contaram com a ajuda dos pais e do marido, no caso de Júlia Lopes de Almeida, pois Carolina Nabuco, vivendo na casa da Rua Marquês do Botafogo, no Rio de Janeiro, nunca chegou a se casar.
Parece que elas se assemelham também por terem, desde cedo, sentido a inclinação para a escrita. Se isso foi, a princípio, angustiante para Júlia Lopes de Almeida, que, ao escrever seus versos, se sentia como se estivesse cometendo um grande crime; escrever para Carolina Nabuco foi um sonho acalentado desde muito cedo, sem que com ele viesse o receio por estar fazendo uma atividade proibida ou o desejo pelo sucesso que viria alcançar com a publicação de uma valiosa obra como romancista, memorialista e biógrafa.
No plano da ficção, mais convergindo do que propriamente divergindo, tanto Júlia Lopes de Almeida quanto Carolina Nabuco escreveram uma obra marcada pela valorização do cotidiano das prendas domésticas e pela reduplicação dos valores tradicionais e pela imitação dos modelos da cultura dominante. Esse último aspecto faz-nos pensar que essas autoras exerceram o que estamos chamando de uma escrita bem comportada. Falar desse tipo de escrita implica dizer que, opondo-se a ela, existe também uma escrita mal comportada? Não enfrentemos, por ora, essa ferida. Atenhamos apenas ao que estamos chamando de escrita bem comportada, ou seja, um tipo de escrita cuja composição, temas e estrutura não se opõem ao que já vinham, em termos literários, sendo feito e era tomado como modelo aceito. Esse tipo de escrita dá forma a um conjunto de obras cujos temas e enredos não buscam, na fatura dos textos, nenhuma ruptura e, por isso, apresentam um esquema bem comportado de escritura, o qual se repete de uma escritora para a outra.
Além disso, os temas abordados por essas escritoras também podem ser vistos como bem comportados, já que reiteram os valores patriarcais vigentes à época. Entretanto, a análise do valor dessas escritoras a partir dos temas recorrentes na prosa delas deve ser algo feito com certo cuidado. Vivendo entre as paredes da casa, adornadas como o anjo do lar ou coroadas como rainhas, a essas autoras resta escrever sobre o quê? Como abordar temas que transcendessem as treliças do lar, se este era o ponto de partida e de chegada para muitas dessas nossas bandeirantes das letras? Se precisavam escrever para, conforme versos de Beatriz Francisca de Assis Brandão, poetisa mineira do século XVIII, trazer à tona “raros dotes [que] talvez vivem ocultos/que o receio de expor faz ignorados”, por que não escrever sobre o angustiante exercício de “lavar pratos e enxugar prantos todos os dias”? Pois bem, foi escrevendo sobre essa líquida rotina que as mulheres, em sua maioria, começaram a se inscrever no difícil, porque masculino, mundo da escrita. Isso não quer dizer que elas só tenham falado da casa e dos afazeres domésticos. Inúmeras foram as mulheres que escreveram sobre outros temas que iam de reflexões políticas até perquirições filosóficas.
Ademais, o olhar voltado à obra dessas autoras não deve procurar cobras delas aquilo que, social-cultural e historicamente, não podia ser ofertado a elas. Exigir-lhes uma ruptura com uma ordem dentro da qual e para a qual elas haviam sido educadas ou exigir-lhes a produção de uma obra que já nascesse sem nenhum senão estético é um tanto quanto descabido. Além disso, a própria categoria de estético deve ser (re)pensada, uma vez que ela foi criada para aferir a qualidade de textos escritos, em sua maioria, por homens. Sendo assim, será que esta categoria é válida para ser aplicada aos textos de autoria feminina de séculos anteriores ao nosso?
Ao pensarmos assim, não estamos querendo ser condescendentes com essas autoras; mas também, por outro lado, estamos querendo (re)lembrar que a nossa análise não pode deixar de lado as condições e as injunções sob as quais essas autoras produziram seus escritos. Essa postura procura reconhecer a importância dessas escritoras na constituição de uma tradição literária feminina em nossa história, principalmente por desbravarem caminhos para outras autoras que lhes vieram na esteira e que, uma vez sedimentadas determinadas condições, puderam romper com a ordem estabelecida e, na busca por inclusão em novos espaços sociais, intentaram alterar as relações de gênero.
Como aponta Schmidit (2007, p.123), ao estudar a poesia de Delfina Benigna da Cunha, querer cobrar de uma obra o que ela, devido a determinados condicionantes histórico-estéticos, “não pode oferecer, é uma questão no mínimo polêmica, que deve ser colocada em pauta no quadro do revisionismo crítico da literatura produzida por mulheres e da própria história literária”. Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco, considerando-se o que dissemos em parágrafos anteriores, produziram uma obra bem comportada. Falaram do cotidiano das lides domésticas e de mulheres presas a esse cotidiano. Todavia, apesar de terem produzido uma obra bem comportada, essas escritoras não podem ter o seu valor diminuído. Sua obra reflete um período interessante de nossa sociedade, principalmente no que tange à condição feminina, e, como tal, é produto dessa sociedade, a qual não oferecia a essas escritoras as condições para outro tipo de escrita tampouco para outros temas. Elas, portanto, sofreram, em seu trabalho nas letras, do mal da época. Entretanto, devemos verificar, dentro da moldura do tempo, o esforço dessas mulheres que, herdeiras de uma tradição de séculos de silenciamento, procuraram fazer da escrita um meio de obter vista e voz.

Maria das Águas - Lúcio Lins


eu sou
Maria das Águas
nome e fado
que a mim
me foram dados
pelo movimento
dos barcos

eu sou
Maria das Águas
desde Maria menina
quando só Maria
e ainda
pelo mangue
sob os céus
brincava
de transportar nuvens
em barcos de papel

dos meus
nada sei
salvo o talvez
tenham ido
nos barcos de antes

e tenho
uma vaga
na lembrança
que ainda de laços
sargaços e transas
já tentava esse mar
sem ser de mãos dadas

a cada maré
que vinha
Maria eu ia
tomando corpo
e o cais
tomando gosto
pelos prazeres Maria
que ao porto
fui servindo
antes do vinho
da primeira sangria

e foram tantos
quantos os barcos

que a mim
me chegaram
com suas almas
nos mastros hasteados

e foram tantos
quantos os barcos
que em mim
me deixaram
sem velas
e com enjôo dos mares

me chegavam
com suas falas
diferentes
com seus falos
urgentes
e me vestiam
a rigor
para suas fantasias

eu me despia
eu me vestia
eu me trocava
(enquanto suas mãos
em meu corpo
faziam cruzeiros
eu contava estrelas)

onde sou lodo
fui veludo
leito de tantos
deleites
pelos quatro
cantos do porto
para os quatro
cantos do mundo

confesso que vivi
confesso que bebi
goles e goles
de mar
até o mar derradeiro
ate saber-me sozinha
até beber-me Maria
garrafa sem mensagem

de mim
todos os barcos

já partiram
e eu sou só ruínas
de um corpo antigo
onde marujos
saciaram suas sedes
aos beijos
do gargalo
de minha boca

resta
em mim
o que esqueceram
em mim

as marcas
de mastros e dentes
a ferrugem
das âncoras tatuadas
um iceberg
no copo d’água
e o endereço de um mar

veio de mim
esse mar
que hoje bebo

veio de mim
esse mar
de amar sobejo

veio de mim
ser Maria
Maria das Águas

Maria que canto
encontro
de sede e água

e quando rio
eu rio doce
arco-íris nos lábios

Maria que canto
com os olhos
que olhos d’água

e quando rio
eu rio doce
orvalho na lágrima

Era um rato - Resposta a Augusto R.

Era um rato que procurava fugir.
Sabia que, em cada esquina,
à sua espreita, uma sombra o seguia.
Podia ouvir os seus ruídos.
Ela se tornava mais densa.
Desse enorme gato,
Se esquivava o rato.
O que ele queria, no entanto,
Era se esquivar
Da mais lancinante lição:
Aprender a trocar de queijo.

sábado, 30 de agosto de 2008

Depois de escrita a primeira obra,
o pior para um escritor é conviver
com a expectativa, alimentada pelos leitores,
de uma outra obra que ele, o escritor, saber
que nunca virá.
Ah, minha dona, pediste a este teu servo
o que para ele é impossível: (ins)escrever-te
Como, entre palavras, condensar o teu retrato?
Obediente, ensaiei alguns versos rotos,
que foram, de chofre, rasgados.
Procurei pedir ajuda a Poesia,
mas ela, com inveja de tua beleza,
escreveu um enorme NÃO.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Tornou-se leitor a fim de
encontrar, em cada livro lido,
a chave do mundo
de onde partira
e
nunca mais regressara.

sábado, 23 de agosto de 2008

Hoje, chegou até mim e disse:
- Sabes quando eu te ligava e tu nem me atendias,
Sabes quando eu te presenteava e tu deixavas os presentes de lado.
Sabes ... e foi elencando um rol de coisas que eu sabia e das quais fiz pouco caso.
Até que veio o arremate final:
Pois é (eu nem imaginava o quanto essas palavras me feririam), não é que
de repente, não mais que de repente, eu aprendi com a sua indiferença.
Hoje, vivo às sobras do que restou daqueles presentes, ansiando por uma ligação no telefone que há muito emudeceu.
Do meu professor de filosofia,
recebi, ontem, a nota final: zero.
Perguntei por quê.
Ele me respondeu que não podia
aprovar um aluno que se recusava
a aceitar duas coisas:
Viver é mais doloroso do que morrer;
e pensar dói, esgarça a alma.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Entre viver e existir
medeia a dor
que ata os farrapos
soltos do meu ser
e que é abafada
pelo riso acre a enganar
quem olha para minha face.

Queria apenas alguém
que me ouvisse
que me conduzisse
na difícil trajetória que é viver.
Na falta dessa pessoa, tive
de aprender o quanto é dificil tentar
a mim mesmo me bastar.

Obs: dentre pouco tempo, esses rabiscos
irão ser apagados, assim como, traço a traço, uso o lápis com tinta de Letes para apagar-me.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Variações do Trágico em Carolina Nabuco



Marcelo Medeiros da Silva (UFPB)



INTRODUÇÃO


Escrita e saber estiveram, durante muito tempo, ainda, talvez, continuem, relacionadas ao poder e foram, por muito tempo, usados como formas de dominação e de exclusão de determinadas vozes que intentassem ecoar algum som em meio ao silêncio que era imposto para que se mantivesse a ordem social em uma sociedade de base falocêntrica, patriarcal, machista e sexista. Mesmo assim, o discurso hegemônico do patriarcalismo não conseguiu abafar determinadas vozes, principalmente de algumas mulheres que não estavam contentes em serem rotuladas de o segundo sexo e que, por isso, se negaram à subordinação.
Por causa, dentre outros fatores, das tentativas de subversão à ordem do pai, a integração de mulheres/escritoras ao universo da escrita foi marcada por uma trajetória bastante dolorosa, principalmente porque escrita e saber, além de serem usados como forma de dominação "ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até mesmo sentimentos esperados em determinadas situações" (TELLES, 2002, p. 402), eram tidas como ferramentas exclusivas do espaço masculino. Por isso, durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação.
Dentro do cenário literário, a escrita produzida por mulheres teve – e continua tendo – de conviver com uma política de ocultamento que trouxe conseqüências quase que irreparáveis. Muitas foram as mulheres que, embora com a pena em riste, não puderam se expressar e tiveram sua obra, sua intelectualidade assujeitadas ao Outro, o sujeito masculino. Por isso, persiste a necessidade de estudos que possam, segundo Schneider (2000), reconstruir a história literária produzida por mulheres, pondo em evidência o percurso, as dificuldades, os temores, as estratégias para romper o confinamento em que viviam e, ao mesmo tempo, promover a revalorização dessa literatura que no passado não recebeu devida atenção.
Nesse sentido, é preciso estudar os textos não-canônicos para que a história das mulheres e a de sua produção literária possam ser reconstruídas, o que pode transformar a visão tradicional da própria história literária a fim de que esta passe a levar em conta a produção literária de mulheres que, em meio às pressões de uma sociedade patriarcal, falocêntrica, sexista e machista, ousaram fazer da pena bandeira de luta, ainda que tenham, em seus escritos, registrado ou até mesmo sucumbido aos preconceitos dessa sociedade.
Esperamos estar, portanto, contribuindo para dar visibilidade às numerosas autoras que não figuraram nas histórias literárias brasileiras da época nem nas posteriores e, assim, trazer à tona uma memória literária feminina na literatura brasileira que vem sendo negligenciada ao longo dos séculos (CUNHA, 2001; MOREIRA, 2006). O regaste de produções femininas é importante porque, por um lado, permite-nos a recuperação de uma identidade feminina há muito silenciada e, por outro lado, permite:
o desenvolvimento de uma arqueologia literária que resgatasse os trabalhos das mulheres, que de diversas formas foram silenciados ou excluídos da história da literatura. Neste sentido, engaja-se no trabalho de recuperação de uma ‘identidade feminina’ que aponte para as diversas formas de sua experiência, rejeitando, enfaticamente, a repetição e reprodução dos pressupostos mitológicos da crítica literária tradicional, que, via de regra, identifica a escrita feminina com a "sensibilidade contemplativa", a "linguagem imaginativa" etc., bem como as diversas formas como a biologia, a lingüística e a psicanálise vêm definindo a especificidade da linguagem feminina (HOLLANDA, 1994, 3).
De acordo com Carvalho (2001), resgatar textos de escritoras, produzidos em períodos anteriores aos movimentos sociais da década de 60 do século passado, é, dentre outros aspectos, uma rara oportunidade de trazer a lume a produção intelectual de todo um grupo social marginalizado pela cultura patriarcal hegemônica para a qual as mulheres, não sendo capazes de construir e elaborar aspectos de nosso imaginário social, já que estas eram uma tarefa masculina, deveriam preocupar-se apenas com as prendas domésticas, visto que o lar era sobretudo o espaço de confinamento para muitas mulheres que eram incorporadas e consolidadas ao marido ou ao pai.
Na empresa de resgate de textos de autoria feminina e de construção de uma memória literária feminina brasileira, este artigo aborda a presença do trágico em dois contos da escritora fluminense Carolina Nabuco: "A pérola rosada" e "O viúvo", respectivamente. Para tanto, dividimos o presente texto em duas partes. Na primeira, construímos a biografia da escritora Carolina Nabuco ao mesmo tempo em que tecemos algumas considerações gerais sobre a sua obra que compreende romances, biografias, contos e ensaio. Na segunda parte, analisamos, nos dois contos presentes no livro O ladrão de guarda-chuva e outros dez contos (1969), os resquícios do trágico, ou seja, resquícios da suplantação da vontade individual pelo destino, categoria importante na compreensão de boa parte dos contos que compõem a referida obra.

Carolina Nabuco: esboços de uma fortuna crítica


Romancista, memorialista, biógrafa e mulher de grande cultura, Carolina Nabuco nasceu em 1890 e faleceu em 1981. Filha de Joaquim Nabuco, escritor e senador do império, a cujo nome sempre esteve atrelada como se fosse uma sombra do próprio pai, Carolina Nabuco, segundo Schumaher e Brasil (2000), consagrou-se por possuir um estilo simples e erudito, rico e profundo em conteúdo.
A respeito da obra de Carolina Nabuco Gabriela Mistral escreveu, na orelha do livro O ladrão de guarda-chuvas e dez contos (1969), que:
Poças veces me acarreó tanta alegria um escritor no metafórico ni lírico. Me parece que usted sea el novelista por excelência que hace solamente lo suyo sin recurrir a los géneros colaterales, para dar a um texto más valor o volverlo más convincente. Como usted, igualmente permeado de experiencia humana e igualmente limpio de recursos extraños, escribía sus novelas don Miguel de Unamuno, el español, y me lo recuerda usted también en su saturatón racial.
Ao falar da história de seus livros, Carolina Nabuco afirmou que sua vocação pelas letras despontou assim que aprendeu a ler e a escrever. Ela atribui isso à influência do pai, Joaquim Nabuco, "que sempre via com a pena à mão". Além disso, confessa em Oito décadas, livro de memórias que integra o seu acervo literário, que "entre os vários gêneros literários que tentei nenhum me atraía como o da ficção. Nos meus anos de adolescência, na primeira década do século, quando não existiam ainda nem cinema nem televisão, a juventude tinha de se satisfazer com a leitura de obras de ficção" (NABUCO, 2000, p. 264).
Esse seu desejo pela leitura de obras de ficção fomentou um outro: o de escrever obra de ficção. Nessa empresa, Carolina Nabuco empreendeu algumas tentativas vãs, como ela mesma recorda:
Aos quinze anos tentei publicar numa dessas revistas um conto que foi rejeitado. Animaram-me, porém, a continuar. Outro que escrevi mais tarde foi igualmente rejeitado.
[...]
Fiz nova tentativa, num concurso com bons prêmios, aberto pelo Jornal do Brasil. Meu querido amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade fazia parte da banca de julgamento. Sabia que eu concorrera e tinha muita vontade de me adivinhar entre os autores, mas nem ele, nem ninguém, adivinhou, e meu conto perdeu-se no monte dos rejeitados (NABUCO, 2000, p. 265).
Apesar dos insucessos de início, Carolina Nabuco alimentava o desejo de se tornar escritora. Esta era, conforme afirma em Oito décadas, a sua mais cara ambição de menina, embora reconhecesse que ainda lhe faltavam "experiência e técnica para fazer coisa prestável":
Só desistirei de ambições literárias se verificar que não tenho mesmo talento. Sei que meu cérebro, terreno inculto, é pelo menos boa terra, fértil em duas gerações. Só depois de trabalhar para me armar de um bom estilo, poderei dizer, se tudo for debalde, que não há ouro (NABUCO, 2000, p. 99).
Por isso, ela continuava, na busca pela experiência e técnica, escrevendo, primeiro em inglês e francês, línguas em que fizera seus estudos, e, depois da morte do pai, em português. Essas suas primeiras investidas literárias eram todas narrativas curtas com as quais não pensava em ganhar destaque:
Não pensava em publicar esses escritos, nem me animava a ver meu nome sair em letras de fôrma. Essas primeiras tentativas foram feitas em geral concorrendo para concursos de jornal. Ganhei o prêmio num desses e o conto foi publicado em O Jornal, que pertencia ainda a Renato Lopes, o fundador (sendo adquirido, depois, por Assis Chateaubriand para ser o elo inicial dos "Diários Associados"). O outro conto que mandei para um concurso, promovido não me lembro mais em que jornal, não só não ganhou nenhum dos três prêmios, como tive o dissabor de ouvir as seguintes palavras de Osório Duque Estrada, responsável pelo concurso: "Os demais concorrentes não têm aptidão para as letras" (NABUCO, 2000, p. 265).
Para Carolina Nabuco, só pertenciam à classe de obras de arte, ou seja, à verdadeira literatura, a poesia e a ficção. Por isso, "quando eu contemplava a possibilidade de me tornar escritora [...], desejava infinitamente mais aparecer como romancista do que como historiadora ou ensaísta" (NABUCO, 2000, p. 266). Entretanto, a sua estréia no campo das letras deu-se com o lançamento de uma biografia: A vida de Joaquim Nabuco (1929). Esta que é considerada por sua própria autora o seu livro e que lhe consumiu oito longos anos de intenso labor:
É "meu livro" porque foi durante muitos anos o único; o primeiro que escrevi e que já vivia em mim desde muito tempo. Nunca tive dúvida de que seria o volume mais importante de minha pobre bagagem literária, o mais necessário de ser escrito, para mim e para a divulgação de fatos ainda esparsos sobre Joaquim Nabuco (NABUCO, 2000, p. 266-267).
A vida de Joaquim Nabuco, conforme afirmam Schumaher e Brasil (2000), fez com que o poeta Alberto de Oliveira liderasse um movimento para que Carolina Nabuco fosse eleita para a Academia Brasileira de Letras. No entanto, a escritora, "considerando que a academia, nos termos do estatuto, era reservada apenas a escritores, não aceitou o convite formalizado pelo poeta" (SCHUMAHER e BRAZIL, 2000, p. 141). Após o lançamento de A vida de Joaquim Nabuco, que foi, à época, um êxito de livraria, pois foram vendidos, em duas edições, mais de quatro mil exemplares, vieram somar a essa pobre "bagagem literária", palavras de Carolina Nabuco, outros livros que não biografias: A sucessora (1934) e Chama e cinzas (1947).
Sobre a gênese do primeiro, a sua autora afirmou que ele, inicialmente, foi planejado como um conto que se chamaria "O retrato da primeira esposa", mas que, aos poucos, foi crescendo até se tornar o romance A sucessora, cujo enredo, à época, parecia, segundo a própria escritora, novo:
[...] A sucessora é apenas a história de uma obsessão, a da esposa pela morta. Contei um caso mais psicológico que real. [...]a minha heroinazinha, Marina, deseja que aparecessem manchas na imagem imaculada da morta; que Rebecca houvesse sido infiel, adúltera; e desejava, também, através de todo o livro, que o fogo destruísse o lar que fora da outra e ao qual ela não conseguia adaptar-se (NABUCO, 2000, p. 269).
Apesar da boa recepção da crítica que lhe tecera alguns artigos elogiosos, A sucessora só alcançou "boa venda alguns anos mais tarde e por um motivo incidental": sua semelhança com o romance mais falado na época – Rebecca, da escritora inglesa Daphene du Marier. Este livro alcançou um sucesso mundial quase sem precedentes e serviu como inspiração para um filme magistral: Rebecca, de Alfred Hitchock. Para muitos, Carolina Nabuco havia sido plagiada pela escritora inglesa. Sobre este aspecto, a escritora brasileira escreveu nas páginas de Oito décadas:
Eu havia traduzido o livro para o inglês com esperança de vê-lo editado nos estados Unidos. Esta tradução foi oferecida – sem êxito – a várias editoras por uma agência literária de Nova York, a quem confiei o manuscrito para esse fim, mediante contrato. Eu havia pedido a esse literary agent que tentasse também encontrar-me um editor na Inglaterra. Logo que li Rebecca e me inteirei do caso, escrevi a esse agente perguntando se havia atendido ao meu pedido de encontrar um editor em Londres. Respondeu-me que não. Pouco depois, porém, apareceu um artigo no New York Times Book Review, ressaltando as coincidências existentes entre Rebecca e A sucessora, e o agente então (não creio que no mesmo dia) apressou-se em me escrever que, de fato, mandara meu romance a seu correspondente inglês, cujo nome me comunicou. Rebecca vendeu-se literalmente aos milhões; foi traduzido em muitas línguas e depois explorado num magnífico filme. Embora muitos me aconselhassem iniciar processo, eu fiquei plenamente satisfeita em ver o plágio ser geralmente proclamado pelos que haviam lido os dois livros. Eu fora talvez a primeira pessoa avisada. O informante foi meu amigo Bob Winans, um dos raros a quem eu havia mostrado os originais e que lera Rebecca no primeiro momento de sua publicação. Tive a princípio um grande desgosto, mas veio a convicção de que houve realmente plágio. O fato alcançou tal repercussão no Brasil, que me consolei perfeitamente e não cogitei de processo. Coisas desse gênero são, alias, extremamente difíceis de levar a bom termo. Quando o filme Rebecca chegou ao Brasil, o advogado de seus produtores (United Artists), doutor Alberto Torres Filho, procurou meu advogado, Bartolomeu Anacleto, para pedir-lhe que eu me prestasse a assinar um documento admitindo a possibilidade de ter havido mera coincidência. Se me prestasse a isso, eu seria compensada com uma quantia que o doutor Torres qualificou como "de ordem patrimonial". Não anuí, naturalmente (NABUCO, 2000, p. 140-141).
Esta citação retifica um equívoco presente em Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (1711–2001), de Nelly Novaes Coelho, no qual está escrito que Carolina Nabuco processou judicialmente a escritora inglesa, acusando-a de plágio. Como se vê pela citação acima, o plágio existiu realmente, mas o processo não. Álvaro Lins, crítico brasileiro que provou a existência do plágio, afirmou: "A sucessora e Rebecca são duas obras semelhantes como não creio que se possam encontrar outras em toda a história das literaturas" (NABUCO, 2000, p. 270). Entretanto, Carolina Nabuco não deixou de ver o seu livro chegar às telas não do cinema, mas da televisão. A sucessora, anos mais tarde, ganhou uma versão para a TV, numa telenovela da rede Globo.
Após a publicação deste seu primeiro romance, Carolina Nabuco lançou um outro: Chama e cinzas. Este, talvez, o mais difícil de ter sido escrito, porque faltava à sua autora substância: "Fui reunindo fragmentos de diálogos e títulos de capítulos, mas essas notas não passavam de lascas espalhadas. Lutava com uma grande falta de detalhes" (NABUCO, 2000, p. 142). Em Oito décadas, Carolina Nabuco registra, da seguinte forma, a maneira como havia trabalhado na elaboração de Chama e cinzas:
Estou tecendo o enredo do meu futuro romance ainda sem título. O primeiro personagem que ideei e ao qual já estou me afeiçoando é o de um banqueiro e homem de negócios de meia-idade. Sua vida financeira e industrial está me saindo parecida com a do barão de Mauá e a de Percival Farquhar, o arrojado americano que conheci lutando em vão junto do governo Bernardes para, com os milhões americanos de que dispunha, estabelecer a indústria metalúrgica que engrandeceria o Brasil. Não deixarei meu personagem, o Rabelo, lutar em vão.
Há muito tempo que elaborei o ambiente de família que aparece na primeira parte e que tracei o arcabouço dos últimos capítulos, cujo eixo é a ida forçada de Nica ao banquete, deixando o marido moribundo.
Estes pontos não constituem ainda enredo. Quero uma rivalidade de amor entre as duas irmãs, mas os personagens masculinos ainda estão obscuros. Fiz pelo menos doze esquemas de enredo, para fixar os personagens Fernando e Evaristo. Enveredei por vários caminhos falsos, rasgando muitas páginas. Li a mamãe o rascunho. Li-o depois a João de Azevedo Macedo, operado da vista, a quem fui fazer companhia várias tardes. Recebi dele algumas sugestões, outras de Mariana, que bateu duas cópias na máquina, outras de Jim Chermont, que foi o primeiro leitor do original já mais ou menos terminado, todas as sugestões foram ótimas (NABUCO, 2000, p. 143).
A respeito desses dois romances, escritos num período em que estava em plena ascensão o romance nordestino regionalista, escreveu, na contra-capa de Chama e cinzas, Manoel Carlos, novelista de televisão brasileiro:
Quando escolhi o romance A SUCESSORA, de dona Carolina Nabuco, para nele me inspirar e escrever uma história de 126 capítulos, para a televisão, já contava com o seu sucesso. Nada mais fácil do que sentir, lendo o romance, a força de suas personagens, a trama coerente e bem elaborada, a firmeza de cada um dos "ganchos", ingredientes perfeitos e indispensáveis a uma novela. Mas com a SUCESSORA eu tinha ainda mais: tinha qualidade literária, aprofundamento psicológico, com algumas questões, inclusive, levantadas pela primeira vez na literatura urbana brasileira, à época em que o romance foi escrito.
Agora estou diante de CHAMA E CINZAS, escrito 12 anos depois do primeiro, e percebo que estou novamente diante de uma história carregada de emoções fortes [...]. Poucos escritores brasileiros sabem, tão bem como Dona Carolina, incorporar o leitor aos seus cenários, fazendo-o circular entre as personagens e participar de suas vidas e emoções cotidianas. CHAMA e CINZAS reaparece nas livrarias muito oportunamente, uma vez que continuamos carentes de romances bons e, ao mesmo tempo, acessíveis ao leitor comum, que gosta de ler (como é hábito dizer) "da primeira à última página, sem conseguir parar". Estes romances que rareiam na nossa literatura são os romances fascinantes, empolgantes, vertiginosos. Assim é CHAMA E CINZAS de Dona Carolina Nabuco (grifos meus).
Segundo Coelho (2002, p. 110), estas obras, dentro do contexto da literatura da época, expressam "os primeiros esforços da mulher no sentido de questionar sua verdadeira posição na sociedade moderna". Apesar de estas obras, como afirma a referida autora, apresentarem todos os preconceitos que estão na base da sociedade tradicional, elas são importantes porque refletem atitudes, tendências ou ideais que expressam bem o processo de modernização no Brasil da década de 30 e 40.
Simultaneamente à composição de seu segundo romance, Carolina Nabuco desviou-se um pouco e escreveu um livro de instrução religiosa, Catecismo historiado – doutrina cristã para primeira comunhão (1940), e mais duas biografias: A vida de Virgílio de Melo Franco (1962) e Santa Catarina de Sena (1957). Estes dois últimos livros "nasceram de uma resolução súbita de minha parte, resultante, em ambos os casos, de uma emoção que me pôs logo a pena à mão, deixando por algum tempo o romance em que eu trabalhava" (NABUCO, 2000, p. 270).
A respeito dos motivos que a levaram a escrever a biografia sobre Santa Catarina de Sena, Carolina Nabuco afirma que não foi o fato de ser católica, mas, sim, o fato de Santa Catarina de Sena ter sido uma mulher que seria extraordinária mesmo que não fosse santa. Essa admiração por esta santa poderia ter levado Carolina Nabuco a se deixar levar pela emoção, mas ela afirma que não se deixou guiar pela emoção, pois possuía uma "tendência natural de ver objetivamente as figuras que mais admiro". Apesar disso, este livro é fruto de uma admiração por uma mulher, como Santa Catarina de Sena, não podia deixar de inspirar:
Olhei-a com deslumbramento pelo maravilhoso conjunto de seus dotes com que Deus a armou para seu destino de lutas: sua admirável eloqüência, sua penetração nos pensamentos, sua intrepidez; enfim, seu gênio. O gênio é mais raro que a santidade e nela ele sobressai com luz solar (NABUCO, 2000, p. 271).
A biografia sobre Virgílio de Mello Franco surgiu como forma de enaltecer o valor e pagar um tributo ao amigo cuja vida foi cortada em plena atividade e cuja figura humana Carolina Nabuco procurou, embora receasse não ter conseguido, colocar sobre o papel. Ao contrário das outras biografias de cujos acontecimentos narrados Carolina Nabuco não participou, os desta terceira biografia foram acompanhados por ela, já que havia sido coetânea de Virgílio de Mello Franco:
A pesquisa para a biografia de Virgílio de Mello Franco foi muito diferente. [...] conheci-o bem, estreitamente como são ligadas as nossas famílias, tendo sobrinhos em comum com ele. Tive necessidade apenas de verificar com maior exatidão fatos que eu conhecia por alto. O melhor dessa pesquisa foi a conversa com os seus amigos, foram os depoimentos que muitos deles me vieram trazer em casa sem esperar que eu os procurasse. Reuni assim – e conservo – um grosso maço de entrevistas que já foram uma satisfação (NABUCO, 2000, p. 273).
Enquanto escrevia essas biografias, Carolina Nabuco, não abandonando inteiramente a ficção, escreveu uma história e outra que foram reunidas no livro O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969). Um outro livro escrito por ela foi Retrato dos Estados Unidos à luz de sua Literatura. Este livro, pertencente ao gênero crítica literária, reúne, segundo a sua autora, textos sobre autores americanos, apontando o que existe de mais típico ou mais altamente americano nesses autores.
Além de ficção, biografia e crítica literária, integra o acervo de Carolina Nabuco um outro livro: Oito décadas. Livro de memórias, espécie de testamento literário, esta obra reúne as reminiscências de Carolina Nabuco ao longo de oito décadas, uma a menos do que ela própria viveu. Oito décadas é muito mais do que um simples livro de memórias. Ele é um testemunho de uma época: "Carolina fala dos costumes, da evolução da política brasileira e personalidades que marcaram um período decisivo na história da humanidade: Einstein, Duchamp e a arte abstrata, os avanços na medicina, a Segunda Guerra Mundial e muitos outros" (SCHUMAHER e BRASIL, 2000, p. 142). Este livro começa com as revoltas e guerras civis, o enterro de Floriano Peixoto, as primeiras lições com a mãe, os estudos na Inglaterra, a descoberta da vocação literária, as lembranças da constante presença paterna.
Para Francisco de Assis Barbosa, em prefácio à primeira edição de Oito décadas, Carolina Nabuco escreveu "uma obra séria, vigorosa, honesta", que "se ergue altaneira", pois foi "solidamente construída sobre os alicerces mais profundos do sentimento brasileiro, no que há de melhor e mais representativo: nossa tradição de respeito à lei e de amor à liberdade".
Resquícios do trágico em O ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias

O vocábulo trágico pertence à categoria daquelas palavras possuidoras de uma grande extensão semântica: pode designar aqueles que escrevem ou representam tragédias ou o princípio filosófico ou categoria estética que encontram sua expressão mais pura na tragédia, embora se manifeste (ou possa vir manifestar -se) também no romance, na música, nas artes plásticas, na poesia ou mesmo em situações da vida real. Antes de apresentarmos uma "definição" do que seja o trágico, gostaríamos de reproduzir aqui o trecho final de Antígona, tragédia de Sófocles, no qual o Coro, como palavra final, fala:
CREONTE – Todo o meu desejo expresso em uma única súplica! Ouvi!
CORO – E não formules desejos. A vida é breve, e um erro traz sempre um erro. Desafiando o destino, tudo será destino. E aos mortais não cabe evitar as desgraças que o destino traz (SÓFOCLES, 2006, p.201).
Embora, como apregoam os formalistas russos, a literatura não possa ser usada como argumento para formulações, verdades ou definições científicas, esta resposta do Coro a Creonte, tirano cuja obsessão pelo poder levou sua esposa e filho à morte, acreditamos ser uma belíssima "definição" do que vem a ser o trágico que, na fala acima, é apresentado metaforicamente sob o nome de Destino. Ou seja, como o trágico diz respeito àquele evento de intenso dinamismo que irá acontecer e que não podemos evitar, ele é este acontecer cujas desgraças nós não podemos evitar, pois ele é fruto de um infortúnio do Destino ou de um erro nosso, eis o perigo com que convivemos, dos quais podem nascer a desgraça e o sofrimento.
Em conversação normal, o predicado trágico é, portanto, associado a acontecimentos que apresentam as seguintes características: são geralmente tristes; envolvem uma perda irreparável de um indivíduo único; tendem a envolver morte, particularmente a morte inesperada, desnecessária e prematura (MOST, 2001). Ainda de acordo com esse autor, o termo trágico, neste caso, "distingue e enobrece situações que expressam com particular pungência uma contradição fundamental entre os desejos mais profundos de satisfação e plenitude dos seres humanos e o indiferente universo no qual eles devem viver e fracassar" (MOST, 2001, p. 22-23).
Neste sentido, o vocábulo trágico não apresenta o mesmo significado que o seu homônimo grego: "Em síntese, tragikon descreve, na maioria das vezes pejorativamente, algo ou alguém que excede, ou especialmente quer exceder, as normas humanas comuns aplicadas a todos os outros" (MOST, 2001, p.23). Paralelamente a esse moderno uso estendido do trágico, um outro conceito mais complicado desenvolveu-se entre filósofos e intelectuais nos últimos séculos e apresenta as seguintes características:
Uma aparência de significação que esconde a arbitrariedade fundamental das coisas; uma responsabilidade pessoal esmagadora que vai muito além dos estreitos limites da liberdade de ação e não é diminuída pelas limitações evidentes da necessidade cega; uma nobreza indestrutível no espírito humano, revelada especialmente no sofrimento, na insurgência, na renúncia e na compreensão; um inextrincável nó do destino, cegueira, culpa e expiação; uma sabedoria final a respeito da grandeza e da inconseqüência do homem no universo, finalmente alcançada através da purificação conferida por um profundo sofrimento no mínimo parcialmente não merecido e às vezes pagando o preço de total aniquilação (MOST, 2001, p. 24).
Devido a sua polissemia, o trágico apresenta-se, na visão de Lesky (1996), como um "problema" que não pode ser resolvido em toda a sua extensão e profundidade, pois "é da natureza complexa do trágico o fato de que, quanto maior a proximidade do objeto, tanto menor é a possibilidade de abarcá-lo numa definição" (LESKY, 1996, p. 21). Por isso, segundo Vecchi (2004, p. 113), "nomear o trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto, cair em uma rede de incertezas, ser levado através de um Dédalo a procurar até mesmo lingüisticamente figuras recompositivas de um conflito – o quiasmo, o oxímoro –que apazigúem temporariamente o perturbante contato do extremo".
Noutras palavras, buscar uma conceituação normativa do trágico moderno e uma definição excludente dessa categoria é, nas palavras de Sterzi (2004), deparar-se inexoravelmente com a desilusão, pois inúmeras são as visões hermenêuticas sobre o trágico, muitas deles coexistindo em conflito entre si. Por isso, neste trabalho, consciente dessa impossibilidade de apresentar uma definição fechada para um vocábulo que refrata uma definição única, pois retém em si várias outras, não nos interessa apresentar uma definição estanque sobre o que é o trágico, mas mostrar como aspectos, resquícios dele estão plasmados na prosa de O Ladrão de guarda-chuvas e outras dez histórias (1969), de Carolina Nabuco.
O primeiro conto deste livro em que identificamos a presença de elementos do trágico chama-se "A pérola rosada". Como afirma Lesky (1996), a palavra trágico desligou-se, sem dúvida alguma, da forma artística com que a vemos vinculada no classicismo helênico e converteu-se num adjetivo que serve para designar destinos fatídicos de caráter bem definido e, acima de tudo, com uma bem determinada dimensão de profundidade sobre a qual cumpre indagar. Pois bem, em "A pérola rosada", temos a sucessão de acontecimentos fatídicos que marcam toda a geração da família do narrador: Sebastião Silveira de Góes, o qual resolveu escrever sua história a fim de evitar que outras pessoas venham a sofrer com os infortúnios trazidos pela Pérola Rosada:
Eu, Sebastião Silveira de Góes, coronel do exercito Imperial de sua Majestade Dom Pedro I (a quem Deus Guarde!) declaro que esta é a verdadeira relação das desventuras que sucederam a meu Avô, primeiro possuidor da pérola rosada, a meus malfadados Pais e a outras pessoas que, em diferentes ocasiões, estiveram sob a influência dessa jóia fatídica (LGC, p. 121).
Essa jóia fatídica entrou na família dos Silveiras de Góes como doação feita pelo rei Dom José I a João Augusto Silveira de Góes, avô do narrador, o qual, logo após receber esse "presente de grego", "foi morto pouco tempo depois, no exercício de sua profissão que era a marinha de guerra" (LGC, p. 121). Como afirmou Schiller (apud SZONZI, 2004, p. 82), "quando deve haver infortúnio, mesmo o bem deve causar algum dano". Após a morte de seu avô, o filho deste, que à época tinha apenas nove anos de idade, alcançando a idade de homem, abraçou a mesma carreira do pai e "partiu com a esquadra portuguesa que devia forçar a entrada do Rio grande em 1776, ano em que ele morreu e em que eu [o narrador] nasci". Até então, o caráter amaldiçoado da pedra rosada não havia sido percebido.
A partir daí, a Pérola Rosada se torna parte de uma herança maldita cujos malefícios atingem todos os membros da família do narrador ou todos os que dela fazem uso. Não há nada, anteriormente, no texto que revele esse aspecto nefasto, maldito da jóia, a qual funciona como uma espécie de talismã que atrai toda sorte de infortúnio, dor e infelicidade para quem a possui. Somente em seu leito, o pai do narrador, em meio a delírios, vem a afirmar, embora não saibamos como ele chegue a isso, que o anel onde esta incrustada a Pérola rosada havia sido a causa de sua morte. Como ele não queria ficar longe de sua esposa, com quem estava casado apenas há um ano, passou a jóia fatídica a ela a fim de que, dentre pouco tempo, a esposa pudesse morrer e eles se encontrarem na morte. Entretanto, ela, que tinha muito apego à vida, ficou profundamente abalada dos nervos, e isso a deixou desvairada, sem razão: "a infeliz senhora viveu ainda alguns anos, olhando sem cassar e com grande terror, para o dedo em que estivera o anel" (LGC, p.123) que foi guardado num cofre e somente entregue ao narrador quando este atingiu a maioridade.
Assim como os seus antepassados, o narrador não pôde escapar dos infortúnios trazidos pela pérola rosada, razão por que ele resolveu escrever o seu testamento. A sua família, desde que o presente recebido pelo patriarca passou a ser uma jóia de família, mergulhou numa sucessão de acontecimentos fatídicos que foram passados, como uma espécie de herança maldita, a todos os membros que se apossaram dela. A pérola rosada é, portanto, o objeto maldito que faz com que seu dono/possuidor mergulhe numa série de infortúnios. Ter/reter para si a pérola é ter seu destino marcado por sucessivas desgraças das quais torna-se impossível escapar.
Todo o conto, espécie de testemunho, é o relato das desgraças acontecidas com todos os que "tiveram a imprudência ou a desventura de usar essa jóia poderosa" (LGC, p. 124). Pois bem, atingindo a maioridade, o narrador, seguindo a (maldi)tradição da família, entra para a carreira militar e é enviado para a milícia da Vila Rica de Minas, onde veio a conhecer Dona Leonor, parenta de sua mãe e com quem veio a ter um enlace amoroso:
Era Dona Leonor fina e alta, muito alva e meio corada, com olhos de andaluza e boca de flor, e era toda ela meneios, sorrisos e caprichos, ao quais me enlevaram de tal modo que me tornei incapaz de lhe recusar qualquer coisa embora percebesse claramente que ela era falsa e ambiciosa (LGC, p. 124-125).
Dona Leonor, vivendo em situação de extrema penúria, vê na presença daquele parente distante o meio de sair de suas terras e viver em outros ares mais férteis, mais afortunados. Mesmo sabendo que ela não o amava e que os seus meneios galantes eram frios e calculados, o narrador deixou-se seduzir pelas artes de Dona Leonor, com quem noivou e a quem contou as tristes circunstâncias ocorridas em sua família pelo poder da pérola rosada. Ao saber da existência dessa jóia, Dona Leonor, ardilosa, passou a pedi-la insistentemente. Em atendimento a esse pedido de sua futura esposa, o narrador, meio a contra-gosto, mandou buscar a jóia e deu-lha de presente. Esse momento é crucial para Sebastião, pois a decisão dele, tomada baseando-se em informações insuficientes e em considerações erradas – ele, apesar de saber do poder nefasto da jóia, acredita ser amado por D. Leonor, por isso a presenteara – trará para ele e para a própria D. Leonor uma série de infelicidades.
Entretanto, ambiciosa, Dona Leonor, vendo que aquele noivo não poderia concretizar seus sonhos de grandeza e "fortuna" e sabendo da amizade dele com o Marquês de São Pedro, recém-chegado a terras próximas à fazenda onde moravam, insiste em que o seu noivo consiga fazer com que o Marquês, "homem já velho, viúvo, gordo e feio", viesse à fazenda deles. Ao receber o ilustre visitante, Dona Leonor, oblíqua e dissimulada (assim como Capitu, personagem bastante conhecida em nossa Literatura), desmanchou-se em desvelos e "durante o jantar mostrou-se tão amável e graciosa, falou com tanta vivacidade e gentileza, riu com risadas tão cristalinas e esteve tão radiantemente bela que vi perfeitamente que ela ambicionava virar a cabeça do Marquês embora na minha conduta não percebesse que vantagem almejasse de semelhante conquista além da satisfação de vaidade" (LGC, p. 127).
O narrador podia não saber o que Dona Leonor queria, mas ela sabia tanto que, uma vez "fisgado o Marquês", o noivado com o narrador é desfeito e o casamento com o Marquês é realizado logo em seguida: "Em 23 de fevereiro de 1798, ouvi, da própria boca de Leonor, a notícia de que eu era desprezado e de que nosso solene compromisso se achava rompido a fim de que minha noiva se tornasse marquesa, grande e rica" (LGC, p. 128).
Dona Leonor, sem saber, estará fadada ao engano e, apesar da ascendente prosperidade, estará fadada à ruína, pois, como afirma Szondi (2004), "não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação (lembremos que Dona Leonor pensa estar, ao casar com o Marquês, se livrando daquela vida de privações) tornar-se o aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína" (SZONDI, 2004, p. 89). Essa busca desenfreada de D. Leonor por fortuna, luxo, a conduzirá para a desdita e o que parece ter sido uma fortuna, ou seja, sorte, se revelará como desgraça.
Neste caso, casar-se com o Marquês só veio a contribuir para que ela desencadeasse o que já havia sido traçado pelas mãos do Destino: o casamento de D. Leonor é o primeiro passo para a morte, para sofrimento advindo de uma escolha errada que fazemos e que, como acontecerá com esta personagem, poderá nos levar à morte, pois as escolhas que fazemos pensando estarmos nos livrando da ruína é que nos conduzirão, inevitavelmente, a ela.
Atordoado com a resolução de D. Leonor, Sebastião pediu que ela lhe restituísse a Pérola rosada: "Também não me recordo do motivo que me levou, em tal momento a querer conservá-la, mas talvez tenha sido o desejo de encontrar por ela a morte que naquela hora me apetecia" (LGC, p. 129). Entretanto, D. Leonor havia se desfeito do noivo(ado) mas não dos presentes que ganhara. Ambiciosa e ardilosa, ela, alegando que havia perdido a jóia, guardou-a para si.
Nesse intervalo de tempo em que se mantiveram separados, enquanto D. Leonor gozava da "fortuna" que lhe viera com o casamento com o Marquês, Sebastião, apesar de obcecado ainda pela beleza dela e pela humilhação de que fora vítima, veio a se casar e, só depois de muito tempo, tornou a se encontrar com D. Leonor, que, apesar das calúnias e maledicências de alguns, se tornara modelo de virtudes para alguns membros da Corte:
:
Quando a tornei a ver, não existia para mim, como nunca mais existiu, outra mulher senão a minha adorada Esposa, mesmo assim, porém, surpreendeu-me a indiferença com a qual pude contemplar novamente a mulher que fora a causa das mais fortes emoções de minha vida. Tanto nos muda a existência que, a caminho do Paço Imperial, onde sabia que a encontraria, depois de mais de dez anos, as minhas preocupações eram inteiramente outras (LGC, p. 130-131).
Depois desse encontro em que velhas paixões deram lugar à indiferença, Sebastião e sua esposa passaram a fazer parte da corte de D. Leonor, que parecia não ter sido afetada pelos poderes fatídicos da Pérola rosada, pois, além do luxo em que vivia, conservava uma suntuosa plenitude que não era menos irradiante do que o seu fresco desabrochar. Pela conversa que o narrador diz ter tido com D. Leonor, ficamos sabendo que ela se mantivera imune aos poderes da jóia porque a guardara a fim de encontrar uma outra semelhante para poder usá-las como brinco. D. Leonor pede que Sebastião deixe-a com a jóia durante mais um ano, pois os eu joalheiro havia encontrado outra semelhante a ela, e, depois desse prazo, ambas as jóias passariam às mãos de Sebastião para que ele presenteasse a sua filha mais velha.
O irmão de D. Leonor tentou dissuadi-la daquele desejo, alegando "que não lançasse à sorte tamanho desafio, pois acreditava firmemente que lhe adviria desastre" (LGC, p. 132-133); mas ela "tão pouco susceptível a receios e superstições quanto, infelizmente, era à crença e à religião, riu-se e nada quis ouvir" (LGC, p. 133). Se conseguiu se manter imune à Pérola rosada, D. Leonor, assim que a usou, confirmando o que acontecia sempre com os que se apossavam da jóia, tornou-se mais uma vítima e só usou a Pérola duas vezes, pois veio a ser assassinada por um jovem que se dizia enamorado por ela:
Chamava-se ele Francisco Pereira de Rezende. Pertencia a uma boa família aparentada à do Marquês. Era mui jovem e todos sabiam que estava desde muito perdido de amor pela Marquesa, perseguindo-a em toda parte, do que ela várias vezes se queixara nos últimos anos. Boatos maliciosos tinham antes ligado seus nomes, mas já então, outros boatos corriam, em torno da admiração que demonstrava à Marquesa um dos mais altos personagens do Império. Assim foi logo atribuído a despeito o gesto tresloucado do belo capitão Rezende. Chegava Leonor ao Paço de São Cristóvão quando o assassino se aproximou do seu coche como para saúdá-la, apunhalando-a antes que qualquer pessoa lhe pudesse perceber o intento (LCG, p. 133).
Morta a Marquesa de São Pedro, Sebastião foi reclamar ao irmão dela, Philippe, o direito à Perola rosada, mas este, que herdara todos os defeitos da irmã, disse que fizera da jóia um alfinete e o presenteara a uma amigo: o Coronel Barros Silva. Sebastião tenta evitar que a Pérola faça mais uma vítima e procura reavê-la, mas o "estrago já havia sido feito": o Coronel já havia usado a jóia e, uma vez exposto à influência dela, veio a falecer, vítima de uma queda de cavalo. Sua esposa veio a se casar com Philippe, irmão da marquesa, que presenteara o amigo com o intento de ele ser mais uma vítima dos poderes fatídicos da jóia e, assim, desposar a viúva; "e esse enlace, que lhe trouxe grande fortuna, não surpreendeu a ninguém, pois havia muito que o digno coronel era o único a ignorar a traição da Mulher e do Amigo" (LGC, p. 135). Com a morte do Coronel, depois veio a falecer a filha de Sebastião, mas a sua morte, apesar de ter sido para ela que D. Leonor tinha deixado a jóia de presente, ele não atribui aos poderes da jóia, fecha-se o ciclo das vítimas da Pérola rosada, que, para não fazer mais vítimas, o narrador manteve guardada no escrínio.
Ao contrário dos textos trágicos clássicos nos quais ao herói é vaticinado um destino marcado pelo infortúnio, o herói deste conto só fica sabendo disso depois que foi vítima dos maus presságios que emanaram da Pérola rosada. Como as suas tentativas para evitar o poder maléfico da jóia se revelaram vãs, o narrador recorre a uma última alternativa para tentar remediar o irremediável: escondê-la no escrínio e escrever aquela carta que alerta aos possíveis interessados na Pérola Rosada os perigos que esta jóia contém:
Esta é a história da Pérola Rosada, que escrevo para meus filhos e seus descendentes com o mais escrupuloso respeito pela verdade, procurando relatar com exatidão as circunstâncias por mais pequenas. Minha mulher assina comigo, em testemunha de minha boa fé.
Assinado:
Sebastião Silveira de Góes
Adelaide de Góes (LGC, p. 135)
Escrever os infortúnios que marcaram a sua família e legá-los à posteridade em forma de relato é, como dissemos, a última tentativa do narrador/personagem para enfrentar o medo da morte e angústia de presenciar eventos que sabe ser irremediáveis. Entretanto, conforme afirma Goethe (apud ESTERZI, 2004, p. 109), "qualquer tragicidade é fundada por um conflito inconciliável. Se intervier ou se tornar possível uma conciliação, o trágico desaparece". Nesse sentido, podemos dizer que essa última atitude do narrador/personagem representa "o esforço humano, seja no intuito de exorcizar o espírito trágico, seja na tentativa de racionalizar suas aparições e efeitos. Contra Tanatos, o terrível deus, vale tudo: no controle da pulsão de morte, portanto, na resistência ao trágico, estaria a condição mesma da sobrevivência humana" (LUNA, 2005, p.20).
O conto "O viúvo" assemelha-se ao conto anterior por dois aspectos. Primeiro, assim como em "A pérola rosada", existe um narrador em primeira pessoa que conta os fatos depois que eles aconteceram e dos quais ele mesmo participou. Em ambos os casos, os acontecimentos nos são oferecidos depois de filtrados pelo olhar e consciência do narrador. É ele quem manipula a narração, oferecendo-nos fatos que já aconteceram. Neste caso, narrar o que já aconteceu acentua o sentido trágico daquilo que vai ser narrado, pois, segundo F.L. Lucas (apud LUNA, 2005, p. 242), "o pretérito é realmente o mais trágico dos tempos. Se foi feliz, não é mais; se foi desastroso, não pode ser desfeito". Noutras palavras, ambos os contos assemelham-se do ponto de vista da trama, ou seja, do ponto de vista da "aparição na obra [do conjunto de conhecimentos ligados entre si]" e "da seqüência das informações que se nos destinam" (TOMACHEVISKI, 1973, p.173). Se não, vejamos os parágrafos iniciais de "A pérola rosada" e de "O viúvo", respectivamente:
Eu, Sebastião Silveira de Góes, coronel do exercito Imperial de sua Majestade Dom Pedro I (a quem Deus Guarde!) declaro que esta é a verdadeira relação das desventuras que sucederam a meu Avô, primeiro possuidor da pérola rosada, a meus malfadados Pais e a outras pessoas que, em diferentes ocasiões, estiveram sob a influência dessa jóia fatídica (LGC, p. 121).

Este caso, de que fui testemunha há muitos anos, ocorreu a bordo de um transatlântico rumo à Europa. Eu era moço e sentia-me feliz por ir conhecer novas terras, viajando com meus primeiros proventos de arquiteto.
Esse estado de satisfação talvez me tenha sido um dois fatores que, por pena de seu manifesto isolamento, me lavaram a apadrinhar um passageiro idoso e triste cuja presença constrangia as rodas alegres (LGC, p. 111).
Sendo a trama, consoante lição de Tomacheviski (1973), uma criação puramente artística, podemos dizer que é a mesma a forma como tomamos conhecimento da fábula desses contos, isto é, "o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra" (TOMACHEVISKI, 1973, p.173). Embora apresentando fábulas diferentes, os contos assemelham-se na forma como os acontecimentos narrados são apresentados ao longo da trama, pois, em ambas as narrativas, os fatos narrados já aconteceram. Isso faz com que "as causas que engendraram a catástrofe não mais [possam] ser alteradas e essa terrível imutabilidade da ordem das coisas passadas contribui poderosamente para acentuar o sentido trágico da ação" (LUNA, 2005, p. 242).
Além dessa semelhança estrutural, outra há que une os referidos contos: a temática. Em ambas as narrativas, a morte está presente e traz consigo as marcas do trágico. Apesar de existirem fatos que são trágicos embora não resultem em morte, esta participa freqüentemente das representações do trágico. Essa presença marcante da morte como elemento desencadeador (ou resultante de) eventos trágicos deve-se ao fato de que, "dentre os fenômenos da vida, a morte é aquele que mais efetivamente alia os dois traços essenciais à tragicidade: sofrimento e resistência à razão" (LUNA, 2005, p. 19). Sendo assim, a morte, apesar de apresentar, em cada uma das narrativas, nuances diferentes, é o elemento que as une. Se na primeira, a morte é decorrente da sucessão de infortúnios que acometem todos os membros da família Silveira de Góes e todos os que se apossam da jóia fatídica; na segunda, ela é responsável pela deflagração do estado lutuoso da personagem que dá título ao conto.
Este personagem era "um velho chileno estancieiro, viúvo, que ia pela primeira vez à Europa a fim de visitar, na Itália, uma filha casada com diplomata" (LGC, p. 111). Ele usava luto fechado, pois perdera a esposa e sem ela a sua existência era um fardo pesado. E, como lembra Caruso (1989), a separação daqueles a quem se ama é uma das mais dolosas experiências na vida humana – se não for, talvez, a mais dolorosa. Nenhum ser humano é estranho a esse fato e, diante dele, pode expressar, como reação, sentimentos de rebeldia e resignação, o que varia conforme a história de vida de cada indivíduo e o seu condicionamento específico.
No caso do personagem do conto em pauta, ele prefere, em decorrência da separação conseqüente à morte física de sua amada esposa, manter luto fechado. Aliás, como lembra Freud (1990), sendo uma reação à perda de um ente querido ou de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal, o luto possui alguns traços distintivos, tais como: desânimo profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade. Ou seja, o luto profundo, a reação à perda da pessoa amada, acarreta:
O mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda do interesse pelo mundo externo – na medida em que este não evoca esse alguém –, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele (FREUD, 1990, p. 276).
Sem querer fazer uma análise psicanalítica do conto em pauta, aliás, os formalistas russos repudiavam toda e qualquer análise que se baseasse em dados exteriores ao literário, podemos dizer que alguns desses traços distintos do luto são apresentados pela personagem em pauta, uma vez que ele, devido à perda da esposa, enredava-se, cada vez mais, na "concha da tristeza" e, por isso, era avesso às pessoas, a qualquer companhia que fosse. Perder a pessoa amada gera uma frustração especialmente dolorosa. A separação amorosa ocasiona uma dor que talvez possa ser vista como uma das mais difíceis de ser suportada. De acordo com Caruso (1989, p.13), não é por acaso que, em todos os mitos religiosos, "o estado idealizado de dor absoluta após a morte física do pecador [seja] equiparado à separação absoluta do objeto amoroso". Ainda segundo este autor:
O reino das sombras –o inferno –apresenta-se como o lugar da dissociação, da ausência e da separação eterna; só os deuses e semi-deuses podem superar as leis da existência e descer a esse reino, para libertar os amantes esperançosos. Na representação cristã da condenação eterna, a própria essência dessa condenação encontra-se na dor provocada pela separação dos amantes (isto é, na separação do amor absoluto personificado no Cristo) e no desespero daí decorrente (CARUSO, 1989, p.13).
Como um ser em profundo estado lutuoso, o chileno vê o mundo como algo que se tornou pobre e vazio, pois, conforme afirma Luna (2005, p.20), além da morte, "a ausência do trágico se prolonga na dor e no sofrimento provocados pela ausência do ser, pela perda da existência. É o que podemos chamar de ‘efeito trágico’, a lutuosidade que se instala como processo de transposição para o além":
Não se consolava da perda da esposa. Lastimava-se sempre nas nossas conversas dos anos, provavelmente muitos, que ainda lhe restavam de vida. "Tenho uma saúde de ferro", queixava-se. A seu gosto, dizia-me, não teria saído da fazenda distante, onde passara a vida e que percebi ser muito próspera e de grande desenvolvimento. Os filhos, porém, obrigavam-no a mudar um pouco de ambiente, com a esperança – ilusória, dizia-me ele – de que a viagem poderia distrair-lhe os pensamentos (LGC, p. 111-112).
Como veremos, a viagem será mesmo importante não só para distrair-lhe os pensamentos mas sobretudo para que ele rasgue o luto. Entretanto, por ora, resta-nos frisar que, conforme trecho acima, o chileno, diante da perda do objeto amoroso, vivia, por assim dizer, em plena adoração desse objeto. Ele trazia consigo, como prova dessa devoção à esposa, um retrato dela que foi tirado em Paris quando ela precisou viajar para levar a mãe, gravemente doente, para ser tratada e que, além de registrar a beleza da morta, punha em evidência "aquele sorriso, que não chegava a sorrir, [que] guardava um extraordinário poder de comunicabilidade e era uma autêntica mensagem, ou confissão, de amor feliz. Pensei: ‘ Esta mulher ama e é amada [...]’" (LGC, p. 113).
Pelo que nos conta o narrador, o luto apresentado pelo chileno parecia ser eterno, pois se tornara "um homem de poucas palavras, avesso ao convívio social e à troca de amenidades" (LGC, p.112). Entretanto, como afirma Freud (1990), o luto, apesar de envolver graves afastamentos, é superado após certo lapso de tempo, o que acontecerá para esta personagem após uma conversa banal.
Numa das noites da viagem, como que por acaso, o chileno, que era avesso ao contato com os demais, resolvera participar de uma conversa entre o narrador e um casal de argentinos que estava em lua de mel:
Revolta-me a terrível coincidência desse encontro que era tão fácil não ter ocorrido, da tragédia que o destino jogou tão desnecessariamente em seu caminho. Por que escolhera esta noite para se juntar ao meu grupo, ele que costumava tratar os passageiros como se fossem inimigos? Teria havido uma atração inconsciente, uma obra verdadeiramente infernal para o que era predestinado a saber, a destruição de todo o seu passado e de quanto lhe restava de felicidade que parecera indiscutivelmente sua? (LGC, p.118).
Fazia parte também da conversa uma terceira personagem: um famoso escritor espanhol, o qual será importantíssimo na configuração do elemento trágico nesta narrativa, pois é o responsável por deflagrar o inevitável, o que estava predestinada e, assim, fazer com que o chileno rasgasse o luto pela esposa.
Nesta conversa aparentemente banal, para a qual o chileno, segundo o narrador, parece ter sido chamado, pois "devia estar se sentido inda mais triste que de costume, triste a ponto de não poder mais suportar o peso da solidão" (LGC, p.114), o espanhol, ao saber que fazia parte da roda de amigos um chileno, disse que um de seus maiores amores foi uma chilena.
Ao saber disso, Mercedes, a argentina que, juntamente com o marido, participava da conversa, pensando que ouviria mais um daqueles picantes casos amorosos, pede ao escritor espanhol que o relate. Para o narrador, essa história seria apenas mais uma insossa água com açúcar, mas, mesmo assim, ele não sabia explicar por que sentia "uma inexplicável aflição, como o de ver uma pessoa tomar um caminho errado que poderia conduzir a desastre" (LGC, p.115).
Como poderemos ver, o relato do espanhol tratará um elemento surpresa que caracterizará uma situação inesperada, ou melhor, a revelação de uma verdade inesperada. Entretanto, antes de sabermos que verdade é essa, voltemos ao relato do espanhol. Este, continuando a sua história, conta que conhecera a tal chilena num hotel e, durante vinte dias, eles viveram uma paixão intensa e, ao final desse período, se separaram e nunca mais se encontraram: "quando partiu para seu país, proibiu que eu a seguisse ou mesmo lhe escrevesse" (LGC, p.116).
Novamente, o narrador pressente a revelação do irremediável: "atravessou-me o cérebro uma idéia que me teria horrorizado se eu não a tivesse logo afastado por impossível" (LGC, p.116). Essa idéia, que o narrador não chega a formular, mas que o leitor, talvez, já seja capaz de inferir qual seria, é esta: a mulher por quem o escritor espanhol diz ter sido apaixonado é a mesma por quem o chileno mantém luto. Isso é revelado quando o espanhol confirma ter sido a sua amada uma mulher casada que viera a Paris acompanhar a mãe que estava doente de câncer.
A vivência como dona de casa num mundinho restrito à fazenda do marido fez com que essa mulher se deslumbrasse com Paris. Estar ali era um verdadeiro milagre: "Sua alegria em descobrir Paris, em gozar dos passeios, das lojas, da arte, fazia tudo mais belo, mais novo" (LGC, p. 115). A saída do ambiente privado e o contato com um lugar mais público fazem com que a esposa do viúvo não só desfrute dos prazeres materias advindos das compras em lojas parisienses, mas também se permita viver, sentir outros prazeres amorosos, ainda que no curto espaço em que estivera em Paris. Dessa época de felicidade, o escritor espanhol diz ter guardado apenas um uma fotografia daqueles dias:
É um desses retratos de que é costume dizer que falam, e o que ela diz nele do modo mais claro possível é a sua felicidade no nosso amor. Ela disse-me que o tirou pensando em mim e a mensagem que me quis deixar esta realmente ali, radiosa e eloqüente (LGC, p. 117-118).
Nesse momento, o que para o narrador se revelara apenas como uma leve intuição, uma suspeita efêmera se revela como verdade: "Olhei depressa para o meu amigo. Ele podia ter desconfiado antes por qualquer detalhe, mas vi que só agora, com essa referência à operação da mãe, veio-lhe, como a mim, a certeza" (LGC, p. 116). A esse reconhecimento de alguma verdade antes desconhecida os gregos chamavam anagnorisis, a qual é definida por Aristóteles (apud LUNA, 2005, p. 259) nos seguintes termos: "o ‘reconhecimento’, como indica o significado da própria palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão designadas para a dita ou a desdita".
Segundo Luna (2005), Aristóteles chama atenção para diversos tipos de reconhecimento, como, por exemplo, os que podem ocorrer através dos sinais do corpo ou do despertar da memória. Este último é o que se manifesta no conto em análise, pois foi relembrando que ouvira do chileno que a esposa deste estivera em Paris para tratar da mãe enferma que o narrador descobriu ser verdade aquilo que ele apenas intuíra. Já para o chileno, a história do espanhol lhe revela uma verdade antes desconhecida: a traição da esposa a quem ele, depois da morte dela, se mantivera fiel vestindo o luto. Essa espécie de reconhecimento, apesar dos vários tipos existentes, é a que se mostra como melhor, pois, urdido da própria trama, introduz um elemento surpresa que caracteriza uma situação inesperada e faz com que a surpresa resulte de modo natural.
Diante dessa verdade que lhe era desconhecida, o chileno, cujo erro trágico foi ter ido participar daquela conversa banal, teve como ímpeto inicial atirar-se contra o espanhol, mas se conteve e recolheu-se ao seu camarote Nesta mesma noite de revelação, ele atirou ao mar o retrato de sua esposa cujo sorriso de amor e felicidade captado naquele retrato guardado na carteira dele não era para ele e, sim, para o outro, o amante dela, como única recordação daquela paixão fugaz. Jogando ao mar o retrato da esposa, a quem ele se manteve fiel e que lhe fora infiel, o chileno estava relegando-a ao esquecimento e, ao mesmo tempo, libertando-se daquele luto, ainda que, para isso, não tenha escapado de uma experiência trágica, pois o trágico é "uma descrição de certos tipos de experiência ou de traços básicos da existência humana, ou seja, está ligado à essência da condição humana, em sua estrutura imutável ou como se manifesta em circunstâncias, catastróficas" (MOST, 2001, p. 24).
Nesse sentido, a existência do viúvo, de agora por diante, poderá ser mais trágica, pois, se antes do momento de revelação, ele sofria porque havia se separado fisicamente da esposa, agora, uma vez sabendo que ela lhe fora infiel, ele terá de separar-se definitivamente dela. Ou seja, ele terá de provocar a morte dela dentro dele mesmo, o que ele já fizera ao atirar para o mar o retrato dela. Essa separação afetiva fará com que a esposa, antes devotada, se torne um cadáver que nem sequer o fará mais sofrer, o viúvo, uma vez superado o luto, terá de viver uma outra fase, talvez mais dolorosa: a do esquecimento.
REFERÊNCIAS

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