Quando
digo que não sei andar de bicicleta, as pessoas se espantam. Algumas, inclusive,
chegam a perguntar se eu não tive infância. Não sei bem o que essas pessoas
entendem por infância. Só sei que ela não é a mesma para todas as crianças,
assim como nunca foi a mesma em todas as épocas. Mas, por muito tempo, ante aquela
pergunta, eu respondia dizendo que não tive infância porque precisei trabalhar.
Desde
os seis anos de idade, vendi jornal na rodoviária nova em Campina Grande. Logo,
as brincadeiras de infância foram trocadas pela necessidade de trazer dinheiro
para casa. Era um tempo em que comprávamos meio quilo de feijão, de açúcar. Em
que se vendia mercado de óleo. Nessa época, o meu brincar era conseguir a
garantia de poder prosseguir no jogo da vida. Por isso, eu saia do Bairro das
Cidades para o Terminal Rodoviário Argemiro de Figueiredo muito cedo, quase de
madrugada, em uma época em que Campina Grande tinha empresas de transportes como a Dantas, espaços como o velho “Pela Poico” e os ônibus
tinham roletas por baixo da qual se passava para não pagar a passagem. Enquanto alguns colegas brincavam, andavam de bicicleta, eu acordava de
madrugada para não perder o embarque das cinco, já que esse era um horário em que
mais se podia vender jornal aos passageiros que, na pressa para honrar os compromissos, passavam voando indiferentes ao que estava ao seu redor.
Lembro-me
de que, uma vez, até tentei aprender a andar de bicicleta. Era uma caloi cujo quadro,
pintado de preto, tinha alguns detalhes na cor verde limão e laranja. Nesse
dia, talvez um domingo à tarde, ou um feriado, meu irmão, o dono da bicicleta,
ia me ensinar a pedalar, mas tinha de ser na frente de casa porque mãe poderia
brigar. Montei na bicicleta, ajeitei-me na cela e desci pela rua da bueira na Vila
Cabral de Santa Teresinha, onde morei por mais de dez anos.
Lembro-me
ainda da alegria de conseguir pedalar por alguns segundos antes de cair. Nada grave.
Mas, se me levantei da queda, o sonho de andar de bicicleta ficou no chão. Meu
irmão me disse ante meu fracasso: “Sai daí, tu és burro demais. Não aprende.
Devolve”. Disse-lhe umas palavras de revolta, devolvi a bicicleta com raiva e voltei para casa. Desse tempo para cá, nunca mais tentei
aprender a pedalar. Andar de bicicleta ficou naqueles sonhos de infância. Se a infância
ficou perdida, aquele sonho se perdeu também até que, ao ver a tela abaixo,
pude me lembrar um pouco do menino que fui e dos sonhos que ele sonhou. Alguns concretizados;
outros olvidados:
A
tela acima foi pintada pela artista Valci Oliveira, faz parte de um projeto
dela de registrar brincadeiras de infância e integrou um conjunto de telas em
uma exposição de arte contemporânea organizada pela Secretaria de Cultura de
Campina Grande – SECULT – na década de 1980, creio.
O
colorido intenso aponta para um traço da produção da artista que, além de
pintora, é também ceramista, inclusive premiada pelo TOP 100 Sebrae de
Artesanato. As casas ao fundo da tela lembram o estilo art déco que é a marca de boa parte dos prédios que compõem o
centro comercial de Campina Grande. Além disso, a presença de formas circulares é
outro traço da artista. Aliás, na pintura de Valci Oliveira já se prefiguram
traços que ela vai transpor para suas peças em cerâmica, o que se configurará
como uma singularidade de seu estilo. Além
do brilho das cores fortes, a tela tem movimento. A impressão que nos passa,
como espectador, é de estarmos diante de uma criança em uma bicicleta em
movimento. A rua em azul, da perspectiva em que foi pintada, passa-me a ideia
de que a criança, solitária em seu brincar, parece ser o dono da rua, ou
melhor, o dono da terra, porque a rua lembra, de certa forma, o próprio planeta
terra. A tela capta, a partir de certo encantamento e poeticidade, um momento
lúdico da infância, momento esse que para algumas crianças fez falta e que, em
alguns adultos, se faz sentir como ausência.
Um
menino em uma bicicleta. De imediato, o leitor deste texto pode perceber a ligação
entre o que eu vinha dizendo no início e a tela de Valci Oliveira. Aquele
menino em cima da bicicleta, desde que vi a tela pela primeira vez, era uma
espécie de projeção de mim mesmo. Ele era o que sonhei ser, mas não pude. No
menino da tela, eu me vi pedalando. Na tela de Valci, mais uma vez, vejo
confirmada a assertiva de que “a arte é uma confissão de que a vida não basta”.
Que bom que existe arte para alimentar as nossas faltas, para nos preencher as
nossas necessidades de fantasia e de desejo! Com essa tela, trago para dentro
de minha casa, um pouco daquele menino para quem o futuro era incerto e o
presente era uma luta pela sobrevivência diária. Enfim, O menino e a bicicleta, de Valci Oliveira, é uma tela que me comove
pela sensibilidade com que flagrou um matiz de uma infância. Para mim, perdida;
para outros, a tela venha, talvez, mostrar que o menino de antes (re)vive no adulto de
hoje.
Um comentário:
Muita linda a crônica, me senti normal após ler ... também não sei andar de bicicleta , não aprendi , e nem sei porquê.
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