Júlia Lopes de Almeida
Carolina Nabuco com seus irmãos e sua mãe
ESCREVER v.t.d. 1 representar por sinais gráficos (pensamentos, idéia etc.); redigir 2 riscar sobre uma superfície (palavras, frases, letras, caracteres etc.) 3 inscrever, gravar 4 B infrm. aplicar multa a (infrator de trânsito) t.d. e int. 5 criar (obra escrita); compor, redigir (e. um romance) (e. diariamente para o jornal) t.i. e t.d.i 6 (prep. a, para) enviar (carta, bilhete etc.).
Visto meramente como uma palavra em estado de dicionário, não nos apercebemos dos outros matizes de que se reveste este ou aquele verbete. Dicionarizada, a palavra pode nos apresentar as suas “essências”, mas deixa de nos passar outros efeitos que ela adquire quando posta em ação. Escrever, verbete que abre o presente texto, bem mais do que as acepções apresentadas, quando conjugado, quando posto em ação, quando mergulhado na intrigante rede ideológica que tece a sociedade em que vivemos, é, inevitavelmente, um ato político e ideológico por meio do qual aquele que escreve vai, sobretudo, se inscrevendo, imprimindo a sua marca, por mais indelével que seja, naquilo que escreve. Jean Genet, escritor francês, definiu muito bem o ato de escrever da seguinte forma:
A página que no início era branca, agora está cruzada de alto a baixo por minúsculos sinais negros, as letras, as palavras, as vírgulas, os pontos de exclamação, e é graças a eles que se diz que esta página é legível. Contudo, há uma espécie de inquietação do espírito, há essa vontade de vomitar muito próxima da náusea, há uma oscilação que me faz hesitar em escrever... seria a realidade esta totalidade de sinais negros? O branco, aqui, é um artifício que substitui a translucidez do pergaminho, o ocre marcado dos tabletes de argila, mas este ocre em relevo, como a translucidez e o branco, talvez tenha uma realidade mais forte que os sinais que o desfiguram.
Como estávamos dizendo, cristalizada nas páginas de um dicionário, a palavra perde “uma realidade mais forte”; escapa-lhe, portanto, essa “inquietação do espírito”, “essa vontade de vomitar próxima da náusea”. Essas realidades nos fazem, apropriando-nos ainda das palavras de Jean Genet, hesitar em escrever. Agora, pensemos nas escritoras do passado. Pensemos no quanto elas hesitaram em escrever e no quanto escrever pode ter-lhes sido nauseante. Para elas, escrever era muito mais do que representar (e representar o quê?) por sinais gráficos, era muito mais do que gravar, redigir. Escrever era uma luta por algo que lhes era amiúde negado: o poder de, pela escrita, dizer que eram, conhecerem-se a si mesmas e reconhecerem-se no Outro, ainda que esse Outro fossem elas mesmas.
E por que será que o “simples” ato de escrever era negado às mulheres? Primeiro, escrever pressupõe, no mínimo, saber dar contorno à tinta e fazê-la, portanto, assumir a forma de determinados caracteres no branco do papel. Temendo, talvez, que as mulheres (se) sujassem (n)as (im)purezas do branco, a elas era “concedido” o direito de não poderem escrever. Em decorrência disso, eis o segundo motivo por que a escrita, durante muito tempo, se apresentou às mulheres como um território selvagem, escrever era coisa de homem. As mulheres tinham atividades mais importantes com que se preocupar. Para que querer conjugar o verbo escrever se os homens já o faziam em seu lugar e se elas tinham outros verbos mais interessantes a conjugar: agradar, obedecer, calar, casar, parir, resignar-se...?
Dessa forma, tornar a escrita uma prática efetiva foi um exercício bastante doloroso para “o belo sexo”. Como escrever, se até então essa era uma atividade eminentemente masculina? Por outro lado, mesmo sabendo exercitar a escrita, escrever sobre o quê, se se deveria escrever sobre grandes feitos? E de que grandes feitos as mulheres haviam participado? Diante disso, escrever foi, antes de tudo, não só um exercício de descoberta de si, mas também um doloroso exercício de penetração num mundo onde ser mulher era ficar às margens das ações que estavam acontecendo, era trilhar por mares nunca dantes navegados porque os mapas estavam (ou eram escritos por) com os homens, era ser aspirante a coadjuvante em enredos escritos por homens e para homens. Sendo assim, como se tornar visível nesse mundo, sem ser vista como uma intrusa? Como manejar a pena, objeto fálico, para dela poder gozar daquilo que só aos homens era dado conhecer?
Diante de mais essa dificuldade, ou seja, sobre o que escrever, muitas mulheres, quando começaram a adentrar no universo da escrita, passaram a falar daquilo a que elas estavam mais próximas: o espaço privado, onde, assim como muitas das personagens que passaram a construir, permaneceram fechadas em casas e sobrados, mocambos e senzalas, espaços construídos por seus pais, maridos, senhores. Dentro desse universo do privado, essas mulheres falaram, sobretudo, dos laços familiares. A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”. Por isso, são recorrentes nessas produções temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordavam nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública e competiam apenas aos homens. Entretanto, mesmo falando sobre assuntos aparentemente inocentes, essas mulheres estavam, para lembrar os versos de Júlia Cortines que servem como epígrafe a este trabalho, levantando a pálpebra, atendendo ao imperativo de falar, de deixar abrir a boca há muito emudecida e trazer à tona segredos guardados entre palavras até então inauditas.
Noutras palavras, na busca por vista e por voz, as mulheres, ao escreverem sobre aquilo a que estavam próximas, foram, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Assim, não deveria nos causar estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e delineados pela arquitetura masculina, as mulheres tenham escolhido justamente esses espaços para falarem, dizerem que eram, são e foram.
Nesse sentido, dentre essas mulheres que ousaram fazer da pena instrumento de expressão de sua intelectualidade e de construção de aspectos de nosso imaginário, podemos citar Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Carolina Nabuco de Araújo (1890-1981), cuja trajetória de vida se confunde muito mais do que se separa. Pertencentes à elite do país, uma era filha de um Visconde e a outra de um deputado do Império, elas foram mulheres que se assemelham por terem percorrido um difícil caminho na busca por se firmarem como escritoras, processo esse em que contaram com a ajuda dos pais e do marido, no caso de Júlia Lopes de Almeida, pois Carolina Nabuco, vivendo na casa da Rua Marquês do Botafogo, no Rio de Janeiro, nunca chegou a se casar.
Parece que elas se assemelham também por terem, desde cedo, sentido a inclinação para a escrita. Se isso foi, a princípio, angustiante para Júlia Lopes de Almeida, que, ao escrever seus versos, se sentia como se estivesse cometendo um grande crime; escrever para Carolina Nabuco foi um sonho acalentado desde muito cedo, sem que com ele viesse o receio por estar fazendo uma atividade proibida ou o desejo pelo sucesso que viria alcançar com a publicação de uma valiosa obra como romancista, memorialista e biógrafa.
No plano da ficção, mais convergindo do que propriamente divergindo, tanto Júlia Lopes de Almeida quanto Carolina Nabuco escreveram uma obra marcada pela valorização do cotidiano das prendas domésticas e pela reduplicação dos valores tradicionais e pela imitação dos modelos da cultura dominante. Esse último aspecto faz-nos pensar que essas autoras exerceram o que estamos chamando de uma escrita bem comportada. Falar desse tipo de escrita implica dizer que, opondo-se a ela, existe também uma escrita mal comportada? Não enfrentemos, por ora, essa ferida. Atenhamos apenas ao que estamos chamando de escrita bem comportada, ou seja, um tipo de escrita cuja composição, temas e estrutura não se opõem ao que já vinham, em termos literários, sendo feito e era tomado como modelo aceito. Esse tipo de escrita dá forma a um conjunto de obras cujos temas e enredos não buscam, na fatura dos textos, nenhuma ruptura e, por isso, apresentam um esquema bem comportado de escritura, o qual se repete de uma escritora para a outra.
Além disso, os temas abordados por essas escritoras também podem ser vistos como bem comportados, já que reiteram os valores patriarcais vigentes à época. Entretanto, a análise do valor dessas escritoras a partir dos temas recorrentes na prosa delas deve ser algo feito com certo cuidado. Vivendo entre as paredes da casa, adornadas como o anjo do lar ou coroadas como rainhas, a essas autoras resta escrever sobre o quê? Como abordar temas que transcendessem as treliças do lar, se este era o ponto de partida e de chegada para muitas dessas nossas bandeirantes das letras? Se precisavam escrever para, conforme versos de Beatriz Francisca de Assis Brandão, poetisa mineira do século XVIII, trazer à tona “raros dotes [que] talvez vivem ocultos/que o receio de expor faz ignorados”, por que não escrever sobre o angustiante exercício de “lavar pratos e enxugar prantos todos os dias”? Pois bem, foi escrevendo sobre essa líquida rotina que as mulheres, em sua maioria, começaram a se inscrever no difícil, porque masculino, mundo da escrita. Isso não quer dizer que elas só tenham falado da casa e dos afazeres domésticos. Inúmeras foram as mulheres que escreveram sobre outros temas que iam de reflexões políticas até perquirições filosóficas.
Ademais, o olhar voltado à obra dessas autoras não deve procurar cobras delas aquilo que, social-cultural e historicamente, não podia ser ofertado a elas. Exigir-lhes uma ruptura com uma ordem dentro da qual e para a qual elas haviam sido educadas ou exigir-lhes a produção de uma obra que já nascesse sem nenhum senão estético é um tanto quanto descabido. Além disso, a própria categoria de estético deve ser (re)pensada, uma vez que ela foi criada para aferir a qualidade de textos escritos, em sua maioria, por homens. Sendo assim, será que esta categoria é válida para ser aplicada aos textos de autoria feminina de séculos anteriores ao nosso?
Ao pensarmos assim, não estamos querendo ser condescendentes com essas autoras; mas também, por outro lado, estamos querendo (re)lembrar que a nossa análise não pode deixar de lado as condições e as injunções sob as quais essas autoras produziram seus escritos. Essa postura procura reconhecer a importância dessas escritoras na constituição de uma tradição literária feminina em nossa história, principalmente por desbravarem caminhos para outras autoras que lhes vieram na esteira e que, uma vez sedimentadas determinadas condições, puderam romper com a ordem estabelecida e, na busca por inclusão em novos espaços sociais, intentaram alterar as relações de gênero.
Como aponta Schmidit (2007, p.123), ao estudar a poesia de Delfina Benigna da Cunha, querer cobrar de uma obra o que ela, devido a determinados condicionantes histórico-estéticos, “não pode oferecer, é uma questão no mínimo polêmica, que deve ser colocada em pauta no quadro do revisionismo crítico da literatura produzida por mulheres e da própria história literária”. Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco, considerando-se o que dissemos em parágrafos anteriores, produziram uma obra bem comportada. Falaram do cotidiano das lides domésticas e de mulheres presas a esse cotidiano. Todavia, apesar de terem produzido uma obra bem comportada, essas escritoras não podem ter o seu valor diminuído. Sua obra reflete um período interessante de nossa sociedade, principalmente no que tange à condição feminina, e, como tal, é produto dessa sociedade, a qual não oferecia a essas escritoras as condições para outro tipo de escrita tampouco para outros temas. Elas, portanto, sofreram, em seu trabalho nas letras, do mal da época. Entretanto, devemos verificar, dentro da moldura do tempo, o esforço dessas mulheres que, herdeiras de uma tradição de séculos de silenciamento, procuraram fazer da escrita um meio de obter vista e voz.
Carolina Nabuco com seus irmãos e sua mãe
ESCREVER v.t.d. 1 representar por sinais gráficos (pensamentos, idéia etc.); redigir 2 riscar sobre uma superfície (palavras, frases, letras, caracteres etc.) 3 inscrever, gravar 4 B infrm. aplicar multa a (infrator de trânsito) t.d. e int. 5 criar (obra escrita); compor, redigir (e. um romance) (e. diariamente para o jornal) t.i. e t.d.i 6 (prep. a, para) enviar (carta, bilhete etc.).
Visto meramente como uma palavra em estado de dicionário, não nos apercebemos dos outros matizes de que se reveste este ou aquele verbete. Dicionarizada, a palavra pode nos apresentar as suas “essências”, mas deixa de nos passar outros efeitos que ela adquire quando posta em ação. Escrever, verbete que abre o presente texto, bem mais do que as acepções apresentadas, quando conjugado, quando posto em ação, quando mergulhado na intrigante rede ideológica que tece a sociedade em que vivemos, é, inevitavelmente, um ato político e ideológico por meio do qual aquele que escreve vai, sobretudo, se inscrevendo, imprimindo a sua marca, por mais indelével que seja, naquilo que escreve. Jean Genet, escritor francês, definiu muito bem o ato de escrever da seguinte forma:
A página que no início era branca, agora está cruzada de alto a baixo por minúsculos sinais negros, as letras, as palavras, as vírgulas, os pontos de exclamação, e é graças a eles que se diz que esta página é legível. Contudo, há uma espécie de inquietação do espírito, há essa vontade de vomitar muito próxima da náusea, há uma oscilação que me faz hesitar em escrever... seria a realidade esta totalidade de sinais negros? O branco, aqui, é um artifício que substitui a translucidez do pergaminho, o ocre marcado dos tabletes de argila, mas este ocre em relevo, como a translucidez e o branco, talvez tenha uma realidade mais forte que os sinais que o desfiguram.
Como estávamos dizendo, cristalizada nas páginas de um dicionário, a palavra perde “uma realidade mais forte”; escapa-lhe, portanto, essa “inquietação do espírito”, “essa vontade de vomitar próxima da náusea”. Essas realidades nos fazem, apropriando-nos ainda das palavras de Jean Genet, hesitar em escrever. Agora, pensemos nas escritoras do passado. Pensemos no quanto elas hesitaram em escrever e no quanto escrever pode ter-lhes sido nauseante. Para elas, escrever era muito mais do que representar (e representar o quê?) por sinais gráficos, era muito mais do que gravar, redigir. Escrever era uma luta por algo que lhes era amiúde negado: o poder de, pela escrita, dizer que eram, conhecerem-se a si mesmas e reconhecerem-se no Outro, ainda que esse Outro fossem elas mesmas.
E por que será que o “simples” ato de escrever era negado às mulheres? Primeiro, escrever pressupõe, no mínimo, saber dar contorno à tinta e fazê-la, portanto, assumir a forma de determinados caracteres no branco do papel. Temendo, talvez, que as mulheres (se) sujassem (n)as (im)purezas do branco, a elas era “concedido” o direito de não poderem escrever. Em decorrência disso, eis o segundo motivo por que a escrita, durante muito tempo, se apresentou às mulheres como um território selvagem, escrever era coisa de homem. As mulheres tinham atividades mais importantes com que se preocupar. Para que querer conjugar o verbo escrever se os homens já o faziam em seu lugar e se elas tinham outros verbos mais interessantes a conjugar: agradar, obedecer, calar, casar, parir, resignar-se...?
Dessa forma, tornar a escrita uma prática efetiva foi um exercício bastante doloroso para “o belo sexo”. Como escrever, se até então essa era uma atividade eminentemente masculina? Por outro lado, mesmo sabendo exercitar a escrita, escrever sobre o quê, se se deveria escrever sobre grandes feitos? E de que grandes feitos as mulheres haviam participado? Diante disso, escrever foi, antes de tudo, não só um exercício de descoberta de si, mas também um doloroso exercício de penetração num mundo onde ser mulher era ficar às margens das ações que estavam acontecendo, era trilhar por mares nunca dantes navegados porque os mapas estavam (ou eram escritos por) com os homens, era ser aspirante a coadjuvante em enredos escritos por homens e para homens. Sendo assim, como se tornar visível nesse mundo, sem ser vista como uma intrusa? Como manejar a pena, objeto fálico, para dela poder gozar daquilo que só aos homens era dado conhecer?
Diante de mais essa dificuldade, ou seja, sobre o que escrever, muitas mulheres, quando começaram a adentrar no universo da escrita, passaram a falar daquilo a que elas estavam mais próximas: o espaço privado, onde, assim como muitas das personagens que passaram a construir, permaneceram fechadas em casas e sobrados, mocambos e senzalas, espaços construídos por seus pais, maridos, senhores. Dentro desse universo do privado, essas mulheres falaram, sobretudo, dos laços familiares. A priorização das relações familiares nos escritos de algumas de nossas primeiras escritoras deve-se também ao fato de que às mulheres era permitido escrever desde que os seus escritos não ferissem “a moral e os bons costumes”. Por isso, são recorrentes nessas produções temas sobre o amor, o cotidiano familiar, ou seja, temas que, sob a “esfera perfumada de sentimento e singeleza”, não abordavam nada mais além do amor e flores. Caso fossem além e passassem a versar sobre assuntos sociais, políticos ou revolucionários, essas escritoras estavam transgredindo, já que estes eram assuntos da esfera pública e competiam apenas aos homens. Entretanto, mesmo falando sobre assuntos aparentemente inocentes, essas mulheres estavam, para lembrar os versos de Júlia Cortines que servem como epígrafe a este trabalho, levantando a pálpebra, atendendo ao imperativo de falar, de deixar abrir a boca há muito emudecida e trazer à tona segredos guardados entre palavras até então inauditas.
Noutras palavras, na busca por vista e por voz, as mulheres, ao escreverem sobre aquilo a que estavam próximas, foram, paulatinamente, adentrando no universo da escrita, dominus masculino, mesmo que seus escritos fossem marginalizados ou desvalorizados, visto que versavam sobre atividades que traziam em si as marcas que deveriam ser ocultadas: a desvalorização e a marginalização femininas. Assim, não deveria nos causar estranheza o fato de que, vivendo, durante muito tempo, em espaços desenhados e delineados pela arquitetura masculina, as mulheres tenham escolhido justamente esses espaços para falarem, dizerem que eram, são e foram.
Nesse sentido, dentre essas mulheres que ousaram fazer da pena instrumento de expressão de sua intelectualidade e de construção de aspectos de nosso imaginário, podemos citar Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Carolina Nabuco de Araújo (1890-1981), cuja trajetória de vida se confunde muito mais do que se separa. Pertencentes à elite do país, uma era filha de um Visconde e a outra de um deputado do Império, elas foram mulheres que se assemelham por terem percorrido um difícil caminho na busca por se firmarem como escritoras, processo esse em que contaram com a ajuda dos pais e do marido, no caso de Júlia Lopes de Almeida, pois Carolina Nabuco, vivendo na casa da Rua Marquês do Botafogo, no Rio de Janeiro, nunca chegou a se casar.
Parece que elas se assemelham também por terem, desde cedo, sentido a inclinação para a escrita. Se isso foi, a princípio, angustiante para Júlia Lopes de Almeida, que, ao escrever seus versos, se sentia como se estivesse cometendo um grande crime; escrever para Carolina Nabuco foi um sonho acalentado desde muito cedo, sem que com ele viesse o receio por estar fazendo uma atividade proibida ou o desejo pelo sucesso que viria alcançar com a publicação de uma valiosa obra como romancista, memorialista e biógrafa.
No plano da ficção, mais convergindo do que propriamente divergindo, tanto Júlia Lopes de Almeida quanto Carolina Nabuco escreveram uma obra marcada pela valorização do cotidiano das prendas domésticas e pela reduplicação dos valores tradicionais e pela imitação dos modelos da cultura dominante. Esse último aspecto faz-nos pensar que essas autoras exerceram o que estamos chamando de uma escrita bem comportada. Falar desse tipo de escrita implica dizer que, opondo-se a ela, existe também uma escrita mal comportada? Não enfrentemos, por ora, essa ferida. Atenhamos apenas ao que estamos chamando de escrita bem comportada, ou seja, um tipo de escrita cuja composição, temas e estrutura não se opõem ao que já vinham, em termos literários, sendo feito e era tomado como modelo aceito. Esse tipo de escrita dá forma a um conjunto de obras cujos temas e enredos não buscam, na fatura dos textos, nenhuma ruptura e, por isso, apresentam um esquema bem comportado de escritura, o qual se repete de uma escritora para a outra.
Além disso, os temas abordados por essas escritoras também podem ser vistos como bem comportados, já que reiteram os valores patriarcais vigentes à época. Entretanto, a análise do valor dessas escritoras a partir dos temas recorrentes na prosa delas deve ser algo feito com certo cuidado. Vivendo entre as paredes da casa, adornadas como o anjo do lar ou coroadas como rainhas, a essas autoras resta escrever sobre o quê? Como abordar temas que transcendessem as treliças do lar, se este era o ponto de partida e de chegada para muitas dessas nossas bandeirantes das letras? Se precisavam escrever para, conforme versos de Beatriz Francisca de Assis Brandão, poetisa mineira do século XVIII, trazer à tona “raros dotes [que] talvez vivem ocultos/que o receio de expor faz ignorados”, por que não escrever sobre o angustiante exercício de “lavar pratos e enxugar prantos todos os dias”? Pois bem, foi escrevendo sobre essa líquida rotina que as mulheres, em sua maioria, começaram a se inscrever no difícil, porque masculino, mundo da escrita. Isso não quer dizer que elas só tenham falado da casa e dos afazeres domésticos. Inúmeras foram as mulheres que escreveram sobre outros temas que iam de reflexões políticas até perquirições filosóficas.
Ademais, o olhar voltado à obra dessas autoras não deve procurar cobras delas aquilo que, social-cultural e historicamente, não podia ser ofertado a elas. Exigir-lhes uma ruptura com uma ordem dentro da qual e para a qual elas haviam sido educadas ou exigir-lhes a produção de uma obra que já nascesse sem nenhum senão estético é um tanto quanto descabido. Além disso, a própria categoria de estético deve ser (re)pensada, uma vez que ela foi criada para aferir a qualidade de textos escritos, em sua maioria, por homens. Sendo assim, será que esta categoria é válida para ser aplicada aos textos de autoria feminina de séculos anteriores ao nosso?
Ao pensarmos assim, não estamos querendo ser condescendentes com essas autoras; mas também, por outro lado, estamos querendo (re)lembrar que a nossa análise não pode deixar de lado as condições e as injunções sob as quais essas autoras produziram seus escritos. Essa postura procura reconhecer a importância dessas escritoras na constituição de uma tradição literária feminina em nossa história, principalmente por desbravarem caminhos para outras autoras que lhes vieram na esteira e que, uma vez sedimentadas determinadas condições, puderam romper com a ordem estabelecida e, na busca por inclusão em novos espaços sociais, intentaram alterar as relações de gênero.
Como aponta Schmidit (2007, p.123), ao estudar a poesia de Delfina Benigna da Cunha, querer cobrar de uma obra o que ela, devido a determinados condicionantes histórico-estéticos, “não pode oferecer, é uma questão no mínimo polêmica, que deve ser colocada em pauta no quadro do revisionismo crítico da literatura produzida por mulheres e da própria história literária”. Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco, considerando-se o que dissemos em parágrafos anteriores, produziram uma obra bem comportada. Falaram do cotidiano das lides domésticas e de mulheres presas a esse cotidiano. Todavia, apesar de terem produzido uma obra bem comportada, essas escritoras não podem ter o seu valor diminuído. Sua obra reflete um período interessante de nossa sociedade, principalmente no que tange à condição feminina, e, como tal, é produto dessa sociedade, a qual não oferecia a essas escritoras as condições para outro tipo de escrita tampouco para outros temas. Elas, portanto, sofreram, em seu trabalho nas letras, do mal da época. Entretanto, devemos verificar, dentro da moldura do tempo, o esforço dessas mulheres que, herdeiras de uma tradição de séculos de silenciamento, procuraram fazer da escrita um meio de obter vista e voz.