terça-feira, 30 de março de 2010

CARTA PORTUGUESA APÓCRIFA

I


  
Gostaria de começar dizendo que, ao escrever para ti, insiro-me naquela tradição de missivistas ridículos a que se refere Álvares de Campos, ao dizer que todas as cartas de amor são ridículas. No entanto, como ele mesmo trata de se justificar, somente aqueles que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículos. Ridículo ou não, eu precisava escrever-te. Queria que cada palavra compusesse uma parte de ti que sonhei em ter para mim. Inútil paisagem. Mas cada uma delas é uma tentativa vã de preencher a tua ausência em mim, vazio que me corrói, mas hiância de que me alimento.
Cada palavra, pensada, antes de ser escrita, era uma forma de eu tentar entender como cheguei ao estado em que estou, neste exato momento em que escrevo estas palavras que queria que fossem tuas, mas que são apenas minhas. Estas palavras que deveriam ser para ti, porém, são para mim mesmo. Ainda que eu queira, não escrevo para ti. Escrevo para mim mesmo, para alimentar a dor que me causaste, única marca de ti em mim.  
Espero o dia em que as lembranças dessas palavras soem a mim ridículas. Todavia, até lá, vou, passo a passo, afundando-me nessa ausência que me sufoca. Como posso sofrer por algo que não foi meu? Queria tanto que respondesses às minhas perguntas! Mas elas morrerão comigo. Não cometerei duas vezes o mesmo erro. Pelo primeiro, que foi gostar de ti, ainda sofro. Pelo segundo, que foi perguntar por que me recusaste, tive mais ainda intensificada a dor advinda do primeiro.
Desde então, meu telos é sofrer. Mas para que tanto sofrimento? !Não sei responder, ainda que eu tenha na alma dilacerada os esboços de uma resposta. Eu que não aprendi a sofrer a minha dor resignadamente! Com ela, a ti só fiz acentuar o ridículo em que me tornei. Confessas que me achavas assim: RIDÍCULO. Queria poder ouvir gritares para mim. Mas não, insistias em fazer-te presente. E não sabes como a tua presença aumentava a minha dor! Queria poder fugir, mas algo me tragava a ti.  Era inútil lutar contra o que não se queria lutar. Era inútil dizer que me afastaria de ti ou pedir que te afastasses de mim. Qualquer tentativa minha de fuga era em vão. Não adiantava fugir, quando eu queria estar próximo, sentir, mais do que o seu corpo, a sua presença! Foste a metade que era preciso arrancar de mim, mas que eu queria que ficasse colada ao peito, ainda que me fizesse doer. Eu suportaria o latejar da dor para que tu não te fizesses em mim ausência. Ausente era eu, que precisava de ti para me preencher! Ah, Mariana, agora entendo o teu sofrer! Eu, que rias de ti, vejo-me em situação deplorável! Sóror Mariana, intercede por mim para que, se não aplacada, seja, ao menos, a minha dor aliviada!       
Olha, não quero que penses que eu estou com raiva de ti. Enviei-te aquela mensagem porque achei que aquele seria o momento de saber o porquê de uma pergunta cuja razão de ser nem sei se existe mais ou se existiu alguma vez. Deve ter existido, pelo menos em minha cabeça. Por que não eu? O que me faltava? Essa pergunta foi um fantasma que me rondou durante muito tempo. Se, ao menos, tivesses me dito que em mim não faltava nada. Que eu não te servia não por falta, mas por excesso! De amor, de atenção, de entrega. E que tu não estavas preparado para ser responsável por aquele cuja vida estava a depositar em tuas mãos. Talvez, seja essa a única queixa que eu tenho de ti.
Hoje não me interessa mais saber por quê. Se não te pronunciasses, era porque achavas que não era preciso dizer nada. Mas não sabes o quanto sofri com o teu silêncio que me doía muito mais do que a tua recusa, a tua indiferença, a tua confissão de novos amores, de teus encontros fortuitos aos quais eu me entregava a imaginar!
Quando, naquela mensagem, eu te falei que deverias ter sido mais claro e objetivo, estava referindo-me ao fato de que, quando percebeste o meu interesse, que estava descambando para algo bem diferente de uma amizade, poderias ter tido uma conversa franca e ter-me dito: “Não se iluda, eu não gosto de você do jeito que você pensa ou que você quer que eu goste”. Teria sido menos doloroso e já teríamos resolvido coisas que hoje ainda empurramos e que talvez ameace aquilo que mais prezo em ti: a amizade, ainda que seja essa a grande mentira de que eu me alimentava. Terias encurtado tanto o meu sofrer! Mas não, calavas-te e, assim, alimentavas-me as minhas projeções. Não digo esperanças. Essas morreram nos primeiros meses alimentadas pela tua indiferença. Desde, então, pesa-me viver.
Ainda assim, não vou negar que gosto de ti, que sinto ciúmes e até mesmo falta.  Tu sabes que qualquer negativa seria falsa. Queria tanto que soubeste a falta que me fazes! Como algo que não nos pertenceu pode fazer tanta falta?! Creio que por isso mesmo, por nunca ter te tido, é que me tornaste mais e mais necessário, objeto precioso por ser-me inacessível. A falta do que poderia ter sido, mas não foi dói mais do que a falta do que foi e hoje não é mais! Estranho labirinto da saudade.
Passados esses anos todos, gosto, ainda, de ti de um jeito que não sei explicar, de uma maneira que só pode ser expressa respondendo, como Montaigne o fez diante do amigo morto: “Porque és tu; porque sou eu”. Não sei o que vi. Apenas que gosto.
Não sei por que não tiveste aquela conversa por que ansiei mais do que os teus próprios beijos. Ainda me lastimo por isso, muito mais do que por tua recusa. Talvez preferisses calar-te pelo mesmo motivo por que eu também me calei, recusando-me a ter aquela conversa, e que me fez, de certa forma, adiar declarar-te que tu eras desejado por mim: o medo de perder alguém que, de repente, se me tornou importante. Como eu queria que, de repente, a dor que sinto por ti se dissipasse em mim! Mas ela, irremediavelmente, resiste a todas as formas de que me valho para aplacá-la.
Só que o meu medo não tinha razão de ser: eu não temia perder-te. Eu temia perder a imagem de ti que eu criara em mim. O doloroso não foi perceber que não me “amavas”, uso esse verbo na falta de outro melhor, na mesma proporção em que eu te amava. Não vou dizer que não sentiste nada por mim. Sentias, sim. Quero acreditar que sentias! Não te quero atribuir a culpa da indiferença completa a mim. Mas fui egoísta de mais, exigindo só para mim o que também dividias com os outros: carinho, atenção, amizade.
 Eu não soube amar sem exigir nada em troca. Eu amava, mas queria como recompensa a ti, somente a ti. Strani amore. Mas o doloroso foi perceber que eu amava uma projeção criada por mim mesmo. Se tiveste culpa, e não queria aqui achar culpados nem inocentes, foi apenas de teres sido escolhido por mim para seres o centro de minhas projeções. Mas neste caso a culpa não foi tua, ela foi minha mesmo.  E hoje sou juiz e algoz de minha própria dor! 
Vendo os fatos agora, acho engraçado que, apesar de desejar de ti um único beijo, só isso apenas, eu não desejei ou imaginei nada, além disso. Ainda não te desloquei do meu centro de projeção. Não sei quando farei isso. Mas quero que saibas que, independentemente de ainda seres ou não esse centro, ainda tu me importas. Procurei sofrer a minha dor resignadamente. Entretanto, não consegui. Falhei todas as vezes em que tentei.  
Queria tanto que me tivesses ensinado a não gostar de ti como eu ainda estou a gostar! Ensina-me a desprender-me de ti, a soltar-me, a deixar que vás embora. Na falta dessas lições, inicia-se para mim um novo tempo: o de recolher-me. O da revolta já passou! Preciso, tal qual fênix, renascer. Por enquanto estou a sobrevoar o hades, a desviar-me das chamas em que me consumo desde quando o meu olhar mirou o teu. Olhos nos olhos. OLHARES. Minha perdição. Se eu soubesse o que me iria acontecer, teria desviado os meus olhos dos teus aos quais me prendi como se tivesse sido petrificado pelos olhos da medusa e, por isso, ainda vivo a arder neste inferno que é te amar.         

sábado, 20 de março de 2010

O ÚLTIMO ENCONTRO

Para FVMP

     Acordara ao som do telefone. Ainda sonolento, do outro lado da linha, ouviu uma voz que há muito ele resolvera esquecer. “Preciso vê-lo mais uma vez. Por favor, venha logo”, pôde escutar, enquanto o som ia, paulatinamente, tornando-se quase inaudível. Pensou que estivesse ainda dormindo. Pegou o telefone: “– Alô! Alô! Quem é? Isso não são horas de passar um trote. Quem é?”, perguntou meio que irritado.
     Do outro lado, já não era a mesma voz. Por isso, viu-se obrigado a pedir desculpas. Era feminina a voz  que se identificou como sendo atendente do Hospital Regional. Pensou, logo, na mãe ou no irmão com os quais há tempos não falara. Mas não era sobre eles de que se tratava.
     A moça perguntou-lhe se podia comparecer à unidade de terapia intensiva ainda naquela manhã. Havia um paciente que insistia em vê-lo. Era bom que não se demorasse. Ao ouvir o nome que a atendente lhe dissera, vieram-lhe várias lembranças que, há muito, empenhara-se em esquecer. Repassou-lhe os dados que lhe foram pedidos e confirmou que iria ao hospital ainda durante aquela manhã. Não se demoraria. Anotou o número da enfermaria: 227. Procurou vestir-se o mais rápido possível, enquanto telefonava para o serviço de táxi.
     Depois de tantos anos, quando ele pensava que o passado havia sido apagado, a vida, de súbito, lho trazia naquela manhã de dois de agosto, como tristes trastes deixados escondidos em algum canto de uma antiga gaveta de guardados perdida entre as velhas tralhas largadas no sótão da memória. Ele ainda tinha guardado o seu número de telefone. “Por que, nesses anos todos, nunca ligara?”. Era inevitável aquele encontro. Talvez, agora, pudesse ajeitar as coisas que ficaram pendentes e que eles, ao invés do ponto final, resolveram sustentar à base de reticências. “Bem que poderia ser em outro local”, pensou consigo, enquanto penteava o cabelo de frente ao espelho. Desde criança, sentia ojeriza a ambientes hospitalares. O cheiro de morte a percorrer cada um dos corredores o espantava. Sentia-se intimidado. Temia ser uma daquelas pessoas para quem a vida não era mais incerteza alguma.
     “ – Estou cansado”, dissera-lhe. Teve vontade de completar a frase: “Estou cansado de mim, de você, de saber que só liga para mim quando precisa de algo. Enfim, cansei de estar sempre presente para você e receber como recompensa as suas ausências temperadas com o que era pior: a sua indiferença. Estou cansado de ser usado à minha revelia”. Disse-lhe apenas aquela primeira frase, enquanto fechava a porta, deixando de lado um mundo que já era para ter ficado para trás.
     Passaram-se mais de dez anos depois daquela última conversa. A vida foi seguindo seu rumo. Nos primeiros meses, as lembranças batiam ao peito que latejava, mas, depois, cessava: aprendera a curtir a dor da separação, a fazer das recordações acalanto para uma dor que, pouco a pouco, foi deixando de doer, que perdera a sua razão de ser. Os anos vieram e, só uma vez ou outra, é que lhe vinham à memória o nome, a lembrança do sentimento acalentado, mas as imagens não eram tão mais nítidas como antes. Embaçara-se algo. Vago, fluido, tudo parecia ser, agora, a paisagem de um quadro impressionista.
     “– Por que você está ao meu lado, se todos, inclusive você mesmo, dizem que eu não presto?”, foi a frase que lhe veio à memória, enquanto, já no táxi, dirigia-se a caminho do hospital.
     Aquela pergunta, durante o jantar na casa dele, quando ainda podiam sorver da companhia um do outro, continuava a reverberar em sua cabeça. Feita assim, de chofre, ela havia-lhe desconcertado, deixando-o sem resposta alguma. Mas, renitente, a pergunta persistia, como a resistir ao esquecimento, e exigia-lhe uma resposta que creio ainda ele não ter, mesmo depois de passados tantos anos. Veio-lhe à mente ter sido aquela uma das poucas vezes em que o Outro o deixara sem resposta. Ainda assim, depois de muito pensar, ao longo desse tempo todo em que nem mais se lembrava da imagem daquele que, agora, agonizava, embora a imagem dele já estivesse há muito corroída pelo tempo, pelo esquecimento necessário, aquela pergunta manteve-se viva; incólume, ela resistia qual enigma semelhante ao da esfinge, a esperar seu Édipo.
     Das vezes em que se detivera sobre o que lhe fora perguntado naquele dia, ele, não encontrando resposta, pensava que poderia ter dito, simplesmente, que vivia ao seu lado porque gostava dele. Sim, gostava de uma forma que, ainda hoje, não sabia explicar. Apenas, sentia-se bem ao lado daquele de quem, em tempos outros, gostava com uma intensidade muito maior do que naquele tempo em que lhe fora feita aquela pergunta: “– Por que você vive ao meu lado, se eu não presto?”. “Ah, se fosse fácil, desfazer-se de quem gostamos!”, suspirou com tal intensidade que o motorista do táxi perguntou se ele estava bem.
     Lembrou-se das muitas palavras que, em noites de mais aguda tristeza, escrevera e que, mesmo reveladas, passaram indiferentes ao Outro: “Tornei-me a noite, enquanto você tornou-se-me o orvalho, negro orvalho, por que passei a ansiar, apesar. De tanto amá-lo, não só ofereci o que eu era, como também tentei oferecer o que eu não era e, talvez, o que eu nem chegasse a ser. Agi da forma que só aos loucos é dado a entender. Por isso, não me preocupei que me entendesse, apenas queria ser amado na mesma proporção em que eu amava.
     Agora, em que a vida lhe chamava para aquela prestação de contas, ele tinha a certeza de que, naquela época, dia a dia, afundava-se, cada vez mais, em suas próprias projeções. As cartas escritas, os bilhetes enviados, as músicas ouvidas, os cheiros sentidos, as lembranças guardadas, tudo fora parte de uma só lancinante sinfonia: a dor de quem não podia ter a quem elegera como o escolhido.
     Agora, não mais temia deparar-se com o passado. Era preciso ajustar as contas, resolver aquilo que fora deixado olvidado, arrastado, por muito tempo, como uma ferida que, fechada, nunca cicatrizara de vez. O tempo de sofrer já passara. Ainda, assim, o perdido lhe deixava confundido, porque não mais lhe doía, como antes, mas lhe deixava a saudade das coisas findas, amigável fantasma com quem somos obrigados a aprender a conviver.
     “Houve um tempo em que aquele meu gostar se conjugava como amar. Eu amava inclusive tudo o que doía em você porque era o que também doía em mim. Mas o meu não era o amor liquefeito a que você estava acostumado a dar e a receber. O risco era inevitável em um bordado cujo centro eu queria que fosse só você. Paguei o preço, mas não sei se recebi o troco merecido. Também não o quero mais saber. Hoje, bordado não mais há; ficou-me apenas o risco. Houve um tempo em que os sentimentos gestados não mais se ouvem. E por me ter feito sofrer, mais e mais eu aprendi a amá-lo. Tanto que, àquela época, só podia ver em você virtudes, mas vício nenhum”.
     “Foi-se o tempo em que você fazia-me falta. Você tornou-se apenas um corpo que agora se despede da vida”, ressentido, pensou em dizer aquelas palavras, mas não havia mais tempo para ressentimentos e também não era isso que ele queria dizer. A hora da despedida também era a hora para o encontro. Estava ali para dizer ao Outro que já podia partir tranqüilo. E, o que mais lhe queria falar, porém, é que guardaria sempre as lembranças daqueles dias anteriores à separação, das conversas que, hoje, tinham cheiro e gosto de jogado fora, mas que, ainda, resistiam ao tempo e à distância, como o cheiro suave de um perfume a preencher, em vão, as faltas de que e para as quais somos feitos.

quarta-feira, 17 de março de 2010

DIZENDO ADEUS

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. Essa frase, há muito, trago-a na memória. E dela me aproprio para dizer que rememorar é preciso, viver não é preciso. Ou seja, é preciso trazer à memória aquilo que estava imerso nas densas águas do rio Lete. E quando empreendemos singrar contrários ao curso desse rio, navegamos por mares sempre desde antes esquecidos. Nessa demanda em busca desse graal, que desconhecemos e que é sempre um eterno devir, somos impulsionados sem nem sequer sabermos que estamos nessa empreitada. E assim com fios que muitas vezes desconhecemos, seja porque invisíveis, seja porque, mesmo visíveis, não os percebemos, vamos tecendo um bordado no qual somos mais o desenho que, ponto a ponto, está sendo confeccionado do que o próprio bordador. Espécie de Penélope, tecemos não a fim de que Ulisses retorne, mas a fim de nos conhecermos a si próprios. Ulisses somos nós mesmos. Por isso, o nosso bordado é um contínuo traçar e destecer fios a fim de compor um desenho que se nos afigura como inefável. Mesmo assim, numa empresa que não é vã, tecemos e no traçado das quase sempre nem bem traçadas linhas, um ponto une-se a outro que, por sua vez, liga-se a mais outro e, assim, vão compondo esse bordado que me revela, me desvela, me esconde, me expõe. E como sempre estamos bordando novos bordados para este grande tecido a que chamamos vida, bordamos uns, destecemos outros. Guardamos estes, escondemos aqueles. Mas todos esses bordados trazem em si as marcas não só de nós mesmos como de outras pessoas. Pessoas que nos trouxeram alguns novelos, sugeriram pontos, cores para o nosso bordado, ouviram nossas angústias diante da dificuldade em algum ponto, compartilharam nossas alegrias quando o bordado estava pronto e era preciso começar mais um outro, em um novo tecido, com novas cores, pontos novos, desenhos ainda a serem pensados. Sendo assim, gostaria de agradecer às pessoas que com um sorriso, um abraço, uma palavra de incentivo fizeram com o ano de 2009 fosse bordado com cores alegres, tão alegres que ofuscaram os matizes de tristezas que vez por outra tentavam borrar o contorno de nosso bordado de 2009.  Se, ao longo deste ano que finda, pudemos pintar o sete e desenhar o oito, acreditamos que o mais que fizemos foi bordar. E assim, pude bordar um novo cenário para mim em Monteiro, onde pude, durante os meses em que fiquei hospedado por Raquel, firmar os laços de uma amizade que começara a ser bordada nas aulas da UFCG. E hoje, eis que aquela menina que ainda pensava em trabalhar com Virgilio Ferreira (ou era outro português?) encontra-se como água para chocolate, tecendo um bordado que a eternize em vida: seja bem vinda Laurinhaaaaaaaaa. Se Raquel foi a ponta de meu bordado, a outra ponta (não sei se a direita ou a esquerda) foi Aldinida. Minha cara super-ego. Apesar de não gostar dessa forma pós-moderna de afeto, sempre receosa de me dar conselhos, tão bem vindos, para determinadas partes de meu bordado. Creio que, em Monteiro, pudemos firmar os laços que deixamos entrelaçar quando estávamos fazendo o concurso de 2007 e eu a vi andando pelas ruas de Campina como uma lady. Hoje a vejo como Inês a esperar seu Pedro. Joana, minha querida leitora, com você pude compartilhar as minhas alegrias e tristezas plasmadas esteticamente, confessando certos segredos via literatura. Também não posso esquecer dos copos de cerveja, de vinho que, solidariamente, compartilhamos, seja na pizzzaria, no Saborear, em Sertânia, ou simplesmente lá em casa. Obrigado pela sua atenção, seu carinho, seu jeito canceriano de ser. Que 2010 seja pródigo em novos contos!!! Shirley, que, antes rainha da perimetral, veio, das terras da Galícia, ser a outra ponta do meu bordado onde ficaram desenhadas as imagens e os sons da palhoça Zé Marcolino, nosso portal para o umbral onde deixamos as luzes de nossos sorrisos e o calor de nossas danças. Por fim, a você, que poderia ter sido o centro do meu bordado, mas se satisfez com um dos quadrados à sua escolha. Gostei de tê-lo conhecido, Victor, dos momentos em que assistimos a filmes, em que falamos de nossas alegrias e tristezas, mas sobretudo do momentos em que, unidos, procurávamos criar imunidade a Monteiro, tentando, quem sabe, escrever os esboços de uma estética de (nossa) existência. Se este texto se abre com dando adeus, é porque o nosso bordado de 2009 está quase concluído, é preciso escolher novos tecidos, novos fios, novas tintas para o bordado de 2010. Tudo pode ser novo, mas espero que, nas cartografias que hei de desenhar no meu bordado de 2010, vocês estejam presentes para que, aos poucos, possamos ir juntando um ponto, tecendo outro deste bordado que ainda não terminei, que ainda está se constituindo, que, a cada girar da roca de fiar, toma formas que nem sempre foram previstas por mim. Enfim, o texto é escrito é um único parágrafo, porque espero que estejamos unidos e possamos continuar compartilhando alegrias (e as inevitáveis tristezas) nessa trajetória de roteiros vários, ainda, sem ponto final, apenas reticências...    

Obrigado,
Brâmane de ouro e prata.
Monteiro, noite fria de 20 de dezembro de 2009

Porque escrevo

Como resolvi postar novamente os meus contos, acho interessante (para mim) postar também esta carta-resposta que escrevi a uma amiga que me fez algumas perguntas sobre os meus contos. Segue, portanto, a resposta.




Jackelaine,


Sinto-me numa situação incômoda ao ter de falar sobre os meus escritos, os quais, pensei, não deveriam ter saído da minha gaveta de guardados; mas a vaidade de ser lido foi maior e eu mandei para um ou outro amigo que foram lendo e gostando, dando uma sugestão aqui, um pitaco acolá sem que eu nem sempre concordasse com eles. Esse incentivo fez com que eu retirasse da gaveta de guardados os textos. Olhe que uns, os da época do Premen, realmente passaram muito tempo de molho. Como uma de suas perguntas era sobre qual ou quais desses contos escrevi no tempo de estudante de ensino médio, digo-lhe que “A partida” e “Prestação de Contas” surgiram de esboços de redação pedida numa das aulas de português. Eles foram reformulados e encontram-se na versão que você leu.
O conto “A partida” foi publicado na Revista Cordeletras, como sendo de ..., um dos meus pseudônimos. Ainda não cheguei a ter a criatividade de Fernando Pessoa para a criação de heterônimos. Os meus são sempre pseudônimos. Eu me escondo por detrás deles. Mas voltando à gênese dos contos, afora aqueles dois a que me referi antes, os demais foram produzidos entre 2007 e 2008. Apenas os dois últimos foram escritos este ano, já estando eu aqui em Monteiro.
Você poderia me perguntar por que resolvi escrever. A primeira resposta seria: escrevo como conseqüência do fato de eu ser um leitor, não diria ávido, mas um leitor acima da média. Tenho verdadeira compulsão por livros. E, como você sabe um pouco de minha vida, deve saber também que a leitura foi um subterfúgio para que, apesar de todas as agruras que marcaram a minha vida, eu continuasse a acreditar na vida, mesmo havendo tantos apesares: as parcas condições econômicas, a relação nem um pouco amistosa com meu padrasto, a falta de afeto em casa. Desde pequeno, senti-me meio que deslocado do mundo. Por isso, eu lia. Ler era uma forma de compartilhar as alegrias de que eu não podia desfrutar com pessoas de carne e osso, apenas com aqueles seres de papel.
As personagens dos romances, contos não só dividiam alegrias comigo, mas me ensinavam a conviver com as minhas tristezas, as minhas dores. Daí vem o segundo motivo por que, de súbito, eu resolvi escrever. Os contos são formas de eu exercitar as minhas alegrias, as minhas tristezas. Como eu me sinto um ser triste, melancólico, apesar de não aparentar, os meus textos são permeados de tristeza, de melancolia. Ora, quem só encontrou tristezas pode falar de alegria? Mas calma, e aqui talvez seja o professor de literatura que está a falar, tudo isso que eu disse sobre os meus contos pode ser uma encenação. Escrevo sobre coisas tristes porque, como disse numa de minhas aulas, a tristeza só me é bela se plasmada artisticamente e, só assim, ela vale a pena ser vivida.
Você me pergunta se as vozes em meus contos são todas femininas. Eu diria que não. Existem vozes femininas e vozes masculinas. O problema é que as vozes, quando masculinas, se assemelham às vozes femininas porque, em alguns casos, ambas falam de suas dores advindas dos desencontros amorosos, da indiferença do ser amado. No caso das vozes masculinas, o outro do seu afeto é do mesmo sexo. E falar de um homem que gosta de outro homem não me fácil. Por isso, como espécie de escamotear essa homoafetividade que permeia uma parte significativa dos contos deste livro, é a possível não sei se diria ambigüidade ou neutralidade, agora não sei, da utilização do par ele X outro.
Não sei se isso seria suficiente para dizer que esses contos são literatura gay. Até porque não sei o que de fato caracteriza uma literatura gay. Se for pela temática, os contos podem ser enquadrados. De qualquer forma, creio que podemos falar na presença de uma homoafetividade nesses contos. Só posso dizer isso, porque não entendo nada dos estudos queer. Apenas o desejo de estudar mais sobre o assunto, assim que terminar o doutorado.
Agora me lembrei de uma pergunta sua sobre as pessoas a quem eu dediquei os contos. Todas elas são pessoas com quem eu convivi ou com quem convivo. Os contos não foram escritos pensando nelas. Apenas dois ou três foram escritos tendo na mente a pessoa a quem eu dediquei, seja porque me pediu para escrever o conto, seja porque eu me senti encantado pela pessoa e quis escrever o conto como um presente que queremos dar quando estamos embevecidos por alguém. Os outros foram dedicados como uma simples forma de demonstração de afeto que sinto pela pessoa cujo nome consta na dedicatória, mas foram escritores sem ter em mente esta pessoa.
            Por fim, ainda relacionado à questão das vozes em meus textos, se são masculinas, se são femininas, digo-lhe que são vozes humanas que busquei representar. Acho que é isso: todos os textos que você leu buscam representar o humano, com suas alegrias, mas, sobretudo, com suas tristezas e angústias diante da recusa ou decepção amorosas ou diante do próprio existir. Talvez, essa seja, de fato, a grande temática do livro, algo que, como um vitral, é composto de pequenos cacos. Na construção desses personagens, de seus dramas, busquei encontrar-me a mim mesmo. E o pleonasmo aqui é bem intencional.  Se há alguém que se sentiu tocado é porque deve trilhar, ainda que por outras veredas, esse longo caminho que é a existência que se torna menos árdua quando encontramos alguém com quem compartilhá-la, seja como companheiro, seja como leitor, mas sendo sempre uma companhia.

Monteiro, 03 de outubro de 2009
    

terça-feira, 16 de março de 2010

DOCE NOVEMBRO

                                                 
Para Leucio de Farias Guilherme 
                                       
Há pessoas que nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.
                                                                                      Cecília Meireles


     Depois de uma desilusão somada a mais uma, enfim a dezenas de tantas outras desilusões, Marcos, como lhe aconselhara uma velha amiga, resolvera cair na real. Apostava que, daquele momento para frente, tudo seria diferente. Aquele por quem se apaixonara deveria cair no esquecimento há muito necessário, como aquelas coisas que é preciso que perder pela vida. Prometia isso a si mesmo. Era preciso acreditar nisso, ainda que pudesse vir a ser mais uma de suas vãs ilusões.
     Na junção de suas carências, amalgamando ausências e ansiando por afetos há muito negados, deixara, sem perceber a dubiedade dos gestos e a ambigüidade dos olhares, deslumbrar-se por aquele a quem, como ele mesmo lhe dissera, devia ter visto como apenas um amigo. Fora condenado pelo simples fato de que, à revelia de sua vontade, se apaixonara por aquele de quem se aproximara sem nada esperar, esperando, depois, tudo. De tanta convivência, esperava que brotasse mais intimidade; viera-lhe a recusa a pôr em ruínas todo o seu inventário de ilusões.
     Colecionador de corpos, o Outro que ele quis dividia o coração com outros e também lhes ofertava o seu corpo, exceto com ele a quem sequer as migalhas eram oferecidas. Sofrera, principalmente porque não havia aprendido (ou não queria?) esquecer. “O amor é uma grande ilusão e nós não temos razão...”, dizia para si mesmo, deixando o pensamento incompleto, buscando consolo nas horas em que sentia o peito apertado.
Mas já estava se encerrando o tempo de chorar, sofrer e lamentar. Havia aprendido a tirar proveito de sua dor e ela já estava a dar sinais de cansaço. Pouco a pouco, pararia de sofrer com aquela ausência e não mais viveria à base de tristezas, morrendo de saudades. Começava a esboçar-se para ele um novo tempo em que deveria deixar para trás o que precisava ficar para trás: era hora de fugir do inferno, em busca de seus girassóis. Do coração despedaçado, estava aprendendo a fazer, a partir dos cacos, um mosaico. Saíra fortalecido: amalgamara na dor a alegria.
     Estava esperançoso de que chegasse o momento em que poderia dizer ao Outro de sua dor: “houve um tempo em que eu disse ser você importante para mim, ainda o é, embora não mais com a mesma intensidade tanto que, hoje, noto a sua ausência, mas não mais sinto a sua falta”. Vivia na esperança desse dia em que, enfim, poderia perceber-se cansado do Outro, não necessariamente do Outro, mas, como disse a poeta, cansado de si através do Outro.
     E de tanto esperar, eis que ela, não dura, mas caroável, há muito ausente, se fez presente. As coisas que a vida faz. Há horas em que ela destece qualquer possibilidade de esperança; outras vezes, reúne todos os fios e voltamos a acreditar naquilo que, antes, era só uma possibilidade remota. Entre esses mistérios que a mão do acaso nos oferece como alento, vamos, com fios que muitas vezes desconhecemos, seja porque invisíveis, seja porque, mesmo visíveis, não os percebemos, tecendo uma esperança aqui, outra ali, deixando mais uma outra acolá e, no traçado das quase sempre nem bem traçadas linhas, um ponto une-se a outro que, por sua vez, liga-se a mais outro e, assim, vão dando contornos àquilo que, muitas vezes, se nos afigura como mistério e que, entretanto, nos revela, nos desvela, nos esconde, nos expõe. A vida e seus sortilégios.
    Para Marcos, a esperança não veio verde, não tinha a forma de um ortópdero. Veio de carne e osso: estudante, vinte anos, magro, alto, lisos cabelos castanhos alourados, cicatriz no braço direito. Lúcio era o seu nome. Ele chegara quando, retalhado, o coração de Marcos, depois de tantas vezes enganado e sem mais nenhum marco, apenas marcas, ensimesmara-se. Estando Marcos à deriva, Lúcio lhe aparecera como um farol, renovando-lhe as esperanças de guarida em meio às tormentas contra as quais ainda lutava contabilizando perdas e caçando ausências.
     Era novembro. Subia pela Rua Treze de Maio quando lhe deu vontade de entrar numa lan house. Mais do que ler emails, Marcos precisava distrair-se enquanto não chegava a hora de embarcar para a cidade onde estava morando. Campina agora lhe era só um porto de passagem, mas ele sentia saudades do tempo em que aqui vivera. Percorrer as ruas daquela que ainda era a sua cidade, ouvir o barulho da buzina dos carros e das motos, desviar-se deles ou sentir-lhes a fumaça a rasgar as narinas era encontrar-se com velhos hábitos com os quais, desde que se mudara, não tivera mais contato.
     A nova cidade tinha aspecto de uma cidadezinha qualquer parada no tempo e marcada por uma vida cotidiana e tributável. Toda vez que viajava de lá, Marcos procurava, antes do retorno, reter a passagem das horas. Por isso, andava a esmo enquanto o tempo lhe resolvera presentear arrastando-se lentamente. Como não sabia o que fazer e lhe sobrava muito tempo antes da viagem, veio-lhe a vontade de acessar qualquer coisa na internet que lhe pudesse servir de distração. Pensou em ir à velha lan house a que sempre ia quando morava por aqui. Entretanto, de súbito, resolvera entrar numa outra a que não costuma ir. De todas as existentes ali, ele havia sido impulsionado, sabe-se lá por quem ou por que, a entrar naquela.
     Havia sentado numa das cabines da lan quando seu olhar cruzou-se como o do jovem rapaz na cabine da frente. Sentiu aquele frenesi. Com vergonha, desviou a vista, mas o jovem rapaz, aqui e acolá, lançava-lhe furtivos olhares. Naquele hora, o desejo de um passara a ser o desejo do outro. Passada mais de meia hora, entre um flerte e outro, Marcos criara coragem e, com as mãos, fizera-lhe gestos a indicar que queria encontrar-se com ele. Lúcio não entendera. Por isso, Marcos pegou o celular e apontou-lhe, como índice de que queria o seu número. Lúcio, agora, entendera. Pouco a pouco, foi lhe dizendo os números. Anotados, Marcos cuidou de passar-lhe uma mensagem: “Pode encontrar-se comigo, agora?”. Lúcio respondeu afirmativamente com um meneio da cabeça. Dali a pouco, saiam, ambos. Subiram a Rua Treze de Maio a conversarem como se fossem velhos amigos. Convite feito; convite aceito. Almoçaram. Nomes revelados, telefones trocados, desejos em confluência. O tempo que, antes, se arrastava, agora, aligeirava-se. Era preciso partir, mas não se via nota de despedida: havia a promessa de um novo encontro. Deram-se as mãos. Olhos nos olhos: luminescências.No ônibus, de volta para a cidadezinha qualquer, Marcos pegou o celular e passou a escrever uma mensagem: “Gostei de tê-lo conhecido. Ainda que não seja nada sério, espero que não tenha sido apenas um encontro casual. Aguardarei a sua visita. Beijo, o mesmo que eu senti vontade de dar, mas não tive coragem”.
     E o doce daquele novembro estendeu-se por todo o dezembro, depois o janeiro próximo e todos os outros meses que vieram em seguida.

MEMÓRIA

Para você, a cuja altura nunca pude estar, deixo com saudosas lembranças estas últimas palavras.


KF, meu retórico favorito,



     Queria ter-te aqui ao meu lado, contemplar o teu rosto e sentir-me feliz. Mas de ti o que tenho é a vaga lembrança de um corpo que não foi meu e o pesadelo de imaginá-lo em outras bocas, outras mãos, por cima ou por baixo de outros corpos, nas carícias de outros pêlos.
     Se soubesses o quanto me és precioso... Devo, entretanto, contentar-me em te ter apenas como essa lembrança que, apesar do tempo, ainda persiste, indelevelmente, na minha memória, no meu corpo, como uma ferida que, embora cicatrizada, ainda dói, lateja. Por isso, para te ter meu, precisei distanciar-me de ti. Acreditar que a distância podia conservar-me um pouco de ti, para que eu não te perdesse de vez, era o meu grande alento. Ah, este inferno de amar, como ainda te amo! Ter de controlar-me os instintos, quando queria jogar-me aos teus pés e pedir-te um beijo apenas. Sentir, por mais efêmero que fosse, o roçar, afável, de meus lábios, lado a lado, dos teus.
     Devo, entretanto, mirar-me no espelho da impossibilidade, de consumir-me no inferno da cálida interdição. Pathos devia ser o meu sobrenome. Deves saber o mal que me fazes (“Mas te divertes com isso. Adoras tripudiar, quando tens a certeza de que és desejado. Comprazes-te em ser a fonte das dores deste outro que sou eu”). As palavras duras, os gestos bruscos, os nãos, quando esperavas um sim, eram reações amargas de um amor de mão única. Na não correspondência de teus afetos, eu gestava em mim uma miríade de desafetos. Entretanto, quanto mais eu tentava ferir-te, mais eu feria a mim mesmo.
      Tornastes para mim a dose diária de que necessita um paciente em estado terminal. Ter-te em meus braços, sorver os teus beijos alimentavam-me esperanças, as mesmas que sentem aqueles que já estão condenados à morte. Poderias ter-me servido de salvação, mas, por amor a ti, cada dia, cada hora, eu marchava por um caminho desconhecido, mas que levava a uma única direção: a dor, a tristeza, a solidão, a possibilidade de te ter apenas como um desejo, nunca como uma realização. Mais cruel do que a tua recusa em me dar, ainda que em migalhas, o teu afeto, era ficar questionando-me sobre o porquê de tua recusa. O que me faltava? Por que eu não estava ao alcance de teus desejos? Perguntas e mais perguntas dilaceravam o meu peito, faziam sangrar o pobre coração doente. A falta de respostas era uma música lancinante a entoar em meus ouvidos dia-a-dia.
      E assim abri espaço para que o sofrimento ditasse as regras de meu viver. Eu passei a me enganar, pensando que sofria não por ti, mas por mim mesmo, que eu precisava provar na pele a dor da indiferença, do desprezo, do não poder ser objeto de desejo, mas apenas sujeito desejante. Queria poder me enganar, acreditando que me eras apenas “o motivo de alimento da minha paixão, a quem talvez bem mais queira do que a ti”, mas era tudo uma ilusão. Eu não amava te amar, eu ama a ti, somente a ti. Fostes, e talvez continues a ser, não a razão de meu viver, mas toda a minha vida. Por isso, mais e mais, eu alimentava-me o desejo de estar ao teu lado, de te ter perto de mim, de saber com quem andavas e com quem dividias as carícias por que eu tanta ansiava. Fui-te fiel, amei-te, fostes-me indiferente. Quis acreditar, como dizia a letra de uma velha canção, que não valias a pena, que não valias uma fisgada de minha dor, que não me servias, como rima de um poema, de tão pequeno.
      Entretanto, eu estava, mais e mais, exercitando a minha dor na vã tentativa de que, depois de bem curtida, como um bom vinho que se guarda, durante longos anos, em barris de carvalho, eu pudesse expurgar-te de mim. Tanto que hoje eu queria que persistisses em mim como uma ausência, mas não como uma falta. Resistindo à tua perda, (“Sei que te perdi e me afundo, me perco também dentro de minha total ausência de poder em que me queiras”), escrevi estas palavras, única memória de ti em mim. Queria poder dizer-tas, mas elas persistirão guardadas comigo, porque não consigo enganar a mim mesmo. Se viesses a descobri-las, sabe-se lá por intermédio de quem ou do quê, acreditas que tudo aqui não passou de uma encenação, que, como bem disse o poeta, que “todas as cartas de amor são ridículas”. Não esqueces também que, segundo o mesmo poeta, “só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas”. Queria poder não ter as respostas para as seguintes perguntas: nunca te amei ou te amei demasiadamente?! Ao pensar que te amava, eu estava amando a mim mesmo?! Foste apenas objeto para eu descobrir a humanidade em mim?! Que melhor prova de que somos humanos do que o exercício de amar?
        Mas não adianta formular a pergunta, quando a resposta é evidente. Assim, fui me enganando dizendo para mim, como numa espécie de mantra, que, pensando estar a te amar, eu estava, egoisticamente, amando a mim mesmo. Isso me servia de lenitivo, acalentava-me nas horas mais difíceis do dia, sobretudo quando te via a falar com outros que podiam ter aquele que me fora negado ter como senhor. E assim, fui criando um inventário de ilusões, tanto que cheguei a pensar em dizer-te que nunca foste razão de nada, apenas projeção para aquilo que em mim existia como desconhecido, inefável, como um território selvagem. Só nessa condição, quero acreditar?, persistes em mim. Entretanto, percebo que começas a cair no esquecimento, o mesmo a que sucumbo agora, ainda que releguemos para ele as coisas que, apesar, nos foram importantes. Não esqueces, porém: tudo foi encenação. Restas saber o quê. O meu amor em demasia ou a negação desse amor demasiado? A resposta, talvez, encontres quando, de volta, ouvires as palavras que aqui deixei serem entoadas como uma balada de amor ao vento.


AO HOMEM QUE EU QUIS

Para Tibúrcio Valério de Azevedo, ou, simplesmente, Tinho;

Para Eduardo Manoel de Brito (in memorian), que estava deixando para trás o que precisava ficar para trás.



     Assim como sua avó, sua mãe e suas tias, todas largadas por seus homens, ele, embora não tivesse nascido mulher, havia trazido consigo aquela sina que fizera das mulheres de sua família imaculadas medéias. Ao ver o bilhete deixado no criado-mudo, tivera a certeza de que não havia se desvencilhado daquela singular desdita amorosa que marcara, uma por uma, as mulheres de sua família. O papel trazia um único período (Fui embora e não volto mais, adeus) e ainda recendia ao cheiro amadeirado do perfume que o Outro tanto gostava de usar, que, inúmeras vezes, deixou impregnado em suas carnes e que lhe servira de consolo, quando a saudade vinha só lhe mortificar o peito.
     Olhara novamente o bilhete, a letra miúda, bem desenhada assim como também o era o corpo do seu senhor que cheirava à juventude. Branco, cabelos escuros, olhos castanhos, sorriso maroto, olhar sedutor de cafajeste. Não houve jeito, desde o primeiro olhar, sentira-se fisgado. Aquele garoto apresentara-se diante dele como o seu veneno e o seu remédio, e ele se lhe entregou como quem se entrega ao seu carrasco. Durante meses, ele conheceu, uma por uma, as curvas daquele corpo, as suas reentrâncias mais recônditas, as suas fendas mais íntimas, enquanto o Outro lhe sorvera a tristeza, a solidão, fazendo-o, naquela idade, redescobrir a alegria de estar vivo, de, novamente, ser, ao mesmo tempo, sujeito desejante e objeto de desejo.
      Amassou o bilhete, mas não o jogou fora. Deixou-o no criado mudo e, agora, também surdo: queria ter, ao menos, aquela última lembrança daquele que, assim como os outros, entrara em sua vida sem muito explicar, mas que, ao contrário, se apossou, sorrateiramente, dela como um velho posseiro. Desarmado, ele não teve outra saída senão entregar-se perdidamente. Sentou-se na cama, passou a mão pelo colchão como se cada vinco dele fosse os do corpo do Outro. Não mais poder tocar aquelas carnes rígidas e suaves, cheirando a guardado, não mais sentir-lhe o gosto, não mais poder morder-lhe os mamilos, sussurrar-lhe palavras ao ouvido ou sorver-lhe o grito antes do gozo... Tudo, agora, era mediado por aquele atroz não mais.
      Lembrou-se de quando o conhecera. Era seu aluno. Desde o primeiro dia de aula, sentira-se atraído por aquele jovem calado, recém chegado à universidade. A princípio, quis esconder, como sempre fazia, os seus sentimentos. Cidade interiorana, não queria dar o que falar. Professor ter caso com um aluno renderia muita conversa para aqueles que viam na vida alheia uma forma singular de distração. Percebeu, no entanto, ser correspondido. Entre uma aula e outra, o desejo aumentava. Nas aulas de literatura, parecia que os poemas lidos, os contos ou os romances escolhidos eram cúmplices na concretização daquele desejo gestado entre interditos. Ao término do semestre, ao corrigir a avaliação final, leu uma pequena frase: “Você pode me ligar”. Deixou de lado a caneta e ficou pensativo. Pegou o telefone e, pausadamente, discou cada um dos algarismos como quem joga na certeza de que aqueles eram, de fato, os números da sorte. A voz do outro lado atendeu ao som de um estridente alô. Não precisou identificar-se, o Outro lhe reconheceu. Dali para frente, desde o primeiro, todos os outros encontros eram contados como se fossem anos. Queriam prolongar cada minuto, cada segundo em que estavam juntos. Procuravam viver, em cada vão momento, as delícias que seus corpos sentiam um pelo outro.
      E, agora, de tudo o que vivera, restavam-lhe, apenas, aquelas letras naquele papel amassado. Ao pensar nisso, a sua primeira reação foi chorar, mas as lágrimas não sairiam. Aprendera a sofrer a sua dor resignadamente, principalmente porque chegara a uma idade em que se acostumara ao abandono. Não mais vivia agosto esperando setembros. Aprendera a recomeçar sempre depois de vários abrius despedaçados. Apesar disso, o peito ainda lhe doía a cada nova despedida. Sabia que a relação deles, da maneira repentina que começara, caminhava para acabar. Intuía sempre que cada encontro deixava, sem que pudessem perceber, uma nota silente que, pouco a pouco, ia compondo a sinfonia do adeus a ser ouvida na partida que se fazia, amiúde, iminente.
     Ele começara a perceber que o Outro estava cansando de seus beijos, de seus abraços, de seus amassos, de seu corpo onde não apenas ficaram as marcas de seus dentes, de seus abraços fortes. O Outro não o procurava mais com tanta freqüência. Ele é que tinha de mendigar carinhos, carícias, afetos. O telefone, quando não desligado, estava sempre fora de área. O Outro havia, certamente, descoberto novas rotas ou sentia a necessidade de percorrer outras geografias. E, assim, começara a ferir a ele da maneira mais sutil e dolorosa possível, de forma que, mesmo podendo vir a cicatrizar, a ferida do abandono doía, latejava, sangrava, arranhava qual grão de areia nos olhos. O Outro soubera pisar no seu coração. O amor que o Outro lhe dera já viera, desde o primeiro beijo, com o gosto de adeus. Restava a ele apenas esquecer aquela paixão. “O passado deve servir de alimento apenas para si mesmo. Amanhã será outro dia”, pensou consigo. Enxugou as lágrimas, ajeitou-se na cama e tentou consolar-se, dormindo, ao som de The Blower's Daughter, enquanto o lado direito de sua cama, mais uma vez, voltava a sua serena espera por um novo alguém.

SOUFFRIR

Para Francisco Victor Macedo Pereira

      Ensinava e, por ter lido emoções e dores humanas nos muitos livros a cuja leitura se devotara, não percebera que sua vida fora toda tecida a partir de velhos clichês. A vida, com seus altos e baixos, alegrias e tristezas, tinha-lhe vindo mais como personagem desses livros, nunca como experiência, de fato, vivida. De tudo o que vivera, eram verdadeiras apenas as dores que sentira, por saber-se só e triste, e a angústia de existir sob cujo signo nascera e que, como um verme à espreita, roia-lhe não mais o corpo, mas a alma. Tudo o mais tinha sido fantasia sua.
      Inventário de ilusões era o que construíra antes de conhecê-lo. Até então, ensinara-se a viver só para si. Era a sua forma de se defender do mundo e de si mesmo. Nesse lidar com aquilo que lhe era desconhecido, tornara-se um narrador, ensimesmado, de histórias sem enredo definido, embora com vários esboços tecidos. Nunca chegara a um desfecho definitivo. Como um palimpsesto, a sua vida era, na superfície, a sobreposição de riscos, ranhuras, rasuras e tentativas de recomeço a encobrir, na parte mais profunda, medos, receios, dores, solidão.
       Seu calcanhar de Aquiles, as emoções turvavam-lhe os sentidos. Expunham-no: ele, que sempre procurou ser invisível nesse mundo de seres bastante visíveis. Diante delas, sentia-se descentrado. A sua velha máscara de seriedade, que já começava a dar sinais de flacidez, caía e punha-o diante de si mesmo. Espelho contra espelho. Ele era obrigado a ver que, do outro lado dos muitos espelhos que construíra em si, havia empurrado, para o sótão de sua alma, toda forma de afeto. Preferiu, na empresa vã de evitar sentir a dor de existir, retesar o comboio de cordas em seu coração. Até tê-lo visto, sempre à-vontade na vida, e o seu coração, à sua revelia, contrariando as normas impostas, resolver sair dos trilhos. “A paixão veio assim, afluente sem fim, rio que não deságua”. Diante disso, ele, sempre retraído, não tendo outra saída, resolveu arriscar-se. “Bobeira é não viver a realidade”. Puro de tudo, sem saber ao certo o que fazer, embevecido, ele rumou em direção a esse singelo canto de sirena que, pela primeira vez, tocara em seu peito.
        Como um caçador, o Outro andava à espreita, pondo a sua pele à prova das línguas sequiosas. Ele, que sequer sabia ser caça, sentia-se desajeitado na caça daquele que, como água, escorria-lhe entre os dedos. Inapto para a tarefa, ele não queria deixar escapar a sua presa, de quem estava se tornando prisioneiro. Por isso, ficara receoso. Viu que, inocente nesse jogo, seria levado a escolher o caminho da esquerda, embora soubesse, devido ao seu sempre alerta instinto de racionalização, que deveria ir pelo da direita. A razão dizia que era mais segura a cada travessia. As emoções o impeliam a viver em mise en abyme.
       Entre a razão e a sensibilidade, escolhera não por si, mas pelo Outro, a quem passara a devotar o seu afeto. Em seu nome, ele resolvera seguir pelo caminho dos ventos do leste. Era uma viagem necessária; o caminho, tortuoso; mas, pela primeira vez, percebia que era imperativa a necessidade da procura e, mais ainda, da entrega. E assim, pela primeira vez, pôde sentir aquela necessidade que ele, por mais que procurasse, não conseguia evitar. Sucumbia às exigências desse lado desconhecido de si. Descobrira que estava amando. Estava a sentir o que era sofrer de amar, o que era querer arrancar, do peito entorpecido, aquela dor que, prazerosamente, latejava, o que era ter dentro de si esse rio em fogo convertido.
       Ele, para quem amar sempre estivera em segundo plano, não sabia como aproximar-se. O que dizer? Como ter para si aquele por quem seu corpo clamava? Sabia apenas que o Outro o arrastava para junto de si e disso ele não podia escapar. Nem o queria, ansiava pela aproximação. Resolvera, então, jogar o siso. Trocar olhares, antes da entrega total. Os olhares se procuravam como espadas a tinirem uma contra a outra. O Outro, experiente, já havia percebido que era objeto de observação, de desejo. Não desviava os olhares, enquanto ele não conseguia fixar-lhe os seus por muito tempo, desviando-os a cada investida do olhar do Outro, que se comprazia nesse jogo em que, pouco a pouco, ia dando as cartas. Sedutor, sabia como inebriar. “No clarão do luar, espero”, sussurrou-lhe, oblíquo e dissimulado, o Outro, ao ouvido. Pronto, já tinham o encontro marcado. Embriagado, ele vivia na esperança desse só dia. Não precisava ser tão longa a vida, para tão curto, mas, naquele momento, intenso, amor. Queria, agora, apenas um momento, efêmero que fosse, que fizesse presente o que até então se lhe fizera sempre ausente.
       A esse sentimento que veio sem muita conversa, sem muito explicar, ele entregou-se perdidamente, como se um demônio tivesse lhe tirado de ordem, virando-lhe do avesso, fazendo esquecer dos ensinamentos recebidos: “com homem não deitarás, como se fosse mulher; é abominação”. Mas ele resolveu ouvir a voz que lhe dizia: “o meu amado meteu a mão por uma fresta, e o meu coração se comoveu por amor dele”. Por isso, amou daquela vez como se fosse a única. Deu-lhe seu corpo. Recebeu as carícias sempre negadas. Pela primeira vez, sentiu como era bom ter a pele fendida. A pele do Outro eriçou-se ao leve roçar de sua barba espessa. Provando essa pele branca e macia, a língua dele sentia um gosto de morango e chocolate. Pronunciou sons há muito silentes. Descobriu habilidades adormecidas em suas mãos que navegaram, naquele momento, por lugares nunca dantes navegados, apenas, antes, sonhados.
        Naquela noite, entregou-se sem nenhum pudor. Fulgurações. Naquela noite, as almas se calaram; os corpos, ternamente, se entenderam. Luminescências. Ele pôde, tal qual Adriano nas mãos de Antinoos, descobrir a delícia de ser o que é. Naquela noite, não se distinguiam caça e caçador. Eu e Outro se misturavam, entredevorando-se como uma serpente a morder a própria cauda. Bêbados de prazer, sentiam-se como adão e adão no paraíso a descobrirem cada vinco do rosto, cada detalhe e segredo do corpo. Sem culpas, buscavam-se, penetravam-se. Yin e Yang com o mesmo sexo, mas posições diferentes. Masculino e Masculino, arfantemente, se procuravam, buscando retardar o prelúdio da aurora. Eles sabiam que precisavam viver cada vão momento daquela noite. Amanhã seria um outro dia, e não tinham a certeza de se iam ou não se amar por toda a vida. Bastavam-lhes o aqui e o agora. Por isso, nada pediam em troca. “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta”. Apenas se davam, enquanto, antes do ponto final, ainda havia reticências, exclamações e poucas interrogações.
        Exangues, os corpos descasaram em meio àquele silêncio que só aos amantes é dado conhecer. Ele observava o Outro deitado na cama. Passou a mão em seus cabelos para sentir a maciez de seus fios. Alisou-lhe a barba rala, demorando-se na contemplação do rosto, alvo e comprido, do Outro, como se seu gesto pudesse reter a passagem das horas. Desceu um pouco mais a mão, demorando-se no peito com muitos pêlos lisos e escuros. Tocou-lhe os mamilos. O Outro, apenas, revirou-se. Ele foi, pouco a pouco, descendo mais a mão. Parou no sexo que, embora exausto, ainda estava em riste; mas voltou a mão para o rosto do Outro. Ficou parado, observando-lhe a boca. Depois, aproximou-se dela e, com gosto de adeus, beijou-a como se fosse a última. Levantou-se. Pegou as roupas espalhadas no quarto. Vestiu-se. Fechou a porta com cuidado para não acordá-lo. Desceu as escadas, pagou a conta e saiu.
         Olhando para trás, ele podia, embora o sol já despontasse, ver as luzes de néon a iluminar a fachada do motel, onde se lia: CLARÃO DO LUAR. Virou a cabeça e seguiu em frente. Sabia que, ao alumbramento sentido no princípio, já se iria anunciar, no fim, a dor da partida nem sempre pressentida. Sabia também que, antes mesmo de unidos, já estavam divididos. O Outro era de mil outros. “Perigoso amar; doloroso querer”. E ele, apesar dos ciúmes, ébrio de amor, pensou, ainda antes daquela noite, receando um adeus, antes mesmo do primeiro abraço, em aceitar dividi-lo com outros corpos, outros pêlos, outros beijos, no tapete, na cama, atrás da porta. Sabia que só assim, aos pedaços, ele poderia, talvez, ser seu.
       Embora o fervor continuasse, ele não se resignou, não maldisse a vida; mas não se conformou com receber as migalhas de um amor em mosaicos. Não, o seu amor não bastou. Ele descobrira que não servia para amar e que o Outro, motivo de sua paixão, só poderia servir-lhe de alimento, de peça envolvente nesse jogo em que, mais importante do que dizer que amava, foi sentir-se, pela primeira vez, apaixonado. Em não ter, mas, ainda que a vida seja curta, desejar. Essa mesma vida que, em tempo atrás lhe foi um cais de consolo e de afetos, se lhe apresentava, agora, como um porto de partidas e despedidas. E assim, levando consigo aquela sensação, ele preferiu partir, trazendo na lembrança, bem próximo ao coração, esse primeiro capítulo de sua mala educación sentimental.

A FUGA

Para Rosângela Melo

           O navio estava zarpando, embora fossem mudos os barulhos da partida. Aos poucos, o cais onde ela deixou a sua vida ia ficando, cada vez mais, invisível, distante. “O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio...”. Intuía que, de agora em diante, tudo seria diferente. Sabia que essa sua outra vida deveria ser esquecida, qual retrato esgarçado pela ação do tempo. Se pudesse, talvez, fizesse o caminho de volta a nado; mas não queria, não sabia nadar e preferia deixar-se ser guiada pelo navio. Ali, encontrara a segurança que não havia em terra, embora rumasse para o ignoto. Estava inebriada com aquela sensação de se sentir perdida. “Perder-se é um achar-se perigoso”, pensou. Arrepiou-se... ao tocar no navio. Era frio. Pôs a mão no peito, aliviou-se ao sentir o seu coração batendo.
            Ela, cuja vida fora sempre na vertical, podia vislumbrar na noite esvaecendo um horizonte que lhe apontava novas esperanças. Sentia-se feliz. Pela primeira vez, era ela que tinha escolhido o seu roteiro. Pela primeira vez, estava viajando sozinha. Havia deixado a casa, o marido, os filhos, as empregadas. Ela precisava daquela viagem que lhe provocaria uma desorganização profunda. Se sua mãe fosse viva, ela a chamaria de louca. “Como você pode largar tudo, viajar sozinha? Isso é um disparate”. “Estou à procura. Estou tentando entender”, responderia. “Mas procurando o que, tentando entender o quê?”, retrucaria a mãe morta. “Eu não sei, por isso estou partindo, dizendo adeus. Preciso saber. Apenas sei que não quero ficar com o que vivi até agora”, argumentaria ela entre confusa e desejosa de entregar-se ao que sequer lhe fora esboçado ainda.
            Sentia-se atraída pelo que lhe se afigurava como novo e que ela mesma não entendia. A sensação de permanecer perdida não lhe provocava medo, impulsionava para adiante, mesmo que esse adiante fosse a beira de um abismo. Sentir-se livre desse cenário e longe daqueles personagens era a seiva de que ela naquele momento precisava. Ela estava só, como sempre fora. Abandonada, perdida e feliz. Sentia-se perto do selvagem coração da vida. E isso era o bálsamo que lhe refrescava a alma.
As nuvens iam tornando-se menos carregadas à medida que iam sendo dissipadas pelos raios do sol que despontava mais à frente. Em breve chegaria ao porto. Ouviu o apito do navio que, ao contrário da partida, não era mais inaudível. Estridente, o barulho a assustou.
  – Que foi, querida? Não se espante. Coloquei o café no fogo, falou-lhe o esposo enquanto ajeitava o nó da gravata olhando-se no espelho. Hoje, você dormiu demais. Estou atrasado para o trabalho e não tomei meu café porque não há nada pronto. Veja se amanhã não dorme tanto, disse o marido beijando a testa da esposa, sem perceber que ela, com a ponta do lençol, enxugava uma lágrima que, em seu rosto, anunciava o seu destino de mulher. Ela revirou-se na cama, deu as costas ao marido e fechou os olhos. Não havia chegado ao porto. Estava ainda no cais. Sua viagem ainda teria de esperar.

PAI, UM CACETE

Para Marcelo Medeiros




        Se a senhora... Já deve saber o que aconteceu. Não se preocupe comigo. A senhora sabe que eu já aprendi a me virar. Desejo que de agora em diante possa viver mais feliz. Se é que, depois de tantos anos de sofrimento, a senhora ainda sabe o que é felicidade. Mas ainda há tempo para tentar arriscar-se. Pena que eu não poderei mais estar ao seu lado, mas sempre que puder escreverei. Claro que não posso enviar o endereço. Vai que uma de minhas cartas caia nas mãos ... Não se preocupem que eu não deixei rastros. Sei como me esquivar e não vão me pegar, a menos que eu me canse e queira me entregar. 
        Não me arrependo do que fiz. Não se espante! Queria poder lhe dizer a satisfação com que eu dei cabo dele. Era como se eu estivesse provando por algo há muito esperado. “O pai que não tive/ hoje ainda seria moço? /O que dele em mim sobrevive/ Guarda a forma de um esboço?”. Queria poupar-lhe dos detalhes, mas sinto uma necessidade de dizer como foi que fiz este que considero um ato heróico. Sei que desrespeitei um dos mandamentos divinos, mas não sou Jesus Cristo para apanhar e dar a outra face. “O pai que nunca vi/ Será que o encontro? /Severo, louco, fora de si/ ou apoiado em meu ombro?” Sou humano, e paciência tem limites. Não dava mais para agüentar tantas humilhações, além dos hematomas deixados em mim e na senhora. Nunca agradeci tanto por ter crescido rápido. “Do pai que não tive,/ dizem, herdei o rosto. /O que dele em mim vive/ é signo póstumo ou oposto?”. Meus braços que antes se uniam para protegerem o meu rosto dos afagos do cinto dele haviam se tornado fortes, e eu pude partir em posição de ataque e não ficar apenas na retaguarda, sem defesa. “O pai que desejei/ num colóquio abstrato/ respondeu-me: ‘Nada sei’/ Exilou-se em seu retrato”.
        Como lhe disse, queria poupar-lhe dos detalhes daquela noite, mas não consigo. Sim, era de noite. Aproveitei que a senhora tinha ido à igreja. Depois de tantos anos de sofrimento, humilhação, entendo por que a senhora foi buscar na igreja conforto para um corpo já cansado, marcado pelo tempo e pelas mãos dele. Aproveitei também que ele, como sempre, estava bêbado. Eu estava na sala, a televisão ligada, quando ele chegou gritando e batendo no portão. Espantei-me e fui depressa abrir. Ele vinha trazendo consigo aquele cheiro nauseabundo de cachaça que nos queimava as narinas. A voz dele, quase inaudível e que só emitia grunhidos, despertou-me um ódio há muito alimentado. Se pudesse, daria cabo dele ali mesmo. Acalmei-me e o segui. 
        Como sempre, ele seguiu para o fogão buscando comida. Sentou-se à mesa e, como um animal, começou a devorar o que havia colocado no prato. Não se preocupava se eu tinha deixado de comprar os passes escolares para poder comprar o que ele estava mais desperdiçando, ao espalhar a comida na mesa e derramá-la no chão, do que propriamente comendo. Ele também não queria saber quantas peças de roupa era preciso a senhora lavar para ele vir desfrutar daquela comida que ele dizia estar insossa ou com gosto de azedo. Ele não sabia agradecer, apenas exigir. Queria roupas limpas, lavadas, as brancas, com anil e imersas em goma, passadas a ferro sem um vinco sequer. Ainda queria mais, carne de sol e feijão verde todo domingo. Ele que nem sequer comprava um ovo para dentro de casa, mas devorava a comida que encontrava sobre o fogão, ainda que eu ou a senhora não tivéssemos comido. 
        Pois bem, aproveitei aquela noite e esperei que, depois de comer como Pantagruel, ele fosse dormir. Para apressar esse momento, fui à geladeira e peguei uma garrafa e perguntei-lhe se queria água. Ele bebeu e foi para o quarto. Esperei. Confesso que não estava nervoso, estava eu ansioso. Acho que se passou meia hora. Procurei certificar-me de que ele estava dormindo de verdade. Roncava como um porco. Pensei: “É agora”. Fui à cozinha, peguei a faca que estava em cima da pia e dirigi-me ao quarto. Não precisei abrir a porta porque ele a havia deixado aberta. 
        Aproximei-me da cama, olhei para ele e me lembrei do dia em que ele, bêbado, havia me encurralado no banheiro e, com a faca na minha garganta, olhou para mim e disse: “Fale alguma coisa pra mim sangrar você agora mesmo”. A senhora recorda-se desse dia em que nós somos obrigados a dormir fora de casa porque ele estava embriagado e havia nos expulsado? Por isso, naquela noite, observando-o dormir ali, impotente, senti o mesmo prazer que deveria ter sentido Perseu ao cortar a cabeça da Medusa. Aproximei-me, peguei-lhe nos cabelos, encostei, afavelmente, a faca no pescoço dele e, como um violinista, fui deslizando-a em seu pescoço enquanto sorria para ele: “Fale alguma coisa para eu cortar a sua garganta”.
– Pedro, acorda. Que foi? Você teve mais um pesadelo? Vamos, acorde.
– Não, não é nada. Foi apenas um sonho ruim que eu tive. Vá dormir que amanhã você precisa ir à escola, disse Pedro ao irmão que dormia no mesmo quarto, enquanto ele, suado, tentava dormir novamente. Realmente, aquilo não fora um pesadelo. Fora apenas um sonho ruim. Pesadelo era acordar amanhã e saber que ele continuava vivo, que estaria ali em carne e osso a ocupar o lugar do pai que ele nunca conhecera, de quem nunca precisara, mas que sempre lhe fizera falta.

PRESTAÇÃO DE CONTAS

Para Juan Monteiro




            Naquele dia, Marcel estava completando anos. Precisava registrar aquela data. Todo esse tempo já havia passado! E o que havia feito? De uns tempos para cá, essa pergunta se repetia com muito mais freqüência, embora a resposta fosse uma única: Nada. Não sabia se era coisa da idade, mas ele não conseguia lembrar-se de algo. Amores, talvez? Mas não os teve, apenas paixões frívolas, simples impulsos que procuravam agradar aos desejos da carne. Com o tempo, aprendera a ser o ponto de partida e de chegada de seus próprios desejos. O que fez da vida? O que ela havia feito dele?! Não sei. Talvez nada. E o nada tornara-se um de seus companheiros inseparáveis. Responder àquelas perguntas deixara de ser uma de suas preocupações. Restavam-lhe alguns... apenas um pouco lampejo de vida, último fragmento de uma existência marcada pela dor de existir. Cada dia, viver era uma certeza que se esvaia como a água por entre as mãos. Aproveitá-lo? Saberá? Talvez. Mas como, se não sai daquela cadeira? Há muito que se acha preso àquela madeira da qual a vida brotara para ser ceifada e se transformar naquela prisão de grades invisíveis.
            Sentia-se só. Apenas ele e as suas recordações. Era assim que naquele tempo ele se sentia e eu me sinto hoje. Ele e eu, dois lados de uma mesma existência, de um mesmo pilar de tédio que o levava até mim e que me levava até ele. Desculpem-me. Deixem-me primeiro dizer quem sou. Serei breve, afinal cheguei a um momento em que tudo se me afigura como breve. Sou apenas um velho que estava se lembrando do passado onde repousam, quase inertes, poucas lembranças embaçadas. Marcel, antes que vocês me perguntem, era um senhor que conheci quando jovem. Era agosto de mil novecentos e ... e... Desculpem-me mais uma vez, nunca consegui lembrar-me de datas e mais agora nessa idade. Deixemos de conversas, as datas não têm importância. Deixemo-las, e desde já peço desculpas, para meus amigos historiadores ou arqueólogos que precisam deixar as coisas registradas ou vivem em busca dos registros das coisas, ainda que isso lhe seja uma das mais inefáveis atividades. A mim, basta-me ter os registros do tempo escorrendo nas acentuadas vias de meu rosto que se estendem para outras partes de meu corpo, chegando a interditar algumas delas.
            Lembro-me de que naquela época eu tinha de sair e não tinha com quem deixar as chaves de casa. Mamãe saíra e, na pressa, não levara as chaves dela. Fui, então, ao apartamento do Marcel, perguntar-lhe se ele poderia ficar com as chaves e dá-las à minha mãe, quando ela voltasse. Ele atendeu-me bem, prontificou-se a entregar as chaves. Agradeci e pude perceber que seus olhos escondiam certo mistério. Pareciam olhos de santos roubados de igreja, relíquias perdidas na mão de um único colecionador. Sempre fui atraído por olhos. Furtivamente, eles guardam uma pequena diferença e escondem segredos que a nós não é dado conhecer. Tal qual esfinge, estão a todo tempo a sussurrar: decifrem-nos ou nós o devoramos.
            Voltei mais uma vez ao apartamento dele. Dessa vez, eu tinha sido convidado para um almoço. Ele estava aniversariando e cansara de comemorar aquela data sempre só. Mandara convidar mamãe e a mim. Mamãe não pôde ir, estava viajando. Desde que meu pai morrera, ela assumira os negócios da família. Vivia mais viajando do que em casa. Eu procurava entendê-la. Eu havia aceitado o convite do almoço muito mais em retribuição à gentileza que dias antes Marcel nos fizera. Seu apartamento era um dos maiores daquele prédio. Havia poucos móveis, mas muitos livros. Diante de meu espanto, ele foi dizendo que os livros eram o seu mundo, uma parte do universo se escondia em cada um deles. Pediu-me que se sentasse à mesa. Depois do almoço, por educação, resolvi ficar mais um pouco. Ele ofereceu-me café. Entre uma xícara e outra, fiquei sabendo que ele morava sozinho. Não chegara a se casar ou tivera filho algum. Fora professor. Mostrou-me algumas fotos. Em todas elas, ele demonstrava o mesmo semblante sério. Parecia não ser afeito a muita gente. Os poucos amigos que tinha ou morreram ou estavam senis demais. Marcel tinha a misantropia de um Policarpo, mas não os seus sonhos.
            Toda aquela seriedade escondia a profunda solidão da qual fora escravo por muito tempo. Ele confessou-me que havia nascido no tempo errado. Achava-se perdido nesse mundo. Um ser que não encontrou a conexão certa com a realidade de seu tempo. Estava velho e já era tarde demais para empreender alguma tentativa de mudança. Na sua idade, buscar recuperar o tempo perdido era muito arriscado, principalmente porque, disse-me, parecendo o Marquês de Maricá, que o tempo perdido não se recupera, apenas se lamenta. Passado tanto tempo, eu retifico a sua frase, dizendo que nunca é tarde demais para se lamentar...
            Da próxima vez, procurarei ver a vida através dos olhos de uma criança. Elas, realmente, conseguem enxergar o que para nós fica embaçado. Elas penetram na corrente da realidade e conseguem ir mais adiante. É uma pena que quando vão crescendo deixem que a sua alma seja acometida de miopia. Da próxima vez, procurarei viver mais. Tentarei aprender a viver como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta. Sempre olhando para frente e pedalando. Na vida nunca olhei para frente. Vivi em função do deixei para trás.
            Não voltei mais a ver o Marcel. Tivemos de nos mudar de lá. Mamãe recebera uma proposta de trabalho em outra cidade. Tempos depois, eu recebi em casa uma encomenda pelos correios. Eram alguns livros que o Marcel havia deixado para mim e pedido que me entregassem quando ele morresse. Havia entre os livros uma pequena carta de despedida. Nela ele dizia que temos apenas uns falsos, mas verdadeiros, amigos, aos quais ele chamava livros. Foram eles que acompanharam o Marcel e me acompanharam também. Às vezes, afastaram de mim a solidão; outras vezes, deixaram-na tão mais próxima. Sempre acreditei que, enquanto estivesse lendo um livro, ele afastaria de mim a morte. Hoje acabei de ler mais um. Lá fora toca uma vaga música, a lua muda de fase. À meia noite, completo mais um ano. Estou só. Sempre fui só. Ela está chegando, posso ouvir seus passos. Lá fora o vento bate nos galhos secos da árvore. É OUTONO.

DESPEDIDA

Para Marlos Régis Araújo


        Olhou ao redor de si e viu que aumentara o maço de papéis amassados. Horas a fio escrevendo e não conseguira ainda terminar aquela carta. Findado o primeiro período, o segundo sumia de tal forma que ele ou se irritava e rasgava o papel; ou ficava dispondo palavras soltas que, logo depois, formavam um amontoado que era amassado e jogado fora. Mande notícias do mundo de lá, diz quem fica. Escrever, riscar, amassar, essa era uma seqüência que ele já estava executando mecanicamente. Me dê uma abraço, venha me apertar, tô chegando (ou será indo de vez?). Poderia parar e dar por vencida a questão. Para que escrever aquela carta, pedindo desculpas, se o seu pedido, certamente, seria indeferido? Coisa que gosto é poder partir sem ter planos. Também não iria escrever sobre os seus erros. Temia que, à lembrança do que fizera, o Outro, de quem dependia o seu perdão, ressentisse-se e, reacendida a ferida da mágoa, recusasse-se a perdoar-lhe. Melhor ainda é poder voltar quando quero.
         Errara. Disso tinha certeza. Por isso, mesmo sendo perdoado, o perdão, para si, teria um modo carinhoso de inacabado, de malfeito, daquilo que desajeitadamente cai, antes mesmo de alçar o primeiro vôo. Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação. Agira como alguém que temia perder o objeto que lhe é mais caro, mas cujas ações, tal qual Édipo infeliz, o levavam em direção ao abismo, à perda, à dor de que em vão tentara fugir. Tem gente que vai pra nunca mais. Não tinha coragem de encarar mais o Outro. Olhos nos olhos o que mais posso lhe dizer? Tem gente que vem e quer voltar. Errei, sim; mas não manchei o seu nome. Sabia disso e se arrependia. Todo dia, agora, viver com a sua indiferença é aumentar o cálice da angústia que bebo toda noite. Mas você queria que eu agisse como? Cansei de viver à sombra de suas migalhas de afeto. Em meio a sobras, eu procurava uma amplidão. Tem gente que vai e quer ficar. Você havia me dito que era meu... . Eu, que sempre fui de poucas amizades, que fiz de mim o verso e o reverso de mim mesmo, acreditei. Tem gente que veio só olhar. 
        Mas, eis que de repente, não mais que de repente, uma sombra negra o envolveu: você tornou-se-me indiferente. Tem gente a sorrir e a chorar. E eu, não menos que de repente, pensei que havia aprendido com a sua indiferença, hóspede novo, embora não exclusivo, que entrou em minha alma e pôs em perigo a nossa amizade. E assim chegar e partir. Vesti o dominó e você conheceu-me logo por quem eu não era. São os dois lados da mesma viagem. Não desmenti. Perdi-me, Perdi-lhe. A hora do encontro é também despedida. Desde então, o amanhã se me apresenta como a única possibilidade de que tudo volte ao normal. É a vida desse meu lugar, é a vida. Eu queria poder pedir que não procurasse me entender, saber por que agi daquela maneira. Perdoa-me, faz-me companhia. Eu, embriagado de uma tristeza profunda, fui possuído por uma angústia que me corrói o corpo e a alma. Ajude-me, perdoando-me.
        Cansou-se mais uma vez, levantou-se da cadeira, afastou os papéis da mesa, deixando uns caírem no chão. Não conseguia entender por que ainda não tinha escrito aquela carta. Devia ser o som do rádio que estava a lhe atrapalhar a concentração. Seria melhor desligá-lo de vez. Assim, no silêncio da noite, ouvindo apenas o assovio do vento, talvez ele pudesse escrever aquilo por que tanto ansiava naquele momento e que se lhe apresentava como um décimo terceiro trabalho de Hércules, fadado, no entanto, ao insucesso. Por isso, não adiantava calar o rádio. 
        O problema era com ele mesmo que não conseguia soltar a sua voz, que não sabia como trazer para o branco do papel aquele sentimento retesado há certo tempo juntamente com outros também inauditos. Essa sensação de impotência diante da miríade de palavras que ele dispersara entre as muitas folhas que cobriam o piso do seu apartamento estava a lhe inquietar o espírito. Esse sentimento, espécie de áporo perfurando a terra sem achar escape, foi, palavra por palavra, risco por risco no bordado de cada papel a cobrir o chão, crescendo, de tal forma que de pronto desatou-se numa única frase, que ele anotou para enviar no dia seguinte pelos correios: “E o seu silêncio esgarçou a minha alma suave e leve como o roçar de uma navalha”.

O CHORO DE PROCNE

Para Nadilza Martins de Barros Moreira



        “Liberdade! Livre!”. Os gritos retumbavam no escuro da noite, enquanto outras vozes pediam que se fizesse silêncio. “Enfim livre!”. Eram palavras que zumbiam em sua cabeça, mas o som não a incomodava. Há tempos que sonhara com esse dia. A partir de agora, preferia esquecer tudo o que passara naquelas frias paredes, entre aqueles corpos exalando suor acre que lhe chegava a corroer as narinas. Não sabia como conseguira suportar aquilo tudo, mas de agora em diante precisaria de mais cautela. As portas não se abriram para ela. Foi preciso forçá-las. O ar da noite lhe revigorava os pulmões que já estavam se acostumando ao ar das paredes frias e mofadas daquela cela pequena, assim como o seu estômago já havia se acostumado à ração diária que lhes serviam e que tinha gosto de azedo. O mesmo gosto que estava impregnado na vida das outras companheiras suas.
        De repente, ouvem-se pios fortes. “Deve ser de alguma coruja”, sussurra uma voz meio ofegante. “Minha Nossa Senhora, valha-me Deus”, diz outra voz, assustada, fazendo o sinal da cruz. Os pios tornam-se mais intensos. “Corre, corre”, grita uma daquelas vozes, enquanto um estampido agudo rasga o negro véu da noite e atinge algo que como uma rosa rodopia no ar, como se fosse uma bailarina que errou o passo em dia de estréia, e cai manchando de vermelho, que escorre de suas pétalas, aquele chão escuro. “Atingimos uma, essa não foge mais”, vibra umas vozes mais fortes que se aproximam esgueirando-se pela não mais silenciosa noite que, arfante, vai cedendo lugar para o novo dia.
        Era um dia de domingo. Ela saiu do quarto e foi até a sala. Verificou se estava tudo trancado. Olhou para a estante e viu a foto da família. Se seu pai estivesse aqui ainda, sua irmã não precisaria ter passado por aquilo. Amanhã, limparia a estante. Era preciso tirar as teias de aranha que iam formando uma espessa camada que escondia o rosto de seu pai. Foi à cozinha e certificou-se se a porta estava aberta, conforme havia combinado. Sua mãe saíra para igreja. Sua irmã também fora. De uns tempos para cá, ela precisava encontrar conforto para a sua alma.
        Hoje seria o dia ideal para tornar concreto aquilo que fora posto em suspenso. Sentou-se em uma das cadeiras da mesa. Partiu um pedaço do bolo de milho, adoçou um pouco de café. Iria lavar o copo, quando olhou para o relógio que estava em cima da geladeira. Faltavam poucos minutos. Apressou-se. Não podia estar na cozinha. Voltou ao quarto. Colocou um pouco de perfume, mas sabia que ele não poderia impedir que exalasse aquele odor que lhe vinha da alma. Passou a mão por sobre a cama. Apalpou o travesseiro. Estava ali tudo aquilo de que ela precisava para aquela noite. Apagou a luz e foi deitar-se. Agora era só esperar mais um pouco. Já sabia o que iria fazer e não sentia nenhum remorso. Era hoje.
        A porta da cozinha soltou um som de instrumento desafinado. Passos seguiam pelo corredor. A maçaneta da porta do seu quarto girou: “– Deixe a luz apagada”, pediu ela com a voz meio embargada. O vulto foi se aproximando da cama. Apesar de escuro, ela podia perceber o sorriso de satisfação em seu rosto. O mesmo que seduzira sua irmã. Ele avançou para a cama igual animal a dar o bote em sua presa. Vinha sedento. Sentiu o peso do seu corpo em cima do dela.
        Com a mão esquerda, afastou-o para o outro lado da cama enquanto a mão direita, habilidosa, pegava, embaixo do seu travesseiro, um objeto que, iluminando a escuridão daquele quarto, era cravado no peito daquele que roubara a alegria de sua irmã. Sentada em cima dele, ela forçou mais um pouco a faca. Lembrou-se do dia em que sua irmã havia chegado com as roupas rasgadas e, em prantos, lhe contara o que ele fizera a ela. De seus olhos, corriam algumas lágrimas. Suas mãos estavam sujas, mas sua alma lavada. A honra da família havia sido restaurada. Agora, qual pássaro que, capturado, sabe que vai para uma gaiola, ela podia entregar-se.