sábado, 15 de março de 2008

A partida



Para Carla Apryl

Eram doze e meia da tarde, Miguel colocava as mãos no bolso. Sabia que havia posto as chaves em um deles. Só não se lembrava em qual. Após uns vinte minutos nesta pequena odisséia, ele achou as pequenas chaves e com mais dificuldade conseguiu abrir a porta da casa 30 da rua 15. Ele morava numa rua tranqüila, cidadezinha um pouco interiorana cujo único meio de transporte para os que não possuíam veículo próprio era o velho trem que, cotidianamente, cortava a vida dos moradores. Logo que entrou em casa, Miguel procurou fechar a porta com cautela, girando, cuidadosamente, a maçaneta. Não queria acordar a esposa que, certamente, ainda estaria dormindo, pois deveria ter se cansado de esperá-lo a noite toda. Sabia que ela não tinha vocação para Penélope, nem fiar sabia, mas tinha uma paciência igual ou superior à da esposa do velho Ulisses. Era bom mesmo que ela estivesse dormindo. Ele precisava de um tempo para pensar em como pedir-lhe desculpas pelo vexame do dia anterior. Era um domingo, os amigos reunidos. Não queria nem se lembrar! Sempre que ingeria álcool além do que podia, perdia a noção das coisas. Miguel, diante de um copo, se metamorfoseava.
Preferiu ir à cozinha depois subiria para o quarto ou dormiria na sala mesmo, como fazia sempre que bebia além da conta. Sentia a garganta seca, precisava tomar um pouco de água bem gelada. Apesar de ser quase uma hora da tarde, estava tudo escuro. As janelas fechadas impediam a entrada dos raios do sol. Acendeu a luz e foi direto para a geladeira. Quando ia abrir a porta, percebeu que havia um envelope, e a letra era a de sua esposa. Será que ela havia escrito que resolvera passar um tempo na casa dos pais? Ou teria ido à casa de alguma amiga e, talvez, não desse tempo de voltar hoje? Preferiu, então, ler logo a carta. Se fosse o que havia pensado, melhor. Teria mais tempo para pensar num novo, entre tantos, pedidos de desculpas. Começou a desdobrar o papel e principiou a ler. Os seus olhos corriam por cada letra, mas em seu pensamento era a voz de sua esposa que reverberava. Naquele momento, significante e significado eram um só:


Miguel,

Depois que cheguei em casa, esperei que a noite passasse logo, mas ela persistia em durar, em me atormentar. Fui ao nosso quarto e me deitei na cama, pensando que tudo tinha sido um pesadelo. E, cada vez que pensava, o meu tormento crescia mais. Os objetos giravam, riam de mim, de nós. Eu fiquei me perguntando: Onde foram parar os planos que fizemos quando jovens? O que você havia feito de mim, de meus sonhos? As lembranças (só agora me lembro que tivemos mais momentos tristes do que de felicidades) impediam a chegada do sono. Passei toda a noite acordada. Já é de manhã (tenho certeza de que você só chegará após o meio-dia), tomei um pouco de café (se você quiser também há café na garrafa e deve estar quente; a marca da garrafa – lembra-se, foi presente de aniversário – é boa; esquenta café até por dois dias), arrumei as malas. Só agora descobri que dentro de mim existe uma outra mulher, ou melhor, ela sempre existiu, mas você a fez com que ela adormecesse. Essa nova mulher é diferente. Sinto-me até melhor. Acho que você ficou junto com o resto de lágrimas que encharcaram o meu travesseiro. Essa nova mulher não é mais aquela que chora; mas a que sente falta de um aperto de mão, uma palavra que entre no ouvido com a suavidade de uma boa música; uma carícia simplesmente. Existe, aqui, em mim uma outra, aquela que tem gana de sentir desejo e andava adormecida dentro desta que fingia sentir prazer quando possuída por você.
Fui mulher silenciosa. Silenciosamente mulher. E você? Foi quem ou o quê? Acho que você foi a sombra que se apossou deste corpo e de minha alma, submetendo-os aos seus caprichos, vontades e desejos. Não sei como nem por que aceitei viver neste mundo que você criou à sua imagem e semelhança e dentro do qual eu tive de me sacrificar para ser modelada, moldada, imolada por você. Agora, percebo que o que construímos se dissipava a cada dia, como a bruma a cada manhã. Precisava me libertar, desejo ser livre. Estive muito tempo pressa a você. Fui ave canora cujas asas você cortou antes de eu ter explorado e conhecido o céu. Sinto o canto da liberdade e estou hipnotizada por ele e para ele me dirijo. Quando pegar esta carta, já estarei longe. Ao término da leitura, o trem deverá já ter partido, levando consigo o que resta de meu coração: cacos de um vitral. Partirei triste, mas feliz. Aprendi com você que amar é fazer parte de uma competição tendo já a certeza de que nunca, mesmo que se chegue em primeiro lugar, se ganhará o prêmio. Aprendi que, de agora em diante, quando eu for amar, deixarei o coração em casa. "Vou recomeçar, vou mudar de vez, vou tirar você da minha vida". Obrigado pelas lições que me ensinou.
Um último abraço,
Carla.
Assim que terminou de ler, Miguel partiu em direção à estação ferroviária, posto que soubesse já ser tarde. "Por que não fizera isso logo que sentiu a verdade daquelas palavras?" Procurou saber o itinerário do trem naquele dia, mas ela poderia ter descido em qualquer estação. O trem que levara Carla já havia partido e a mesma estação ele voltaria; mas ela não.
– Desde esse dia nunca mais a vi. Procurei por ela, mas não a encontrei ou não procurei direito, ou minhas asas não voaram na mesma velocidade e direção que as dela. Ainda tenho guardadas junto a mim as suas últimas palavras. Guardo-as como quem recolheu as penas de um pássaro querido que, de repente, voou.
De seus olhos, pude ver uma lágrima cair e ainda me lembro de suas últimas palavras:
– É triste achar-se perdido num porto cuja única companhia são as ondas que batem, constantemente, nas encostas da solidão e, como o corvo de Poe, vivem eternamente a repetir: nunca mais, nunca mais.